Mostrando postagens com marcador Mario Vargas Llosa. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Mario Vargas Llosa. Mostrar todas as postagens

segunda-feira, 20 de dezembro de 2021

A guerra do fim do mundo - Mario Vargas Llosa

"Aparecia de repente, a princípio sozinho, sempre a pé, coberto da poeira do caminho, de tantas em tantas semanas, ou meses. Sua silhueta longilínea se recortava na luz crepuscular ou nascente quando atravessava a única rua do povoado, a passos largos, com uma espécie de urgência. Avançava decidido entre cabras que chocalhavam, entre cachorros e crianças que abriam passagem e o observavam com curiosidade, sem responder aos cumprimentos das mulheres que já o conheciam e faziam reverências e corriam para lhe trazer jarros de leite de cabra e pratos de farinha e feijão. Mas ele não comia nem bebia nada antes de chegar à igreja da vila e constatar, mais uma vez, uma das tantas vezes, que estava em ruínas, descascada, com torres semidestruídas, as paredes esburacadas, os pisos levantados, os altares roídos pelos vermes. Seu rosto se ensombrecia com uma dor de retirante a quem a seca matou os filhos e animais e privou dos bens, e agora precisa abandonar sua casa, os ossos dos seus mortos, para fugir, fugir, sem saber para onde. Às vezes chorava, e no pranto o fogo negro dos seus olhos recrusdescia em terríveis cintilações. Começava logo a rezar. Mas não como rezam os outros homens ou mulheres: deitava-se de bruços na terra ou nas pedras ou nas lajes lascadas, bem diante de onde era ou tinha sido ou deveria ser o altar, e orava, às vezes em silêncio, às vezes em voz alta, uma, duas horas, observado com respeito e admiração pelos moradores. Rezava o credo, o pai-nosso e as ave-marias conhecidos, e também outras rezas que ninguém tinha ouvido antes, mas que, ao longo dos dias, dos meses, dos anos, as pessoas iriam memorizando...

...

Falava coisas singelas e importantes, sem olhar especialmente para nenhuma das pessoas que o cercavam, ou melhor, olhando, com seus olhos incandescentes, através da aglomeração de velhos, mulheres, homens e crianças, para algo ou alguém que só ele podia ver. Coisas que se entendiam, por que eram obscuramente sabidas desde tempos imemoriais e absorvidas junto com o leite materno. Coisas atuais, tangíveis, cotidianas, inevitáveis, como o fim do mundo e o juízo final, que podiam acontecer, talvez, antes que o povoado reconstruísse a capela desmoronada. Como ia ser quando o Bom Jesus visse o desleixo com que cuidaram da sua casa? O que diria do comportamento dos pastores que, em vez de ajudar os pobres, raspavam seus bolsos cobrando pelos serviços da religião? Será que as palavras de Deus podiam ser vendidas, não deviam ser dadas de graça? Que desculpa dariam ao Pai os religiosos que, apesar do voto de castidade, fornicavam? Poderiam, por acaso, inventar mentiras para Aquele que lê pensamentos como o rastreador lê na terra as pegadas da onça? Coisas práticas, cotidianas, familiares, tais como a morte, que leva à felicidade se entrarmos nela de alma limpa...

...

... Um silêncio acompanhava a sua voz, e nele se ouviam o crepitar das fogueiras e o zumbido dos insetos que as chamas devoravam, enquanto os presentes, prendendo a respiração, faziam um esforço antecipado de memória para recordar o futuro. Em 1896 mil rebanhos correriam da praia para o sertão, e o mar viraria sertão e o sertão, mar..."

Trechos do romance "A guera do fim do mundo", de Mario Vargas Llosa, tradução de Paulina Wacht e Ari Roitman. Rio de Janeiro : Objetiva, 2010.

Jorge Mario Pedro Vargas Llosa é peruano, nascido em Arequipa no ano de 1936. Viveu em Paris na década de 1960, em plena ebulição do movimento estudantil. Lecionou em diversas universidades dos EUA e Europa. De jovem de esquerda (com a qual rompeu na década de 1970), candidatou-se a presidência da República do Perú em 1990 por uma coalizão de centro-direita. Foi derrotado pelo candidato populista Alberto Fujimori (que acabou condenado e preso). Autor de vasta obra literária recebeu diversos prêmios internacionais, inclusive o Nobel de literatura (2010).

