quarta-feira, 14 de abril de 2021

Fragmentos de memórias malditas: invenções de si e de mundos - Cecília Coimbra

"Falar daqueles três meses em que fiquei detida - incomunicável e sem um único banho de sol ou qualquer outro tipo de exercício - é falar de uma viagem ao inferno: dos suplícios físicos e psíquicos, dos sentimentos de desamparo, solidão, medo, pânico, abandono, desespero; é falar da 'separação entre corpo e mente', como afirmava o psicanalista Helio Pellegrino: 'O corpo implora para que se fale, a mente proíbe que isso ocorra'. A tortura não quer apenas fazer falar, também quer calar. Este foi o esgarçamento que experimentei: a terrível situação que opera através da dor, da humilhação e da degradação, transformando-nos em coisa, em objeto. Resistir a isso, não perder a lucidez e não permitir que o torturador penetre em nossa alma, em nosso espírito, em nosso pensamento e domine o nosso corpo exige um gigantesco esforço.

...

Apesar do massacre de toda e qualquer oposição, a vida insiste. Os anos seguintes foram de muita solidariedade, especialmente com meus irmãos e amigos mais próximos. Ocorreu uma grande aproximação. Passamos a morar próximos uns dos outros. Viajávamos de férias juntos e confraternizávamos em datas festivas - um congraçamentos muito forte, com muita união e muita alegria por estarmos juntos e vivos.

...

A inquietude e o combate com linhas duras animam a minha existência. Uma experiência de vida marcada por sucessivos abalos em torno da construção de ética-estética da liberdade na invenção de um viver potente. Não me conformo com a mutilação de uma vida pacificada para caber na caixa do mundo já estabelecido. Sinto a faísca da vida que me incendeia nos encontros que experimento com alunos, livros, autores, companheiros, amigos. Porém, durante muitos anos, tinha um sentimento muito forte de que nunca mais veria os amigos exilados ... Sentia um peso muito grande, que se desfez aos poucos ao longo dos anos - com a anistia, ao rever os companheiros-amigos, com os pensadores-intercessores, com os alunos: enfim, com novos e bons encontros que aumentam nossa potência de existir.

Movida pelos bons encontros sigo em busca de mais ar. Afetada pela pandemia do Coronavirus busco refugio na serra de Friburgo, em um pequeno ponto do planeta Terra onde a mata Atlântica resiste e insiste em sua acolhida multicor. Este foi o território que me acolheu e me implusionou em direção à escrita deste texto. Pássaros, flores, sapos, cobras, borboletas, aranhas, vagalumes e insetos variados passam a atravessar meus dias... Que essas memórias possam seguir afetando-desdobrando e seja, também, um pouco do possível, um pouco de ar para outras resistências e invenções de si e de mundos"

Trechos do livro "Fragmentos de memórias malditas: invenções de si e de mundos", de Cecília Coimbra. São Paulo: N-1 Edições, 2021.

Cecília Maria Bouças Coimbra é historiadora formada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e psicológa pela Universidade Gama Filho, mestre pela Universidade Candido Mendes, com doutorado em psicologia na Universidade de São Paulo (USP), pós-doutorado em ciência política também na USP. Professora aposentada de psicologia da Universidade Federal Fluminense (UFF) e uma das fundadoras e atual participante da Diretoria Colegiada do Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro.. É autora também do livro "Guardiães da Ordem, uma viagem pelas práticas psi no Brasil do milagre", publicado pela Editora Oficina do Autor, em 1995 (esgotado e disponível on line).

O livro de memórias do período em que esteve presa sem qualquer processo judicial, se baseia no próprio depoimento da autora às comissões Nacional e Estadual da Verdade, sendo ainda inspirado em sua tese de doutorado. O livro também é um marco dos seus 80 anos, nos quais lutou por ideiais de um mundo mais justo e pelo direito à verdade, à justiça e à dignidade humana. Como ela mesmo diz: falar das memórias "malditas e perigosas dos vencidos" é ainda doloroso e muito difícil, mas cada vez mais "absolutamente necessário".

Cecília fala daquelas memórias "que não contam nos livros oficiais e que o Estado tenta incessantemente fazer desaparecer, ainda hoje insistem em nossos corpos. São histórias que fazem parte de nossas vidas e que continuam a ferro e fogo", e continua: "Sinto necessidade de escrever para liberar a vida. Só consigo seguir em frente no abalo que constantemente tira tudo do lugar novamente. Em uma fina sintonia entre Leibniz e Deleuze: na chegada ao porto eis que sou lançada novamente em alto mar".

Mãe, avó, militante dos direitos humanos, professora universitária, historiadora, cientista política e psicóloga, Cecília Coimbra é uma potência. A fundadora e principal referência do grupo Tortura Nunca Mais fala mais sobre sua vida e o livro na ótima entrevista à Carta Capital (https://www.cartacapital.com.br/sociedade/nao-tenho-mais-ilusao-de-revolucao-minha-afirmacao-e-a-vida-cotidiana/).

Como Cecília também me refugio na serra de Nova Friburgo buscando um pouco mais de ar e acolhida da natureza. Mas resistir é luta cotidiana, sem tréguas, pela liberdade, pela justiça, pela vida. Sobretudo nesses tempos sombrios e de múltiplas pandemias (na saúde, na sociedade, na política...), é ato de sanidade, fé e coragem.

E resistir é preciso. Boa leitura!

