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segunda-feira, 29 de março de 2021

Quarto de despejo - Carolina Maria de Jesus

"...A tontura da fome é pior do que a do alcool. A tontura do alcool nos impele a cantar. Mas a da fome nos faz tremer. Percebi que é horrível ter só ar dentro do estomago.

Comecei a sentir a boca amarga. Pensei: já não basta a amargura da vida? Parece que quando eu nasci o destino marcou-me para passar fome. Catei um saco de papel. Quando eu penetrei na rua Paulino Guimarães, uma senhora me deu uns jornais. Eram limpos, eu deixei e fui para o depósito. Ia catando tudo que encontrava. Ferro, lata, carvão, tudo serve para o favelado. O Leon pegou o papel, recebi seis cruzeiros. Pensei guardar o dinheiro para comprar feijão. Mas, vi que não podia porque o meu estomago reclamava e torturava-me.

... Resolvi tomar uma media e comprar um pão. Que efeito surpreendente faz a comida no nosso organismo! Eu que antes de comer via o céu, as arvores, as aves tudo amarelo, depois que comi, tudo normalizou-se aos meus olhos.

...

Quando puis a comida o João sorriu. [Os filhos] Comeram e não aludiram a cor negra do feijão. Porque negra é a nossa vida. Negro é tudo que nos rodeia.

...

Quando eu fui catar papel encontrei um preto. Estava rasgado e sujo que dava pena. Nos seus trajes rotos ele podia representar-se como diretor do sindicato dos miseraveis. O seu olhar era um olhar angustiado como se olhasse o mundo com despreso. Indigno para um ser humano. Estava comendo uns doces que a fabrica havia jogado na lama. Ele limpava o barro e comia os doces. Não estava embriagado, mas vacilava no andar. Cambaleava. Estava tonto de fome.

...

... Eu escrevia peças e apresentava aos diretores de circos. Eles respondia-me:

- É pena você ser preta.

Esquecendo eles que eu adoro a minha pele negra, e o meu cabelo rustico. Eu até acho o cabelo de negro mais iducado do que o cabelo de branco. Porque o cabelo preto onde põe, fica. É obediente. E o cabelo de branco, é só dar um movimento na cabeça ele já sai do lugar. É indisciplinado. Se é que existe reincarnações, eu quero voltar sempre preta.

...

... As oito e meia da noite eu já estava na favela respirando o odor dos excrementos que mescla como barro podre. Quando estou na cidade tenho a impressão que estou na sala de visita com seus lustres de cristais, seus tapetes de viludos, almofadas de sitim. E quando estou na favela tenho a impressão que sou um objeto fora de uso, digno de estar num quarto de despejo.

...

... A noite está tepida. O céu já está salpicado de estrelas. Eu que sou exotica gostaria de recortar um pedaço do céu para fazer um vestido."


Trechos do livro "Quarto de despejo: diário de uma favelada", de Carolina Maria de Jesus. São Paulo: Ática, 2014.


Carolina Maria de Jesus (1914 - 1977), mãe solteira de três filhos, nascida em Sacramento (MG), foi catadora de papel e outros produtos descartados pelos moradores e comerciantes. Morou na favela do Canindé, a beira do rio Tietê, na cidade de São Paulo, favela desocupada em meados da década de 1960. Semianalfabeta, que só pode cursar até o segundo ano do ensino primário, era "apaixonada por livros, ela alimentava sonhos e desabafava a sua triste realidade nas folhas encardidas de seus cadernos". Os diários foram descobertos pelo jornalista Audálio Dantas, que foi à favela para fazer uma reportagem. Logo percebeu a originalidade dos textos de Carolina e reproduziu trechos do livro em suas reportagens. Depois conseguiu a publicação na forma de romance, com a grafia original da autora, que obteve muito sucesso e foi traduzido para treze idiomas. 


Como diz Audálio Dantas, no prefácio da edição em comento: "O sucesso do livro - uma tosca, acabrunhante e até lírica narrativa do sofrimento do homem relegado à condição mais desesperada e humilhante da vida - foi um sucesso pessoal de sua autora, transformada de um dia para outro numa patética Cinderela, saída do borralho do lixo para brilhar intensamente sob as luzes da cidade". E prossegue dizendo que o "cenário em que foi escrito o diário já não é o mesmo. Parte dele deu lugar ao asfalto de uma nova avenida, por coincidência chamada de Marginal. A Marginal do Tietê, que passa por ali onde até meados dos anos 1960 se erguia o caos semiurbano e sub-humano da favela do Canindé, em São Paulo. O resto foi ocupado por construções sólidas, ordenadas, limpas, aprumadas no lugar dos barracos cujos ocupantes foram para outros cantos da cidade, para outros quartos de despejo". E continua afirmando que "a favela do Canindé multiplicou-se em dezenas, centenas de outras. Assim, Quarto de despejo não é um livro de ontem, é de hoje. Os quartos de despejos, multiplicados, estão transbordando."

Pouco mais é preciso dizer sobre esta obra que foi classificada como um exemplo de "literatura verdade", relatando a vida cruel de parte da cidade partida, onde vivem os excluídos dos bônus, mas incluídos nos ônus da sociedade. A narrativa de Carolina das agruras da vida de uma marginalizada nos anos 1950 parece cruelmente atual quando nos deparamos com as inúmeras habitações em condições sub-humanas existentes em praticamente todas as grandes e médias cidades do país. O Brasil de grandes riquezas permanece enormemente desigual.

Mas o que mais me marcou no livro foi o relato da fome. A fome em meio a abundância. É duro ler o relato da dor de não ter o que dar de comer para os filhos, a não ser uma rala sopa de ossos obtidos na lixeira do frigorífico. O ser humano conseguiu formar uma sociedade de exclusão, na qual 2.153 bilionários do mundo têm mais riqueza do que 4,6 bilhões de pessoas – ou cerca de 60% da população mundial, segundo relatório da Oxfam do início de 2020.

Boa leitura e reflexão!


Por F@bio