sábado, 7 de novembro de 2020

O filho eterno - Cristovão Tezza

"Ele sente uma outra estranheza, um mundo sob outro mundo, em camadas. Levou um susto, como alguém já definitivamente de um outro tempo. Todas as pessoas - ele pensa olhando o mar no belo caminho de volta, a criança no colo - estão no limite, permanentemente no limite de si mesmas; e no entanto do outro lado está apenas o tempo. Um passo em frente é o tempo que ele leva. Fecha os olhos e refugia-se no tempo: nada do que não foi poderia ter sido, e novamente se irrita. Não pode ser apenas isso. Mas é um bom álibi, uma espécie de repouso: relaxe; o tempo está escorrendo. O tempo não pode fazer nada contra você, ele pensa, além de envelhecê-lo, e a essa altura isso é muito bom. 'Envelheçam', aconselhava Nelson Rodrigues aos jovens, e ele sorriu com a lembrança".


Transcrito do romance "O filho eterno", de Cristovão Tezza - 18ª edição, pág. 79. Rio de Janeiro : Record, 2016. Acervo da Biblioteca da Tribuna Livre Cultural, Lumiar, Nova Friburgo (RJ).


Cristovão Tezza é catarinense de Lages, mas mora em Curitiba desde criança. Na juventude foi ator amador. No início dos anos 1970 concluiu o ensino médio, tentou se formar em oficial marinheiro e depois foi para Portugal estudar Letras na Universidade de Coimbra, paralisada em virtude da revolução dos Cravos. Foi então vagar e fazer bicos pela Europa. Casou-se em 1977 e 1984 ingressou como professor de Língua Portuguesa da Universidade Federal de Santa Catarina, para retornar dois anos depois a Curitiba e lecionar na Universidade Federal do Paraná, da qual se demitiu em 2009 para se dedicar exclusivamente à literatura. Hoje conta com mais de uma deseja de livros publicados entre romances, contos, crônicas, ensaios e didáticos. Tornou-se conhecido com o romance Trapo publicado em 1988. Seu outro romance, Breve espaço entre cor e sombra, foi contemplado com o Prêmio Machado de Assis da Biblioteca Nacional em 1998. Foi cronista da Folha de São Paulo e da Gazeta do Povo de Curitiba. O romance em foco, O filho eterno, publicado em 2007, recebeu o Prêmio da Associação Paulista dos Críticos de Arte, o prêmio Jabuti e outros. Sua edição francesa também foi laureada com o Prêmio Charles Brisset da Associação Francesa de Psiquiatria. Além da França, a obra foi lançada na Itália, Inglaterra, Portugal, Holanda, Espanha, México, Estados Unidos, Austrália, China, Eslovênia, Dinamarca, Noruega e Macedônia. O filho eterno foi adaptado para o teatro e para o cinema.

Num romance ao mesmo tempo autobiográfico e ficcional, extremamente corajoso, por expor sua intimidade e da família, Cristovão Tezza aborda as inúmeras dificuldades de ter um filho com síndrome de Down e também algumas saborosas conquistas não só filho, mas também do pai.  Indo além da vida de genitor, o autor inclui, em flashback, situações vividas na infância, adolescência e juventude, como: as experiências de ator amador, de viver em comunidade e com drogas, como clandestino na Alemanha trabalhando em faxina de hospital, as indefinições sobre o futuro, a tentativa de se tornar oficial de marinha mercante, os desafios da escrita e suas frustrações, a pretensa estabilidade como professor universitário e as dificuldades de se tornar pai de um filho que será sempre especial.



Narrado em terceira pessoa, na qual o narrador e o autor se confundem, o romance não disfarça o caráter de acerto de contas do escritor com o seu papel de pai de um filho com síndrome de Down. Como bem retrata o trecho transcrito, a obra se constitui em "uma brilhante reflexão sobre a necessidade e importância da ação do tempo para operar o ciclo da maturação e amadurecimento". Da rejeição inicial ao receber a noticia de um filho com Down, passando pela peregrinação para dar a ele o necessário acompanhamento até a libertação que vem com a aceitação desse filho eterno. E o tempo escorre...

Boa leitura.

Por F@bio


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