Por F@bio

segunda-feira, 5 de abril de 2021

Guerreiro Camaleão, O soldado do Kaiser - Germano Schinkoeth Reis

"Duas horas direitinho, nós aguentamos no mais terrível fogo de granadas. Por sorte, a maioria passava por cima de nós. Escutamos altos brados de comando lá na frente, eram os pioneiros que tinham terminado o serviço de demolição. Ordeno a retirada. Retornamos, aproveitando grande parte da vala como proteção. Dois homens mal conseguiam andar. O fogo inimigo estava tão forte que, na retaguarda, ficaram admirados com a nossa chegada e com a missão cumprida.
... Porto de Bremen, setembro de 1880. Consegui emprego como foguista no vapor 'Berlin'. Tive que pagar doze marcos para o oficial que contrata os marinheiros. Era meu último dinheiro, sobrou apenas um marco. Eu pensava em ir para a América, Austrália ou África. Mas o navio vai para o Brasil, para a América do Sul.
... Em uma pequena venda, mais voltada para o comércio de bebidas, conheci Otto, um ferreiro, que está há mais de dois anos em São Paulo e também só conseguiu juntar umas poucas economias. Ele disse que vai tentar a sorte na Amazônia (...) [onde] está existindo um eldorado da borracha e muitos estão ficando ricos com ela ... Falou-me também de uma região no interior do Rio de Janeiro, um pouco ao norte, onde existia outro eldorado verde, o do café. Argumentei com ele, como pode ser ouro verde, se o café é preto? Ele explicou que naquela região montanhosa, todos os morros estavam cobertos de cafezais de um tom verde muito bonito, e que na época da floração, ficavam brancos de flores, como um brilho. Como estava gerando muitas riquezas, apelidaram-no de 'ouro verde'.
... Agora vejo a vida como um tabuleiro de xadrez, com suas peças dispostas de forma ordenada. As mais importantes ficam atrás, mais protegidas. A linha de frente, a dos peões, é a primeira a ir para o sacrifício, sem piedade. Com isso fica fácil entender que só os grandes lances, os mais inteligentes e incomuns podem levar à vitória. Sinto que estou fazendo isto agora.
... Quando está acontecendo uma grande guerra, que direta e indiretamente afeta quase todos, por vezes até mesmo quem se encontra distante, é dificil que esse assunto não faça parte de quase todas as conversas. Sabendo de minha participação na [guerra] Franco - Prussiana, Zambrotti, quase que suplicando, insistiu para ouvir como é uma guerra por dentro, contada em detalhes, sem mentiras ou exageros que tanto aparecem nos jornais. Pensei um pouco antes de responder e fui bem claro. - Escute bem, Zambrotti. Prefiro não falar sobre isso, porque não são boas lembranças. Mas vou te contar sobre algo melhor, não sei se na sua terra natal existe alguma coisa parecida. Também não sei se era uma tradição familiar ou regional de onde nasci; bem ao norte, quase na fronteira com a Polônia. Sempre que um rapaz terminava os estudos de sua profissão, antes de começar a trabalhar, tinha que fazer uma espécie de iniciação para a vida. Ela consisitia em uma peregrinação solitária, sem dinheiro, munido apenas de um cajado e uma pequena trouxa de roupas. Eu realizei aos dezesseis anos de idade, logo após minha formatura. (...) Meu pai me entregou o cajado que ele e meu avô já tinham usado, e me explicou que era para cultivar três virtudes: liberdade, humildade e coragem. Já adulto é que compreendi melhor esses valores, que muito me ajudaram a vencer na vida. Quanto à liberdade, era para cortar o cordão umbilical com a família. Descobrir seu grande valor, e sempre fazer por onde nunca perdê-la. Quanto à humildade, cultivada pedindo comida nas casas, era para aprender a não ter vergonha de pedir ajuda, mas sem se curvar, sem subserviência. Por fim, a coragem. Para enfrentar a vida sem medo, sem se acomodar, caminhando sempre em frente, em busca de um sonho a ser realizado. Foram dois meses caminhando pelo norte da Alemanha. Quando retornei, senti que já era um homem, pronto para enfrentar a vida."
Trecho do romance biográfico "Guerreiro Camaleão - O soldado do Kaiser", de autoria de Germano Schinkoeth Reis. São Paulo: All Print Editora, 2013.
Germano Schinkoeth Reis é médico formado pela Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro, que "encontrou na cirurgia plástica e reparadora sua realização profissional". Militou na política e foi vereador por três mandatos, de 1993 a 2004, no município de Natividade (RJ), chegando a ser presidente da Câmara Municipal. Autor ainda do livro "Medicina Simples - Orientações e Medicações", pela Editora Vozes (2000).
O livro é baseado nos diários do avô do autor, o empresário germânico Carl Heinrich Schinkoeth, nascido em 1851, em Beneschau/Schleisien - Alemanha, e falecido em 1928, em Natividade (RJ). O médico Germano S. Reis revelou-se um ótimo escritor que conseguiu dar um ritmo de aventura aos diários do avô. Como consta da contracapa do livro "Grandes escritores conseguem transformar biografias simples, com histórias comuns, em excelentes e famosos romances. Aqui se encontra quase o inverso, isto é, em linguagem simples, conta-se uma história riquíssima; quase inacreditável, mas verdadeira. Para não torná-la longa e enfadonha, a maior parte das anotações do personagem (quatro volumes em alemão) foi cortada para não cansar o leitor".
A trajetória de Carl começa a ser relatada com a sua participação na guerra Franco - Prussiana. Um jovem soldado que no front lidera seus companheiros e é condecorado com a mais alta distinção de bravura da época, a Cruz de Ferro, da qual ele, ao longo da vida, não irá se vangloriar. Pelo contrário, como no trecho acima transcrito, evitará falar sobre a guerra porque "não são boas lembranças". Após sua participação no conflito, ele irá trabalhar em condições muito duras em seu país, até decidir buscar melhores perspectivas no exterior. Por um acaso da vida e também pela falta de dinheiro, acaba embarcando num navio para a América, não a do Norte e sim a do Sul, vindo parar no Brasil, aportando em Santos, onde consegue fugir do inferno que era trabalhar de foguista nos porões da embarcação, sendo tratado praticamente como um escravo. No Brasil, um conterrâneo lhe informa sobre duas opções para ganhar dinheiro com "ouro verde": a borracha na Amazônia e o café no norte do Estado do Rio de Janeiro. Ele vai para a Amazônia e consegue ganhar dinheiro. Depois, volta para sua amada, Anna, que deixara na Alemanha. Mas a vida lá não estava fácil e Carl convence Anna a vir com ele para o Brasil, indo morar em Manaus, onde se torna industrial. Todavia, Anna não se adapta ao clima quente e úmido da cidade. Carl decide então ir em busca do outro "ouro verde". De trem chega a Natividade e lá se estabelece como comerciante e, após conhecer a serra de Varre-Sai de onde vinham tantas tropas de mulas carregadas de "ouro verde", exportador de café.
Como afirma seu neto, Germano, Carl Schinkoeth "no período da guerra que lutou, em que não se vangloriou de seus feitos, também [não] o fez no período em que se aventurou intrepidamente pela Amazônia e no mundo dos negócios, onde, de certa forma, existe um outro tipo de guerra, mas de inteligência e esperteza na disputa pelo dinheiro".
Me envolvi com a pesquisa genealógica - um vício - e por tal razão estou sempre pesquisando minhas origens. Nasci numa fazenda de café justo em Varre-Sai, e foi uma maravilha ler o livro e conhecer o relato de Carl ao subir a serra rumo às plantações de café no final do Século XIX. Trata-se de um período carente de relatos da geografia e economia da região e o livro trás um importante contribuição para conhecermos um pouco mais da vida regional na época. Aliás, a literatura é cada vez mais reconhecida como rica fonte de pesquisa histórica.

segunda-feira, 29 de março de 2021

Quarto de despejo - Carolina Maria de Jesus

"...A tontura da fome é pior do que a do alcool. A tontura do alcool nos impele a cantar. Mas a da fome nos faz tremer. Percebi que é horrível ter só ar dentro do estomago.

Comecei a sentir a boca amarga. Pensei: já não basta a amargura da vida? Parece que quando eu nasci o destino marcou-me para passar fome. Catei um saco de papel. Quando eu penetrei na rua Paulino Guimarães, uma senhora me deu uns jornais. Eram limpos, eu deixei e fui para o depósito. Ia catando tudo que encontrava. Ferro, lata, carvão, tudo serve para o favelado. O Leon pegou o papel, recebi seis cruzeiros. Pensei guardar o dinheiro para comprar feijão. Mas, vi que não podia porque o meu estomago reclamava e torturava-me.

... Resolvi tomar uma media e comprar um pão. Que efeito surpreendente faz a comida no nosso organismo! Eu que antes de comer via o céu, as arvores, as aves tudo amarelo, depois que comi, tudo normalizou-se aos meus olhos.

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Quando puis a comida o João sorriu. [Os filhos] Comeram e não aludiram a cor negra do feijão. Porque negra é a nossa vida. Negro é tudo que nos rodeia.

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Quando eu fui catar papel encontrei um preto. Estava rasgado e sujo que dava pena. Nos seus trajes rotos ele podia representar-se como diretor do sindicato dos miseraveis. O seu olhar era um olhar angustiado como se olhasse o mundo com despreso. Indigno para um ser humano. Estava comendo uns doces que a fabrica havia jogado na lama. Ele limpava o barro e comia os doces. Não estava embriagado, mas vacilava no andar. Cambaleava. Estava tonto de fome.

...

... Eu escrevia peças e apresentava aos diretores de circos. Eles respondia-me:

- É pena você ser preta.

Esquecendo eles que eu adoro a minha pele negra, e o meu cabelo rustico. Eu até acho o cabelo de negro mais iducado do que o cabelo de branco. Porque o cabelo preto onde põe, fica. É obediente. E o cabelo de branco, é só dar um movimento na cabeça ele já sai do lugar. É indisciplinado. Se é que existe reincarnações, eu quero voltar sempre preta.

...

... As oito e meia da noite eu já estava na favela respirando o odor dos excrementos que mescla como barro podre. Quando estou na cidade tenho a impressão que estou na sala de visita com seus lustres de cristais, seus tapetes de viludos, almofadas de sitim. E quando estou na favela tenho a impressão que sou um objeto fora de uso, digno de estar num quarto de despejo.

...

... A noite está tepida. O céu já está salpicado de estrelas. Eu que sou exotica gostaria de recortar um pedaço do céu para fazer um vestido."


Trechos do livro "Quarto de despejo: diário de uma favelada", de Carolina Maria de Jesus. São Paulo: Ática, 2014.


Carolina Maria de Jesus (1914 - 1977), mãe solteira de três filhos, nascida em Sacramento (MG), foi catadora de papel e outros produtos descartados pelos moradores e comerciantes. Morou na favela do Canindé, a beira do rio Tietê, na cidade de São Paulo, favela desocupada em meados da década de 1960. Semianalfabeta, que só pode cursar até o segundo ano do ensino primário, era "apaixonada por livros, ela alimentava sonhos e desabafava a sua triste realidade nas folhas encardidas de seus cadernos". Os diários foram descobertos pelo jornalista Audálio Dantas, que foi à favela para fazer uma reportagem. Logo percebeu a originalidade dos textos de Carolina e reproduziu trechos do livro em suas reportagens. Depois conseguiu a publicação na forma de romance, com a grafia original da autora, que obteve muito sucesso e foi traduzido para treze idiomas. 


Como diz Audálio Dantas, no prefácio da edição em comento: "O sucesso do livro - uma tosca, acabrunhante e até lírica narrativa do sofrimento do homem relegado à condição mais desesperada e humilhante da vida - foi um sucesso pessoal de sua autora, transformada de um dia para outro numa patética Cinderela, saída do borralho do lixo para brilhar intensamente sob as luzes da cidade". E prossegue dizendo que o "cenário em que foi escrito o diário já não é o mesmo. Parte dele deu lugar ao asfalto de uma nova avenida, por coincidência chamada de Marginal. A Marginal do Tietê, que passa por ali onde até meados dos anos 1960 se erguia o caos semiurbano e sub-humano da favela do Canindé, em São Paulo. O resto foi ocupado por construções sólidas, ordenadas, limpas, aprumadas no lugar dos barracos cujos ocupantes foram para outros cantos da cidade, para outros quartos de despejo". E continua afirmando que "a favela do Canindé multiplicou-se em dezenas, centenas de outras. Assim, Quarto de despejo não é um livro de ontem, é de hoje. Os quartos de despejos, multiplicados, estão transbordando."

Pouco mais é preciso dizer sobre esta obra que foi classificada como um exemplo de "literatura verdade", relatando a vida cruel de parte da cidade partida, onde vivem os excluídos dos bônus, mas incluídos nos ônus da sociedade. A narrativa de Carolina das agruras da vida de uma marginalizada nos anos 1950 parece cruelmente atual quando nos deparamos com as inúmeras habitações em condições sub-humanas existentes em praticamente todas as grandes e médias cidades do país. O Brasil de grandes riquezas permanece enormemente desigual.

