"Guanabara, pelo que eu sei, é um tipo de embarcação de um mastro só e vela grande, a tal da bujarrona. Mas dizem que os índios antigos chamavam assim isto tudo aqui, toda esta lagoa enorme de água salgada. Guaná-pará, eles diziam.
Guaná é "seio", "colo"; e pará é "mar". Então, eles achavam que esse mundão de água era o "seio do mar", veja você! Ou o seio, a mama, de onde brotava a água do mar.
...
No Valongo, quando chegava um comprador, quase sempre cercado de ciganos, calçados de botas, brincos nas orelhas e chicote - cada um tentando convencer o comprador de que sua mercadoria e seu preço eram melhores -, os negros se agitavam, se alegravam e se ofereciam à venda. Mas quando o negócio era fechado, era aquele desespero: irmãos separados; filhos arrancados dos pais, casais desfeitos ... E, de modo geral, aquilo era para sempre: nunca mais parentes, amigos, maridos, mulheres ... Nunca mais.
Valonguinho assistiu a muitas dessas cenas. Mas jamais esboçou qualquer expressão de tristeza ou alegria. Sozinho veio, sozinho ficou, sozinho foi se desfazendo, assim, sem parentes, sem amigos, sem idade, como um cão da rua, como uma pedra do cais. Talvez fosse melhor morrer ali mesmo e ali mesmo ser enterrado. Junto com os milhares de pretos novos que já chegaram quase sem vida ou, de modo inapelável, condenados à morte e ao esquecimento."
Trechos do livro de contos "Nas águas desta baía há muito tempo: contos da Guanabara", de Nei Lopes. Rio de Janeiro: Record, 2011.
Nei Lopes, carioca nascido em Irajá, aos 20 anos ingressou na Faculdade Nacional de Direito, mas acabou trocando a carreira de bacharel pela de compositor de música popular e escritor de ensaios, ficção e poesia. Em 1981, publicou seu primeiro ensaio: "O samba, na realidade: a utopia da ascensão social do sambista". Depois vieram outros com foco nas questões da negritude, até que, em 1987, publicou sua primeira obra de ficção: "Casos crioulos". Entre os ensaios escreveu também "Dicionário de banto", "Enciclopédia da diáspora africana", "Dicionário da antiguidade africana". Lopes ganhou o Prêmio Jabuti nas categorias Melhor Livro de Não Ficção e Livro do Ano com "Dicionário da história do samba", em coautoria com Luiz Antônio Simas. Recebeu também o prêmio Shell de Teatro pelas canções do musical "Bilac vê estrelas", de Heloisa Seixas e Júlia Romeu.
O romance histórico é tido como um gênero literário em prosa em que a narrativa ficcional se ambienta no passado. No livro, Lopes nos brinda com 18 contos que nos levam a uma viagem aos primórdios da ocupação da baía da Guanabara, uma baía ainda de águas cristalinas, cheias de peixes e ilhas, praias e enseadas que não existem mais em razão da poluição e aterros. Nessa arqueologia, o autor nos traz nomes de locais já esquecidos e apagados dos mapas, palavras que caíram em desuso, narrativas e histórias que se perderam no tempo. Mas Lopes nos apresenta uma baía que não necessariamente existiu de fato, mas que é bem real na desigualdade, na miscigenação, na violência, nas epopéias, na diversidade, nos mistérios. Uma baía de contrastes.
Na infância e juventude morei em Niterói, em alguns endereços bem perto do mar da baía: Praias das Flechas, Icaraí e Boa Viagem. A vida em torno dessa baía é cheia de encantos, contrastes e mistérios. Lopes nos apresenta algumas versões bem humoradas que procuram desvendar alguns desses mistérios.
Em entrevista a Ana Maria Gonçalves (https://livreopiniao.com/2017/09/05/em-entrevista-nei-lopes-conversa-sobre-seu-novo-livro-nas-aguas-desta-baia-ha-muito-tempo/), Nei Lopes informa de onde veio a ideia do livro:
"- O que tem acontecido mais é a vontade de contar a história e eu escolher o lugar onde ela vai se desenvolver. Mas no caso deste 'contos da Guanabara', tudo começou pela constatação enorme de ilhas e ilhotas existentes na nossa Baía. No meu trajeto, da periferia onde moro até a capital, isso um dia me ocorreu. E a ideia começou a tomar forma numa viagem de barca a Paquetá. Aí, busquei na memória e nos livros as referências: Lima Barreto na Ilha do Governador e estudando em Niterói; o maestro Anacleto de Medeiros em Paquetá; o episódio de João Cândido… Mas cravei, mesmo, a seta no alvo quando li detalhes sobre a Revolta da Armada, no fim do século 19. Aí, resolvi fazer desse evento histórico, a âncora (sem trocadilho) do conjunto de contos que escrevi."
E mais adiante acrescenta:
"- A grande história que eu venho contando é a da exclusão do povo negro. Isso é o que perpassa toda a minha obra. E acho que venho conseguindo fazer isso sem lamúria, com picardia, com molho, com 'suingue'. Afinal de contas, eu sou sambista; e isso para mim é fundamental..."
Como diz a música de Aldir e Bosco: "há muito tempo nas águas da Guanabara..." Não perca a oportunidade de entrar nessa nau e empreender essa viagem no tempo.
Boa leitura e diversão!
Por F@bio
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