O autor esclarece que o livro surgiu após a leitura (em 1972) do romance reportagem Os Sertões, de Euclides da Cunha, quando tomou conhecimento da guerra de Canudos. Originalmente seria um roteiro cinematográfico que, oito anos mais tarde, tornou-se o romance que, nas palavras de Llosa, o "fez viver uma das aventuras literárias mais ricas e exaltantes, em bibliotecas de Londres e de Washington, em arquivos empoeirados do Rio de Janeiro e de Salvador, e em percursos escaldantes pelos sertões da Bahia e de Sergipe"..."peregrinei por todas as vilas onde, segundo a lenda, o Conselheiro pregou, e nelas ouvi os moradores discutindo ardorosamente sobre Canudos, como se os canhões ainda trovejassem no reduto rebelde e o Apocalipse pudesse acontecer a qualquer momento naqueles desertos salpicados de árvores sem folhas, cheias de espinhos..."

Trata-se de uma obra histórica, ainda que na forma de um romance, pois Vargas Llosa não deixa que os fatos saiam de seu controle em favor das tramas ficcionais que desenvolve. Nas palavras do crítico Cadorno Teles, Vargas Llosa "usa o cenário da 'insurreição' popular, de cunho religioso, paradoxalmente revolucionária e reacionária ocorrida no Nordeste" para desenvolver sua narrativa de uma das mais dramáticas guerras ocorrida em solo brasileiro. O autor deixa evidente como a batalha foi usada por monarquistas e republicanos, como desculpa esfarrapa para uso armado contra os rebeldes. Os monarquistas viam no movimento messiânico uma maneira do Governo central acabar com a oposição política na Bahia, o estado mais autônomo e monárquico de todos. Já os republicanos alegavam que a população do lugar não passava de marionetes, manejadas pelos monarquistas e estrangeiros.

Canudos é um fato ainda pouco entendido pela maioria dos brasileiros, um movimento gerado por equívocos, num país de dimensões continentais, que foi inclementemente aniquilado por um desproporcional contingente militar enviado pela nascente república. Foram necessárias quatro expedições militares, cada vez mais poderosas, para por fim a um movimento feito por um bando de famintos, liderados espiritualmente por Conselheiro e belicamente por ex-jagunços.

Sobre esse fato histórico, cabe trazer a lume o inesquecível samba enredo Os Sertões, da Escola de Samba Em Cima da Hora, escrito por Edeor de Paula, que empolgou o desfile ocorrido em 1976, em plena ditadura militar. Apesar da genialidade do samba, a escola ficou em 13º lugar e acabou rebaixada:

Marcado pela própria natureza
O Nordeste do meu Brasil
Oh! solitário sertão
De sofrimento e solidão
A terra é seca
Mal se pode cultivar
Morrem as plantas e foge o ar
A vida é triste nesse lugar

Sertanejo é forte
Supera miséria sem fim
Sertanejo homem forte
Dizia o Poeta assim

Foi no século passado
No interior da Bahia
O Homem revoltado com a sorte
do mundo em que vivia
Ocultou-se no sertão
espalhando a rebeldia
Se revoltando contra a lei
Que a sociedade oferecia

Os Jagunços lutaram
Até o final
Defendendo Canudos
Naquela guerra fatal

O principal estopim da revolta foi não só de origem religiosa, a separação Estado - Igreja com o advento da República, mas também a indignação do contribuinte com a cobrança de mais um imposto. Uma revolta civil da qual as forças políticas locais se utilizaram nos seus embates para assumir o poder, inclusive lançando mão de falsas notícias, como a de que os rebeldes eram apoiados por países estrangeiros.

Trata-se de uma leitura necessária, mas o leitor se beneficará muito se precedida da leitura de Os Sertões de Euclides de Cunha.

Por F@bio