Mas o que mais me marcou no livro foi o relato da fome. A fome em meio a abundância. É duro ler o relato da dor de não ter o que dar de comer para os filhos, a não ser uma rala sopa de ossos obtidos na lixeira do frigorífico. O ser humano conseguiu formar uma sociedade de exclusão, na qual 2.153 bilionários do mundo têm mais riqueza do que 4,6 bilhões de pessoas – ou cerca de 60% da população mundial, segundo relatório da Oxfam do início de 2020.

Boa leitura e reflexão!


Por F@bio


segunda-feira, 8 de março de 2021

A resistência - Julián Fuks

"Meu irmão é adotado, mas não posso e não quero dizer que meu irmão é adotado. Se digo assim, se pronuncio essa frase que por muito tempo cuidei de silenciar, reduzo meu irmão a uma condição categórica, a uma atribuição essencial: meu irmão é algo, e esse algo é o que tantos tentam enxergar nele, esse algo são as marcas que insistimos em procurar, contra a vontade, em seus traços, em seus gestos, em seu atos. Meu irmão é adotado, mas não quero reforçar o estigma que a palavra evoca, o estigma que é a própria palavra convertida em caráter. Não quero aprofundar sua cicatriz e, se não quero, não posso dizer cicatriz.

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Na minha lembrança os olhos do meu irmão estavam lacrimosos, mas desconfio que essa seja uma nuance inventada, acrescida nas primeiras vezes que rememorei o episódio, turvado lá por algum remorso. Ele estava sentado no banco da frente. Se chorava, decerto continha qualquer soluço e escondia as lágrimas com as mãos; ou voltava o rosto para a janela, extraviava a vista em presumíveis pedestres. O caso é que não olharia, não viraria para trás. Talvez fossem os meus, os olhos, lacrimosos.

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É preciso aprender a resistir. Nem ir, nem ficar, aprender a resistir. Penso nesses versos em que meu pai não poderia ter pensado, versos inescritos na época, versos que lhe faltavam ... Resistir: quanto em resistir é aceitar impávido a desgraça, transigir com a destruição cotidiana, tolerar a ruina dos próximos? Resistir será aguentar em pé a queda dos outros, e até quando, até que as pernas próprias desabem? Resistir será lutar apesar da óbvia derrota, gritar apesar da rouquidão da voz, agir apesar da rouquidão da vontade? É preciso aprender a resistir, mas resistir nunca será se entregar a uma sorte já lançada, nunca será se curvar a um futuro inevitável. Quanto do aprender não será aprender a perguntar-se?


Trechos do romance "A resistência", de Julián Fuks. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.


Julián Miguel Barbero Fuks é paulistano, nascido em 1981, filho de pais argentinos. É graduado em Jornalismo, com mestrado em Letras e doutorado em Teoria Literária e Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo (USP). Crítico literário e jovem autor de algumas obras premiadas: "História de literatura e cegueira" (2007) e "Procura do romance" (2012), ambos finalistas dos prêmios Jabuti e Portugal Telecom; "A Resistência" (2015) ganhador dos prêmios Jabuti e Literário José Saramago. 

Em sua ficção, mesclada com fundas reflexões e memórias autobiográficas, o autor nos traz o delicado e complexo tema da adoção, no caso de um irmão mais velho, anterior ao seu nascimento, quando os pais residiam em Buenos Aires. Tempos tensos em que a resistência por vezes exige recuos, retiradas, exílio. Os pais fogem apressados de uma ditadura a outra, mas esta, a do Brasil, deveria ser transitória, de passagem para outros destinos. Mas a cidade acolhe e resistir também é ficar. Os pais acabam sendo adotados por São Paulo, onde fixam residência e têm outros filhos. 

O próprio autor, em entrevista à revista Cult, nos conta que o título inicial, que seria "O irmão possível", acabou sendo abandonado e "A resistência" se impôs: "... surgiu e me pareceu complexo o bastante, porque há muitas resistências ao longo do livro. Pode não estar mencionada assim. A resistência dos pais à ditadura militar é a mais imediata, mas há a resistência do irmão ao convívio familiar, a resistência do narrador ao contar essa história. Então tem uma série de resistências atravessando o livro e é aproximando dessa noção mesmo: de resistir como um ato simples de existência, existir e resistir como duas coisas muito relacionadas. Hoje está se fazendo muito esse trocadilho com o reexistir: voltar a existir. Resistir seria uma forma de voltar a existir. Gosto, especialmente, do que a palavra tem de ambivalente: resistência como algo negativo, como uma recusa a alcançar algo ou, pelo contrário, como um ato de força, de posicionamento diante de uma situação que exige uma tomada de posição. Eu gosto de pensar a literatura como capaz de fazer essa transição: do sentido mais negativo de resistência para o sentido mais positivo. Por meio da escrita a gente pode transformar uma resistência na outra". (Lei a entrevista completa em: https://revistacult.uol.com.br/home/o-brasil-e-incapaz-de-refletir-sobre-seu-passado-diz-julian-fuks/)

O ato de resistir é a luta cotidiana pela existência e pela liberdade, é a busca sem tréguas pela vida, e isso exige se contrapor a quem prega a morte e a submissão. Sobretudo nesses tempos de desvalorização da vida e supressão da liberdade, resistir é preciso, necessário, é ato de fé e coragem.

E resistir também é ler um livro. Uma ótima leitura e vamos resistir!

Por F@bio


sexta-feira, 26 de fevereiro de 2021

Seu amigo esteve aqui - Cristina Chacel

"Aos 21 anos, quando entra para a Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), onde vai estudar sociologia e política, Beto já é um homem-feito. Porte atlético nos seus um metro e oitenta centímetros de altura e dono de um estonteante par de olhos verdes, arranca suspiros das garotas ao passar. Inteligente, bem humorado, gosta de andar bem-vestido, chama a atenção por isso. É um tipo amável, fácil de lidar, que se adapta rapidamente aos novos ambientes. Em pouco tempo, torna-se popular. Todo mundo o conhece na UFMG, a primeira escala de uma trajetória revolucionária que o levaria, em dez anos, à condição de desaparecido político da ditadura militar brasileira."

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"Vem dele, Sergio, a vontade de contar a história de Breno. Depois daquela manhã de 15 de fevereiro de 1971, ele nunca mais foi visto. Não se sabe, até hoje, como foi preso. Há poucos testemunhos sobre seu paradeiro. O mais provável foi revelado à militante e amiga Inês Etienne Romeu, quando esteve presa em um centro clandestino de tortura na serra fluminense de Petrópolis, que ficou conhecido como Casa da Morte. Lá, um dos agentes lhe confidenciou: 'Seu amigo esteve aqui.' Por sinistra coincidência, esse torturador havia sido jogador de basquete, em Belo Horizonte, na mesma época em que Carlos Alberto Soares de Freitas - conhecido então por seu apelido, Beto - atuava nas quadras. E ambos teriam se reconhecido."

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"Passados quarenta anos, ela se esforça para lembrar o que treinou esquecer. Como a última vez que viu Breno ela estava no Rio, de passagem, para participar do Festival de Teatro da Aldeia de Arcozelo, em Paty do Alferes, cidade do interior fluminense. Caminhava por Copacabana quando, de repente, se vê frente a frente com Breno. Um susto! Os dois se abraçam e Breno, ao saber que ela estava ali para um festival de teatro, tem um impulso:

- Eu vou te dar um livro! - diz.

Em seguida, ele entra com Margaret numa livraria perto dali e compra para ela um exemplar de Perseguição e assassinato de Jean-Paul Marat, de Peter Weiss. Primeiro grande sucesso do dramaturgo alemão, a peça de 1964 mergulha no conflito entre a individualidade e a necessidade da revolução. Bem guardado por Margaret até os dias de hoje, o livro não tem dedicatória, como era de se esperar de quem não pode deixar rastros..."



Trecho do livro "Seu amigo esteve aqui: a história do desaparecido político Carlos Alberto Soares de Freitas, assassinado na Casa da Morte", de autoria de Cristina Chacel. Rio de Janeiro: Zahar, 2012.



A jornalista Cristina Chacel esteve nas principais redações dos jornais do Rio de Janeiro: O Globo, Jornal do Brasil, Última Hora, Rádio JB, nos quais atuou como repórter, redatora, editora e colunista nas áreas de economia e tecnologia. Depois seguiu carreira como jornalista independente trabalhando em comunicação corporativa e institucional, marketing político, projetos sociais e solidários. Entre outros livros, Cristina lançou ainda "Janelas Abertas", em coautoria com o fotógrafo Rogério Reis; "Centro", da Coleção Bairros do Rio (Neighborhoods);  "O tatu saia da toca- histórias da internacionalização da Petrobrás"; "Arte e Ousadia"; "Rio de Contos 1000" e "Guanabara espelho do Rio", os dois últimos em coautoria com o marido e fotógrafo Custódio Coimbra. E ainda vários livros publicados com temáticas em políticas públicas e projetos sociais e solidários do Rio de Janeiro. 


Como lembra Álvaro Caldas no prefácio de "Seu amigo esteve aqui": "Vinte e sete anos depois que retornou à democracia, o Brasil ainda luta para desenterrar um doloroso legado perdido que, aos poucos e a duras penas, vem sendo reconstituído".

Cristina faleceu em 28 de julho de 2020 a tempo ainda de viver o grande retrocesso nessa luta. Felizmente com sua ampla pesquisa e relato, a história de Beto e de seu tempo foi por ela muito bem desvelada no livro em comento. 

Ainda segundo Álvaro Caldas: "Como se fosse um romance de não ficção, intercalando investigação jornalística, autobiografia e crônica, na fronteira entre os fatos e o relato ficcional, o texto segue os passos do mito criado em torno de um militante desparecido para devolvê-lo à história real. Eis então que temos de novo entre nós o 'nosso amigo' guerreiro, o que pode não ser um consolo, mas oferece uma valiosa contribuição para a construção da Verdade, e é um soco na cara dos carrascos que o assassinaram".

Também cursei Ciências Econômicas, mas na Universidade Federal Fluminense em Niterói. Ingressei em 1975, tempos da ditadura e época em que o coordenador do curso havia sido preso e era mantido incomunicável. Participei da iniciativa de criação de uma cooperativa de livros e, indo a Belo Horizonte, fui a UFMG conhecer a renomada cooperativa que lá existia justo na mesma faculdade em que Beto estudou. Na época não sabia da sua história, como poderia saber?

Conheci Cristina há pouco tempo, mas o suficiente para saber que ela era uma pessoa alegre e lutadora, que sabia traduzir em palavras as emoções de momentos especiais e comover os que estavam ao seu lado. Lutou no jornalismo, na ecologia, nos sindicados e organizações sociais, na política e contra um câncer, nem todas venceu, mas deixou um inestimável legado, como o livro resgate da história de Carlos Alberto Soares de Freitas. Com um texto muito bem costurado, onde cria um clima de suspense ao narrar uma história verídica de um militante desaparecido político no obscuro período da ditadura militar no Brasil.

Com ampla pesquisa em arquivos públicos e pessoais, depoimentos e reportagens de época, Cristina trás a luz a luta de um idealista contra o autoritarismo e as sombras do regime autoritário de 1964. Carlos Alberto Soares de Freitas, o Beto ou Breno foi um dos três militantes homenageado por sua companheira de lutas que viria a ser presidente da república, Dilma Rousseff. Numa narrativa envolvente, o livro é importante contribuição para desvelar uma parte da história brasileira que alguns tentam esconder, para não revelar suas atrocidades como agentes do estado brasileiro. 

Um belo resgate da verdade e revelador das masmorras que não podem ser ignoradas como querem os atuais ocupantes do governo federal no Brasil.

Boa leitura e reflexão para todos!

Por F@bio


quarta-feira, 17 de fevereiro de 2021

A Viragem dos Ventos - Maruza Bastos

"...Ela todo sorrisos, esforçava-se para se integrar à turma. Tudo corria bem até a conversa descontraída virar uma curva fechada e engrenar na perigosa direção de uma cumplicidade engajada. Não tinha estofo para compartilhar. Isolou-se intimidada com a desorientação que precisava urgentemente disfarçar. Emudeceu, amordaçando a ignorância; o fulgor de seu rosto desaparecia quanto mais se refugiava. Envergonhou-se. A seus olhos, a falta de saber lhe pareceu inconcebível. O que sucedera com a vitalidade juvenil, a que viera se assegurar junto às autoridades médicas do Rio? Levantou-se. Não foi fácil manter o corpo ereto e os passos firmes.

...

Veio à tona o êxtase vivido nos dias presentes. O sentido e a beleza da alforria que experimentara no Rio. Horizontes impensados se descortinavam diante dela como estrelas novas que nasciam. Não, nada disso poderia ser pecado, nem induziria a sacrifícios de mortificação. Um fio ligava a liberdade conquistada à tradição de sua história daqueles dias longínquos. Esse encontro desencontro pulsava, contração expansão; o universo no peito batendo, contração expansão; o sentido da existência, contração expansão; o bombear do coração, contrair expandir.

Esse todo verdade de repente a invadiu com uma garra insondável pela vida. Revirado em júbilo, o sentimento se verteu em clara evidência. Ainda tenho um amor novo inteiro para viver, murmurou, abstraindo em reza a força da devoção. De onde surgia tamanho arroubo que arremessava para longe os traços de sua fraqueza?"


Trechos do romance A Viragem dos Ventos, de Maruza Bastos. Rio de Janeiro: Ape'Ku Editora, 2020.


Maruza Bastos é carioca, psicóloga e psicanalista que realizou sua formação na Sociedade de Psicanálise Iracy Doyle da cidade do Rio de Janeiro, onde atua. Mestre e Doutora em Psicologia, foi professora universitária, pesquisadora e atuou também na justiça da infância e adolescência. É autora ainda dos livros "Olhos de Serpente", romance de 2015, e "Cárcere de Mulheres",  dissertação de 1997. Publicou os contos: "O Cofre de Extima" (2009), "Bicho Solto" (2011) e "Carta ao Irmão" (2015). Alguns desses e outros de seus escritos estão registrados em www.freudeslizar.blogspot.com.



No romance A Viragem dos Ventos, a protagonista - Gigi - é uma ex-modelo de sucesso que deu uma virada para uma vida burguesa e pacata no campo, casando-se com rico fazendeiro e passando a morar em Cuiabá com o marido e um casal de filhos. Tendo a beleza como uma preocupação central em sua vida, decide fazer um checkup com especialistas no Rio. Mas antes programa uma parada em São Paulo para reencontrar amigas e, quem sabe, amores do passado.

Ao chegar no Rio, seus planos são atravessados por um turbilhão de acontecimentos. Novas amizades, novas experiências, novos questionamentos, novas aventuras. Essa tempestade de acontecimentos surge como um vendaval que se contrapõe ao tradicionalismo e a mesmice da vida de Gigi. Diante dessa ebulição, afloram desejos reprimidos: "ela atravessa o mar pulsional de sua existência", em meio a ativismos político, ambiental, existencial que insuflam "no espírito de cada um a urgência de uma escolha" e o amor nem sempre é a escolha mais óbvia e simples.

Uma ótima leitura e que os bons ventos da viragem cheguem em breve nesses tempos de isolamento e pandemias.

Por F@bio


quinta-feira, 28 de janeiro de 2021

Coração das Trevas - Joseph Conrad

"Dali a alguns dias a Expedição Eldorado penetrou na selva paciente, que se fechou novamente atrás deles como as águas do mar à passagem de um mergulhador...

Subir aquele rio era como viajar de volta aos primórdios da existência do mundo, quando a vegetação cobria a Terra em desordem e árvores imensas reinavam nas matas. Um curso de água intacto, um grande silêncio, uma floresta impenetrável. O ar era quente, denso, pesado, inerte. Não havia alegria alguma no brilho da luz do sol. Os longos trechos de rio se estendiam, desertos, até a escuridão das distâncias envoltas em sombras. Em bancos de areia prateada. hipopótamos e crocodilos tomavam sol lado a lado. O leito cada vez mais largo do rio corria pelo meio da multidão de ilhas arborizadas. Era tão fácil perder-se naquele rio quanto num deserto, e você passava o dia inteiro raspando o fundo do barco nos baixios, tentando encontrar o canal, até achar que tinha sofrido algum feitiço e fora separado para sempre de tudo que algum dia conhecera - em algum lugar - muito distante - numa outra existência, talvez. Havia momentos em que o passado me tomava de assalto, como ocorre às vezes quando você não tem um momento sequer para si mesmo; mas chegava na forma de um sonho inquieto e ruidoso, rememorado com espanto em meio às realidades avassaladoras daquele estranho mundo de plantas, água e silêncio. E essa calmaria da vida em nada lembrava a paz. Era a calma de uma força impiedosa, pairando acima de uma intenção inescrutável. Ela nos contemplava com uma expressão de vingança...

As águas pardacentas corriam rápidas para longe do coração das trevas, levando-nos rio abaixo na direção do mar ao dobro da velocidade do nosso avanço a montante; e a vida de Kurtz também se escoava depressa, esvaindo-se, esvaindo-se do seu coração para ir desaguar no mar do tempo inexorável..."


Trechos do livro "Coração nas trevas", de Joseph Conrad (trad. Sergio Flaksman). São Paulo: Companhia das Letras, 2008.



Jozef Teodor Konrad Korzeniowki (1857 - 1924), filho de poloneses, nasceu em Berditchev, Polônia (hoje Ucrânia) à época dominada pela Rússia czarista. Seu primeiro contato com a língua inglesa deu-se através do pai, tradutor de Shakespeare e outros autores renomados. A família foi perseguida politicamente e Conrad ficou órfão ainda cedo. Aos 16 anos viajou para Marselha na França para realizar seu desejo de viver no Mar, ingressando na Escola de Marinha. Em 1878 mudou-se para a Inglaterra, onde seguiu carreira na marinha, e em 1884 obteve a cidadania britânica com o nome Joseph Conrad. Esteve no Congo, Malásia e outros países que inspiraram muitos de seus romances. Após ter abandonando a carreira na marinha, em 1893, em razão de doenças contraídas na América do Sul e Extremo Oriente, passando a dedicar-se à literatura. Publicou o primeiro livro aos 38 anos, "A loucura do Almayer". Dentre suas obras de maior destaque estão "Lord Jim" (1900), "Coração das trevas" e "Juventude" - veja breve resenha aqui no Cargueiro de Letras - (1902), "O agente secreto" (1907), "Sob os olhos ocidentais" (1911) e "A linha da sombra" (1917). Conrad faleceu na Inglaterra em 1924. .


Publicado em forma de livro em 1902, a novela Coração das trevas é um dos maiores clássicos da literatura do Século XX, conhecida também por ter sido fonte de inspiração para o filme Apocalypse Now, de Francis Ford Coppola de 1979.

No livro, o protagonista recebe a missão de resgatar um importante comprador de marfim, cujos métodos já não atendem mais aos interesses da empresa. Trata-se de uma história dentro da história, no qual um narrador implícito, nos apresenta ao protagonista, Marlow, que se torna o narrador principal. Ele então passa a contar a sua aventura na África (Congo) para amigos a bordo de um navio ancorado no Rio Tâmisa. O tempo vai anoitecendo sobre Londres e, com isso, a atmosfera densa e pesada da narrativa acaba envolvendo os ouvintes e também os leitores. 

Conforme Luiz Felipe de Alencastro aborda no posfácio "Persistência das trevas", incluso na edição em comento: "De mais a mais, a intensidade e a sutileza da novela, bem como as questões morais, históricas e literárias nela introduzidas, convertem-se num dos textos obrigatórios... Ensaios e comentários críticos sobre Coração das trevas privilegiam, de maneira geral, duas linhas de interpretação em boa medida complementares: a primeira, cujo conteúdo está sobretudo na metade inicial do texto, concerne à desumanização e à violência engendradas pelo colonialismo europeu na África. Mais baseada na outra metade da novela, a segunda leitura aponta para a inquietação existencial e o desregramento de indivíduos confrontados com a ruptura dos laços sociais". 

Fala-se muito ultimamente na questão do racismo e muitos não se dão conta de quão enraizada ele está na estrutura de nossa sociedade, desde que a cor da pele passou a ser a característica depreciativa da pessoa e razão para ser tratada como ser inferior, inclusive por diversos pseudos estudos acadêmicos e científicos. Conrad traça uma crítica ao colonialismo e Alencastro relembra o que o autor escreveu anos depois do lançamento: "Este tema sombrio tinha de ser tratado com uma sinistra ressonância, uma tonalidade própria, uma vibração continua que, eu esperava, soaria no ar e permaneceria no ouvido depois que a última nota tivesse sido tocada".  Ainda segundo Alencastro, "mais de cem anos após sua publicação, a novela ainda nos interpela como leitores e como cidadãos do mundo". E não poderia ser diferente, pois quase um século e meio após o termino da escravidão negra no Brasil, a questão do racismo que restou como herança maldita daquele longo período, ainda persiste entre nós, lamentavelmente.

Boa leitura e reflexão!

Por F@bio


segunda-feira, 11 de janeiro de 2021

Nas águas desta baía há muito tempo - Contos da Guanabara - Nei Lopes

 "Guanabara, pelo que eu sei, é um tipo de embarcação de um mastro só e vela grande, a tal da bujarrona. Mas dizem que os índios antigos chamavam assim isto tudo aqui, toda esta lagoa enorme de água salgada. Guaná-pará, eles diziam.

Guaná é "seio", "colo"; e pará é "mar". Então, eles achavam que esse mundão de água era o "seio do mar", veja você! Ou o seio, a mama, de onde brotava a água do mar.

...


No Valongo, quando chegava um comprador, quase sempre cercado de ciganos, calçados de botas, brincos nas orelhas e chicote - cada um tentando convencer o comprador de que sua mercadoria e seu preço eram melhores -, os negros se agitavam, se alegravam e se ofereciam à venda. Mas quando o negócio era fechado, era aquele desespero: irmãos separados; filhos arrancados dos pais, casais desfeitos ... E, de modo geral, aquilo era para sempre: nunca mais parentes, amigos, maridos, mulheres ... Nunca mais.

Valonguinho assistiu a muitas dessas cenas. Mas jamais esboçou qualquer expressão de tristeza ou alegria. Sozinho veio, sozinho ficou, sozinho foi se desfazendo, assim, sem parentes, sem amigos, sem idade, como um cão da rua, como uma pedra do cais. Talvez fosse melhor morrer ali mesmo e ali mesmo ser enterrado. Junto com os milhares de pretos novos que já chegaram quase sem vida ou, de modo inapelável, condenados à morte e ao esquecimento."



Trechos do livro de contos "Nas águas desta baía há muito tempo: contos da Guanabara", de Nei Lopes. Rio de Janeiro: Record, 2011.




Nei Lopes, carioca nascido em Irajá, aos 20 anos ingressou na Faculdade Nacional de Direito, mas acabou trocando a carreira de bacharel pela de compositor de música popular e escritor de ensaios, ficção e poesia. Em 1981, publicou seu primeiro ensaio: "O samba, na realidade: a utopia da ascensão social do sambista". Depois vieram outros com foco nas questões da negritude, até que, em 1987, publicou sua primeira obra de ficção: "Casos crioulos". Entre os ensaios escreveu também "Dicionário de banto", "Enciclopédia da diáspora africana", "Dicionário da antiguidade africana". Lopes ganhou o Prêmio Jabuti nas categorias Melhor Livro de Não Ficção e Livro do Ano com "Dicionário da história do samba", em coautoria com Luiz Antônio Simas. Recebeu também o prêmio Shell de Teatro pelas canções do musical "Bilac vê estrelas", de Heloisa Seixas e Júlia Romeu.  

O romance histórico é tido como um gênero literário em prosa em que a narrativa ficcional se ambienta no passado. No livro, Lopes nos brinda com 18 contos que nos levam a uma viagem aos primórdios da ocupação da baía da Guanabara, uma baía ainda de águas cristalinas, cheias de peixes e ilhas, praias e enseadas que não existem mais em razão da poluição e aterros. Nessa arqueologia, o autor nos traz nomes de locais já esquecidos e apagados dos mapas, palavras que caíram em desuso, narrativas e histórias que se perderam no tempo. Mas Lopes nos apresenta uma baía que não necessariamente existiu de fato, mas que é bem real  na desigualdade, na miscigenação, na violência, nas epopéias, na diversidade, nos mistérios. Uma baía de contrastes.

Na infância e juventude morei em Niterói, em alguns endereços bem perto do mar da baía: Praias das Flechas, Icaraí e Boa Viagem. A vida em torno dessa baía é cheia de encantos, contrastes e mistérios. Lopes nos apresenta algumas versões bem humoradas que procuram desvendar alguns desses mistérios.  

Em entrevista a Ana Maria Gonçalves (https://livreopiniao.com/2017/09/05/em-entrevista-nei-lopes-conversa-sobre-seu-novo-livro-nas-aguas-desta-baia-ha-muito-tempo/), Nei Lopes informa de onde veio a ideia do livro: 

"- O que tem acontecido mais é a vontade de contar a história e eu escolher o lugar onde ela vai se desenvolver. Mas no caso deste 'contos da Guanabara', tudo começou pela constatação enorme de ilhas e ilhotas existentes na nossa Baía. No meu trajeto, da periferia onde moro até a capital, isso um dia me ocorreu. E a ideia começou a tomar forma numa viagem de barca a Paquetá. Aí, busquei na memória e nos livros as referências: Lima Barreto na Ilha do Governador e estudando em Niterói; o maestro Anacleto de Medeiros em Paquetá; o episódio de João Cândido… Mas cravei, mesmo, a seta no alvo quando li detalhes sobre a Revolta da Armada, no fim do século 19. Aí, resolvi fazer desse evento histórico, a âncora (sem trocadilho) do conjunto de contos que escrevi." 

E mais adiante acrescenta: 

"- A  grande história que eu venho contando é a da exclusão do povo negro. Isso é o que perpassa toda a minha obra. E acho que venho conseguindo fazer isso sem lamúria, com picardia, com molho, com 'suingue'. Afinal de contas, eu sou sambista; e isso para mim é fundamental..." 

Como diz a música de Aldir e Bosco: "há muito tempo nas águas da Guanabara..." Não perca a oportunidade de entrar nessa nau e empreender essa viagem no tempo.   

Boa leitura e diversão!

Por F@bio


segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

Fim - Fernanda Torres

 "Como é possível prosseguir sem planos? Aos vinte, assassinam-se amores, amizades, vai-se em frente como uma flecha afiada: só mais tarde se aprende quão raros são os reais afetos. Não acredito em paixões tardias, não se ama mais depois dos quarenta. É mentira. No máximo, faz-se em acordo formal, finge-se saudade, apreço, mas a biologia não precisa dos arroubos juvenis de um velho."

...

"Desintegro no ar sobre Copacabana. Uma vez, li que a morte era o momento mais significativo da vida, e é mesmo. A minha foi boa, está sendo, não por muito mais."



Trechos do romance Fim, de Fernanda Torres. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.


Fernanda Torres é carioca, atriz de sucesso no teatro, televisão e cinema e colunista em jornais e revistas brasileiros. Atriz admirada pela sua capacidade representativa, seguindo a linhagem familiar, filha que é de atores muito talentosos, Fernanda Montenegro e Fernando Torres. 

Dizem que esse nome tem significado de "viajante ousado, corajoso" e assim me parece Fernanda, enveredando ousadamente pela literatura. Suas qualidades de escritora já haviam se revelado nas crônicas, mas se confirmaram na ficção. 

Com grandes sucessos nas telas e nos palcos em papéis cômicos, sua ficção também segue esse caminho da comédia de costumes, mas com uma dramática abordagem sobre os momentos em que a finitude da vida se nos apresenta sem subterfúgios. Como diz Sergio Rodrigues na contracapa do livro: "Nesse claro-escuro ela encontra matizes inéditos de sabedoria, crueldade, ternura, tristeza e humor". 

Trata-se de uma história sobre cinco amigos de longa jornada, ambientada em Copacabana, um bairro habitado majoritariamente por idosos, que vão relatando com humor fatos marcantes de suas vidas e amizade.

O livro é muito bem escrito e de leitura fluída no qual a autora nos apresenta uma graça que nos é muito próxima, porquanto há personagens que nos remetem a muitos de nossos familiares. Cheio de humor litorâneo, com praia, sol e sexo, mas também com tristeza, resignação, tragédia
e melancolia..

A narrativa é envolvente e, especialmente nesses tempos de pandemia e isolamento,  nos faz refletir sobre amizade, amores, perdas, encontros e desencontros, fracassos e superações, sobre o sentido e finitude da vida. 


Boa leitura e diversão!


Por F@bio


domingo, 27 de dezembro de 2020

Urubus - Carla Bessa

 "Ao puxar o sapato vem junto uma perna esgarçada. Mas não é só de calça desmembrada do dono, não. Tem gente dentro, carne, osso. Tem sexo. Dá para ver direitinho que tem tudo isso ali dentro da perna daquela calça. É homem. É, ou foi. Será que está vivo ou morto? Mas antes de se ocupar disso a mãozinha ainda gordinha de criança apalpa, se escarafuncha para dentro do bolso, quem sabe não tem dinheiro por aqui. Já teve várias vezes, tantos fundos de calça recheados ali no lixão.

Ao sentir-se cavoucado, o quadril lá dentro da roupa se contorce, vira de bruços, a mãozinha do ladrãozinho fica imprensada, vai junto, ai meu deus. Cambaleia-tropeça o menino por cima do corpo que, caramba tá vivo mesmo. O cheiro é: não tem nem como descrever, é é é azedo, é é é insuportável. O corpo nos resíduos parece que reside há muito tempo. O menino grita, mas da boca não sai som. Com desmedido esforço dá um último puxão cheio de dor-raiva-medo, a mão liberta, a boca solta um suspiro, aaaaah. Um pedaço de calça com pele grudada, escamas, gordura, um líquido preto vem junto na palma suja. O homem no meio do lixo se decompõe, o menino pensa"

...

"O velho é muito velho, e a rua, muito movimentada.

Os passinhos são curtos e lentos.

Pode ser que leve uma eternidade até ele alcançar a outra calçada. Pode ser que ele alcance a eternidade antes.

Isso é um ponto.

O outro ponto é que: há uma ilusão de ótica ali.

Se você semicerrar os olhos e olhar fixamente para o velho atravessando a rua, 

verá que:

é a rua que atravessa o velho"


Trechos do livro de contos Urubus de Carla Bessa. Rio de Janeiro: Confraria do Vento, 2019.



Carla Bessa é niteroiense, escritora, tradutora, atriz e diretora de teatro, que reside na Alemanha desde 1991. Escreveu também o livro de contos Aí Eu Fiquei Sem Esse Filho (Editra Oito e Meio, 2017). No ano passado lançou Urubus, livro que reúne 18 contos com personagens como crianças de lixões e pivetes de rua, idosos, prostitutas, travestis, golpistas, mulheres desiludidas ... restos de pessoas que vivem de restos de coisas e emoções.


Em 2019, Bessa ficou em terceiro lugar na categoria "Conto" do Prêmio Off-Flip (Festa Literária Internacional de Paraty) de Literatura. Neste ano, foi contemplada com o Prêmio Jabuti (categoria conto) com Urubus, que foi ainda o segundo colocado no Prêmio Clarice Lispector, da Biblioteca Nacional.


É um livro que se lê de um só fôlego, com uma linguagem direta e envolvente e essa urgência é parte da narrativa. Os contos estão entrelaçados, no tempo, espaço e personagens, e, nesse aspecto, me fez lembrar de outro livro, Fim, de Fernanda Torres, ambientado em Copacabana, como alguns dos contos de Bessa. 


Vale destacar a observação de Alexandre Kovacs (https://www.mundodek.com/2020/05/carla-bessa-urubus.html) "...os contos reunidos nesta mais recente antologia de Carla Bessa que apresenta um recurso técnico original ao fazer com que as narrativas se desenvolvam em um mesmo recorte de tempo e espaço, produzindo múltiplos pontos de vista para uma dada situação em função dos personagens envolvidos e suas próprias motivações".


Uma curiosidade é o conto Sem Verbo, um excelente exercício criativo escrito, como diz o título, sem verbo e nem por isso, carente de ação.


Nesses tempos tão obscuros e polarizados,  e ainda sob uma das maiores pandemias a assolar nosso planeta, grande parte das pessoas parece ter ligado um "dane-se" para o seu semelhante e se aglomera nas praias, parques, festas e bares, anda sem máscara e parece pouco se incomodar com centenas de milhares de vidas ceifadas. Como Carla escreve: "A verdade é que estão se devorando uns aos outros. E depois nós [os urubus] é que somos os abutres, nós os fatídicos,  os mau-agourentos, o ser humano é um bicho estranho mesmo. A nós deixam o trabalho de livra-los de seus próprios restos..."


Mais sobre a autora pode ser lido em https://homoliteratus.com/author/carla/


Boa leitura!


Por F@bio


domingo, 13 de dezembro de 2020

A memória de uma amizade eterna - Gail Caldwell

"É aquela velha história: eu tinha uma amiga, nós partilhávamos tudo, e então ela morreu e nós, partilhamos isso também.

...

Como a maioria das memórias marcadas pelo capítulo final, as minhas têm o peso físico da tristeza. O que nunca nos dizem a respeito do luto é que sentir falta de alguém é a parte mais simples.

...

A aceitação [da perda], inadivertidamente, envolve o nosso coração. Naquele ano, eu vagava por uma casa aberta à visitação na vizinhança e vi um soneto emoldurado de Pablo Neruda na parede; falava algo sobre a natureza espacial da perda que eu jamais vira articulado antes. A morte de Caroline era um lugar vago no coração, um lugar que eu nem podia nem desejava preencher. Fiquei confusa pela prevalência desses sentimentos, a sensação de que a partida dela era algo em si mesmo, uma memória cercada por uma fita de isolamento, na qual mudar qualquer coisa seria uma ofensa terrível. Mas aqui estava Neruda, solicitando aos enlutados que habitassem a morte como se ela fosse uma morada:

'Ausência é uma casa tão grande
que lá dentro você vai atravessar paredes
e suspender imagens no ar.'

Eu morei naquela casa de ausência, obtive consolo nela, até que a mágoa se tornasse um substituto daquilo que havia partido. 'O luto ... me fez lembrar de seus traços mais belos', diz Constance, de Shakespeare, em Rei João, sobre a perda de seu filho. 'Então, eu tenho motivos para apreciar a dor.' Eu sabia que nunca mais teria outra amiga como Caroline; eu suspeitava que ninguém mais iria me conhecer tão bem novamente. Que Caroline fosse insubstituível era uma lealdade agridoce: sua morte era o que eu tinha agora ... Durante meses, eu quis ligar para ela, achando que podia, para dizer o que sua morte havia significado, o que sua morte havia feito com minha vida ... Eu não era capaz de suportar a evidente ausência de Caroline ou a noção insignificante de que memória era tudo o que a vida eterna realmente significa, e passei tempo demais me perguntando onde as pessoas encontram forças para continuar se movimentando para além dos mortos...

Eram quase cinco da manhã quando eu voltei andando para uma casa infinitamente silenciosa, mais triste do que lágrimas poderiam jamais dizer, sabendo que eu estava no corredor de algo muito maior do que eu e que tinha de aguentar e permanecer onde estava...

Os velhos tecelões da tribo Navajo costumavam inserir um fio destoante em cada um de seus tapetes, uma cor contrastante que ia até a borda do tapete. É possível identificar um tapete autêntico por essa falha intencional, que é chamada de linha do espírito, cujo propósito seria liberar a energia aprisionada dentro do tapete e pavimentar o caminho para a próxima criação.

Todas as histórias da vida que merecem ser lembradas têm uma linha de espírito. Você pode chamar isso de esperança, 'amanhã', ou 'e então' de sua história, mas sem isso - sem o fato dissonante e reluzente do desconhecido e do incontrolável - a consciência e tudo o mais iria cair e implodir. O Universo insiste: o que é fixo é também finito."

Trecho do romance A memória de uma amizade eterna (Let's take de long way home), de Gail Caldwell (tradução de Beatriz Bastos). São Paulo: Globo, 2011.

Gail Caldwell é escritora e crítica literária americana. Foi a principal crítica e chefe de crítica literária do jornal The Boston Globe, onde trabalhou na equipe de 1985 a 2009. Caldwell foi vencedora do Prêmio Pulitzer de 2001. O prêmio foi para oito resenhas de domingo e duas outras colunas escritas em 2000.

Duas amigas que se tornaram inseparáveis. Ambas eram escritoras, mas uma sabia nadar e a outra remar. As duas queriam trocar experiências e, por anos, remaram, caminharam e conversaram juntas. Um livro de memórias sobre como o laço entre duas mulheres pode iluminar os momentos mais hilários e também os mais solitários e tristes da vida, incluindo a morte. Outro fato em comum entre as duas foi a luta para vencer o alcoolismo ("a taça de vinho branco que Caroline segurava era, ao mesmo tempo, sua varinha mágica e seu punhal") e amor por cachorros e com eles fazem longas caminhadas aos som de suas conversas, quando falavam sobre tudo: alcoolismo, tabagismo, relacionamentos com homens, trabalho, literatura, esportes, cachorros, família...

Narrado de forma envolvente, é um livro que nos faz refletir sobre o poder da amizade, nossas perdas e superações, sobre o sentido da vida.

Transcrevo o poema completo de Pablo Neruda na tradução original:

"Se eu morrer, sobrevive a mim com tamanha força
que acordarás as fúrias do pálido e do frio,
de sul a sul, ergue teus olhos indeléveis,
de sol a sol sonha através de tua boca cantante.
Não quero que tua risada ou teus passos hesitem.
Não quero que minha herança de alegria morra.
Não me chames. Estou ausente.
Vive em minha ausência como em uma casa.
A ausência é uma casa tão rápida
que dentro passarás pelas paredes
e pendurarás quadros no ar.
A ausência é uma casa tão transparente
que eu, morto, te verei, vivendo,
e se sofreres, meu amor, eu morrerei novamente."

Ontem perdi uma grande amiga e hoje esse livro me veio à mente. Eu o li recentemente, uma de minhas leituras nesses tempos de isolamento e pandemia (na saúde e na política). A doença tem ceifado muitas vidas de forma trágica, pois é desconhecida e a ciência ainda não compreende porque uns resistem e outros não. Tempos de dor, em que as ausências tornam-se muito presentes em nossas vidas. Me identifico muito com uma frase da autora "minha idéia de um dia produtivo ... era ler por horas a fio e ficar olhando pela janela".

Boa leitura!

Por F@bio

sábado, 7 de novembro de 2020

O filho eterno - Cristovão Tezza

"Ele sente uma outra estranheza, um mundo sob outro mundo, em camadas. Levou um susto, como alguém já definitivamente de um outro tempo. Todas as pessoas - ele pensa olhando o mar no belo caminho de volta, a criança no colo - estão no limite, permanentemente no limite de si mesmas; e no entanto do outro lado está apenas o tempo. Um passo em frente é o tempo que ele leva. Fecha os olhos e refugia-se no tempo: nada do que não foi poderia ter sido, e novamente se irrita. Não pode ser apenas isso. Mas é um bom álibi, uma espécie de repouso: relaxe; o tempo está escorrendo. O tempo não pode fazer nada contra você, ele pensa, além de envelhecê-lo, e a essa altura isso é muito bom. 'Envelheçam', aconselhava Nelson Rodrigues aos jovens, e ele sorriu com a lembrança".


Transcrito do romance "O filho eterno", de Cristovão Tezza - 18ª edição, pág. 79. Rio de Janeiro : Record, 2016. Acervo da Biblioteca da Tribuna Livre Cultural, Lumiar, Nova Friburgo (RJ).


Cristovão Tezza é catarinense de Lages, mas mora em Curitiba desde criança. Na juventude foi ator amador. No início dos anos 1970 concluiu o ensino médio, tentou se formar em oficial marinheiro e depois foi para Portugal estudar Letras na Universidade de Coimbra, paralisada em virtude da revolução dos Cravos. Foi então vagar e fazer bicos pela Europa. Casou-se em 1977 e 1984 ingressou como professor de Língua Portuguesa da Universidade Federal de Santa Catarina, para retornar dois anos depois a Curitiba e lecionar na Universidade Federal do Paraná, da qual se demitiu em 2009 para se dedicar exclusivamente à literatura. Hoje conta com mais de uma deseja de livros publicados entre romances, contos, crônicas, ensaios e didáticos. Tornou-se conhecido com o romance Trapo publicado em 1988. Seu outro romance, Breve espaço entre cor e sombra, foi contemplado com o Prêmio Machado de Assis da Biblioteca Nacional em 1998. Foi cronista da Folha de São Paulo e da Gazeta do Povo de Curitiba. O romance em foco, O filho eterno, publicado em 2007, recebeu o Prêmio da Associação Paulista dos Críticos de Arte, o prêmio Jabuti e outros. Sua edição francesa também foi laureada com o Prêmio Charles Brisset da Associação Francesa de Psiquiatria. Além da França, a obra foi lançada na Itália, Inglaterra, Portugal, Holanda, Espanha, México, Estados Unidos, Austrália, China, Eslovênia, Dinamarca, Noruega e Macedônia. O filho eterno foi adaptado para o teatro e para o cinema.

Num romance ao mesmo tempo autobiográfico e ficcional, extremamente corajoso, por expor sua intimidade e da família, Cristovão Tezza aborda as inúmeras dificuldades de ter um filho com síndrome de Down e também algumas saborosas conquistas não só filho, mas também do pai.  Indo além da vida de genitor, o autor inclui, em flashback, situações vividas na infância, adolescência e juventude, como: as experiências de ator amador, de viver em comunidade e com drogas, como clandestino na Alemanha trabalhando em faxina de hospital, as indefinições sobre o futuro, a tentativa de se tornar oficial de marinha mercante, os desafios da escrita e suas frustrações, a pretensa estabilidade como professor universitário e as dificuldades de se tornar pai de um filho que será sempre especial.



Narrado em terceira pessoa, na qual o narrador e o autor se confundem, o romance não disfarça o caráter de acerto de contas do escritor com o seu papel de pai de um filho com síndrome de Down. Como bem retrata o trecho transcrito, a obra se constitui em "uma brilhante reflexão sobre a necessidade e importância da ação do tempo para operar o ciclo da maturação e amadurecimento". Da rejeição inicial ao receber a noticia de um filho com Down, passando pela peregrinação para dar a ele o necessário acompanhamento até a libertação que vem com a aceitação desse filho eterno. E o tempo escorre...

Boa leitura.

Por F@bio


segunda-feira, 26 de outubro de 2020

Meu nome é Ébano - Toninho Vaz

 Meu nome é Ébano - Toninho Vaz

"Merece destaque ... o encontro ... com o poeta Manoel de Barros ... Melodia também fazia versos simples na construção, vasculhando o chão. Ambos tinham dicção poética semelhante, com temáticas ingênuas e desconcertantes pela simplicidade ...

Poesia sempre: E algumas folhas de hortelã ... Depois de homenagear em disco os marginais de sua estima, Luiz Melodia continuava militando na causa dos desvalidos e abandonados pela sorte. Mantinha uma forte cumplicidade com os sacaneados pela sisitema - como ele próprio afirmava. Na virada da década (de 1980), Luiz Melodia estava 'mais São Carlos' do que nunca".

E para Euclides Amaral, pesquisador da MPB, entrevistado por Toninho: "Luiz Melodia é um dos formadores da moderna MPB ... Com sua polivalência, perpetuou-se no cancioneiro popular através de suas composições e também de suas interpretações singulares de clássicos ... Outra característica, pouco comentada em sua obra, é o seu trato com a letra e a poesia nas composições. Ainda que o texto poético tenha, na maioria das vezes, cadência e ritmo próprios, com a música colocada (harmonia, melodia e ritmo), é gerado um terceiro produto - a composição em si -, privilégiando e ressaltando os dois principais códigos da MPB: letra e melodia. Depois, é incorporado o arranjo e, por fim, a interpretação, que leva o produto para outro lado, dependendo do timbre e afinação. Ele era profícuo em versos para as próprias melodias e nos que produzia para violonistas ..., assim como quando musicava letras e poesias ... Luiz Melodia foi mestre em gerar esse terceiro produto, quando compunha (como letrista ou melodista) e quando interpretava outros autores, sendo este o seu legado à MPB." 

Transcrito da biografia "Meu nome é Ébano : a vida e obra de Luiz Melodia", de Toninho Vaz. São Paulo : Tordesilhas, 2020.



Toninho Vaz é jornalista, escritor e biógrafo, que além da obra sobre o Melodia, escreveu biografias do poeta Paulo Leminski, do antropólogo, escritor e politico Darcy Ribeiro, do compositor e cantor Zé Rodrix, dentre outras.  

Na obra em foco, Vaz conta a trajetória do menino do morro de São Carlos, bairro do Estácio no Rio de Janeiro, que conquistou o Brasil com seu talento e músicas. O escritor destaca que a originalidade de Melodia está em sua musicalidade, poética e interpretação.  Toninho ressalta que, apesar da pouca escolaridade, Luiz Melodia tinha um talento natural para letras, como em Juventude Transviada: 

"Lava roupa todo dia, que agonia

Na quebrada da soleira, que chovia

Até sonhar de madrugada, uma moça sem mancada

Uma mulher não deve vacilar

Eu entendo a juventude transviada

E o auxílio luxuoso de um pandeiro

Até sonhar de madrugada, uma moça sem mancada

Uma mulher não deve vacilar

Cada cara representa uma mentira

Nascimento, vida e morte, quem diria

Até sonhar de madrugada, uma moça sem mancada

Uma mulher não deve vacilar

Hoje pode transformar, e o que diria a juventude

Um dia você vai chorar, vejo clara as fantasias."

De uma geração surgida nos tempos sombrios da ditadura militar, Melodia foi vítima contumaz da censura oficial, pois a temática social está muito presente em sua obra. Sobre isto o próprio fala em entrevista de 1996 concedida ao repórter Paulo Vieira do jornal Follha de S. Paulo citada no livro: "Nunca fui ligado nisso, mas decidi falar. Até pelo que está acontecendo. Todos estão vendo: desemprego, política falsa, bala perdida... Essa coisa acaba tendo um lugar só, a desgraça". A realidade brasileira parace que não muda nunca.

Ao traçar a personalidade de Melodia, considerado problemático por ser arredio à ideia de celebridade, o autor não foge de temas delicados como o uso de drogas, alcoolistmo, paternidade involuntária, marginalidade, prisões e episódios de racismo ao longo da vida, ceifada precocemente, do músico.

Melodia deixou um legado musical marcante, numa obra que surge no berço do samba, o morro de São Carlos, e recebe influências da jovem guarda, bossa nova, jazz, blues, rock e outros ritmos que ele soube temperar e harmonizar com letras de sintaxe muito particular. 

Boa leitura.

Por F@bio


sexta-feira, 31 de julho de 2020

Essa Gente - Chico Buarque

"31 de janeiro de 2019
Folheio sem ânimo a política, busco o futebol, o cinema, os classificados, mas no caminho dou com um anúncio fúnebre.
...
2 de julho de 2019
...
A Rebekka não apareceu no dia seguinte, nem no outro, nem no outro, e passada uma semana deixei de ir à casa da Maria Clara, alegando urgência de concluir meu romance. Mentira, porque a escrita, que já vinha rateando havia tempo, agora permanecia em ponto morto. À praia não fui nunca mais, sequer descia à calçada, não ia a lugar algum. Comia qualquer besteira na cozinha e voltava para a cama, dormia, dormia, dormia noite e dia, sonhava com o presidente da República, só tinha pensamentos mórbidos. Tomei enjoo de notícias, desliguei para sempre a televisão e cancelei a assinatura do jornal, que continuavam a me entregar com promessa de descontos e brindes. Vagando morto de sono pelo apartamento, às vezes me pegava a examinar o revólver da Maria Clara, o cano curto, a agulha embutida, o tambor carregado, e foi num dia assim tenebroso que a Rebekka me telefonou."


Trecho do romance Essa Gente, de Chico Buarque, pag. 24 e 170. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

Francisco Buarque de Holanda é muito conhecido como compositor e cantor, com uma vasta obra no cancioneiro brasileiro desde os anos 1960 até os dias de hoje. Sensíveis e contundentes suas letras são obra prima da Música Popular Brasileira. Chico nasceu no Rio de Janeiro em 1944, no seio de uma família de intelectuais, filho de Sergio Buarque de Holanda, destacado historiador, jornalista e critico literário. Chico, além das músicas, também escreveu peças, como Gota D'Água (em parceria com Paulo Pontes) e Ópera do Malandro. A partir de 1974 aventurou-se pela ficção, consagrando-se com Budapeste (2003), Leite Derramado (2009) e O irmão alemão (2014). 

Em Essa gente, Chico Buarque é ousado ao ambientar o romance no período super recente, num Rio de Janeiro partido e repartido, nesses tempos de intolerância e sob um governo que defende a ditadura militar e homenageia torturadores. Um governo que promove a liberação de armas e o desmantelamento das políticas trabalhista, ambiental, cultural e educacional que vinham sendo implementadas pelos diversos governos anteriores, inclusive pelos militares.

Narrado sob a forma de um diário, tendo por protagonista um escritor decadente e em crise financeira e afetiva. A cidade a sua volta não se difere do que se passa em sua vida pessoal, também está em colapso financeiro e afetivo, a cidade partida agora não no social, na econômica e na politica, mas também na afetividade e receptividade do carioca. 

Como muito bem analisa o meu xará e critico literário da Veja, Fábio Altman, na "narrativa de Chico há vasta porção de cinza, é tudo mais sutil, mais lírico, costurado por paixões e suspense policial".

Uma ótima leitura, particularmente nesses tempos isolamento e pandemia (na saúde e na política).
Por F@bio

sexta-feira, 12 de junho de 2020

A menina que roubava livros - Markus Zusak

A menina que roubava livros - Markus Zusak

"UMA VERDADEZINHA
Eu não carrego gadanha nem foice.
Só uso um manto preto com capuz quando faz frio.
E não tenho aquelas feições de caveira que vocês
parecem gostar de me atribuir a distância.
Quer saber a minha verdadeira aparência?
Eu ajudo. Procure um espelho enquanto eu continuo."

Trecho do romance A menina que roubava livros, de Markus Zusak (trad. Vera Ribeiro), pag. 271. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2013.

Markus Zusak é escritor e autor de pelo menos cinco livros. Australiano, nascido em 1973, filho de mãe alemã e pai austríaco, mora em Sidney, Austrália.

A veia mestra do livro é a trajetória da menina adolescente Liesel Meminger contada por uma narradora surpreendente revelada no trecho acima transcrito. Essa, ao perceber que a menina lhe escapa, acaba por afeiçoar-se a ela no lapso de tempo de 1939 a 1943, em plena Segunda Guerra Mundial. Liesel é levada, juntamente com o irmão que falece no caminho, para adoção pela mãe  que por ser comunista é perseguida pelo nazismo e não tem mais como cuidar dos filhos. No enterro do irmão, um coveiro deixa cair um livro que é recolhido pela menina, embora não soubesse ler. Ela é entregue pelas autoridades ao casal pobre que, em princípio, resolve adotar a criança para obter o subsídio governamental.

Cria-se logo uma grande empatia com o pai adotivo que a conforta durante os pesadelos que a assombra. Este, vendo o grande interesse da menina pelo livro, um manual de coveiro, começa a lhe ensinar a ler. O afeto cresce entre os três: a garota adotada e os pais adotivos: um pintor de paredes bonachão, que toca acordeon, e a madrasta grosseira, mas protetora. Ao ver uma montanha de livros incendiados pelos nazistas, ela consegue roubar das chamas mais um livro. E ao ser mandada pela madrasta para entregar e recolher roupa lavada e passada, acaba deparando-se com a biblioteca do prefeito e sua calada esposa, da qual rouba alguns livros sob a vista grossa da mulher do prefeito.

No bairro pobre onde vive, após bater num garoto e jogar futebol, Liesel logo conquista amizades. Mas isto não afasta a presença constante da narradora, em um ambiente lamentavelmente muito semelhante ao atual, de fomento ao ódio e a supremacia ariana, o culto ao mito (Hitler) e à ideologia nazista. Um dia os pais adotivos acolhem um judeu fugitivo e o escondem no porão. Cria-se logo uma amizade entre Liesel e Max, esse jovem judeu que adoece e conta com a solidariedade da garota que lê para ele todas as noites. Quando Max se recupera escreve livros artesanais para ela e acaba tendo que fugir novamente ante ao risco de ser descoberto.

A guerra se intensifica e vira em desfavor da Alemanha que começa a ser fortemente bombardeada. E o bairro pobre não foi poupado, especialmente quando ocorre um ataque surpresa que tudo destrói, não dando tempo das pessoas se refugiarem nos abrigos, exceto Liesel que estava no porão iniciando-se na escrita. A narradora, perplexa diante da violência humana, já não precisa exercer seu ofício, apenas recolhe almas vítimas dos homens e, indignada, diz a menina que roubava livros: "os seres humanos me assombram".

Publicado em 2005, foi um enorme sucesso literário de crítica e vendas. Sua versão cinematográfica igualmente foi um sucesso de crítica e público. Assisti primeiro ao filme, mas isso não prejudicou a leitura, pois o livro é muito bem escrito e contagiante, fazendo com que queiramos lê-lo de uma vez só. Aliás, como está diz o slogan do livro "quando a Morte conta uma história, você deve para para ler".
Boa leitura!
Por F@bio