"(...)
Andando, andando, o homem chegou ao porto, foi à doca, perguntou pelo capitão, e enquanto ele não chegava deitou-se a adivinhar qual seria, de quantos barcos ali estavam, o que iria ser o seu, grande já se sabia que não, o cartão de visita do rei era muito claro neste ponto, por conseguinte ficavam de fora os paquetes, os cargueiros e os navios de guerra, tão-pouco poderia ser ele tão pequeno que resistisse mal às forças do vento e aos rigores do mar, o rei também havia sido categórico neste ponto, Que navegue bem e seja seguro, foram estas as suas formais palavras, assim implicitamente excluindo os botes, as faluas e os escaleres, os quais, sendo bons navegantes, e seguros, conforme a condição de cada qual, não tinham nascido para sulcar os oceanos, que é onde se encontram as ilhas desconhecidas. Um pouco afastada dali, escondida por trás de uns bidões, a mulher da limpeza correu os olhos pelos barcos atracados, Para o meu gosto, aquele, pensou, porém a sua opinião não contava, nem sequer havia sido ainda contratada, vamos ouvir antes o que dirá o capitão do porto. O capitão veio, leu o cartão, mirou o homem de alto a baixo, e fez a pergunta que o rei se tinha esquecido de fazer, Sabes navegar, tens carta de navegação, ao que o homem respondeu, Aprenderei no mar. O capitão disse, Não to aconselharia, capitão sou eu, e não me atrevo com qualquer barco, Dá-me então um com que possa atrever-me eu, não, um desses não, dá-me antes um barco que eu respeite e que possa respeitar-me a mim, Essa linguagem é de marinheiro, mas tu não és marinheiro, Se tenho a linguagem, é como se o fosse.
(...)"
Transcrito de O Conto da Ilha Desconhecida de José Samarago, foi lançado em 1997 e está disponível em http://contobrasileiro.com.br/
José Saramago, um dos maiores nomes da literatura portuguesa, jornalista, escritor e poeta, nascido em 1922 e falecido em 2010. Ganhador dos Prêmios Nobel e Camões, tem vasta obra de contos e romances, incluindo Ensaio sobre a Cegueira, adaptado para o cinema. Deixou como legado, além de sua obra, a Fundação José Saramago com o objetivo de defesa dos direitos humanos e do meio ambiente, situada na Casa dos Bicos, em Lisboa - Portugal.
Saramago nos presenteia com um texto, que embora curto, é extremamente denso de conteúdo e imagens. Nos faz questionar sobre nossa acomodação com os papéis sociais e o medo do desconhecido. Nos traz uma escrita que rompe com as regras da gramática, mas não com a musicalidade do texto e a magia das palavras. O conto é divertido e filosófico, no sentido de que nos faz pensar sobre a eterna busca do homem sobre si mesmo e o sentido da vida.
No conto, um homem simples demanda ao Rei um barco para navegar até uma ilha desconhecida, que acredita existir, mas que só de fato saberá se o é, quando lá chegar e torna-la então conhecida.
O sonho e a imaginação tornam a aventura possível. A ficção nos permite viajar até lugares inimagináveis, sem necessariamente sair de onde nos encontramos. Essa é a magia dos livros a nos transportar a lugares possíveis e impossíveis. Para sonhar, basta existir!
Por F@bio
A idéia é, como um navio cargueiro, recolher e reunir escritos da literatura que nos encantaram. Que tal navegar comigo, sugerir, criticar, interagir? Poste seu comentário e torne-se um amigo do Blog.
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sábado, 14 de junho de 2014
domingo, 20 de junho de 2010
Protopoema - José Saramago
"Do novelo emaranhado da memória,
da escuridão dos nós cegos,
puxo um fio que me aparece solto.
Devagar o liberto,
de medo que se desfaça entre os dedos.
É um fio longo, verde e azul, com cheiro de limos,
e tem a macieza quente do lodo vivo.
É um rio.
Corre-me nas mãos, agora molhadas.
Toda a água me passa entre as palmas abertas,
e de repente não sei se as águas nascem de mim,
ou para mim fluem.
Continuo a puxar,
não já memória apenas,
mas o próprio corpo do rio.
Sobre a minha pele navegam barcos,
e sou também os barcos
e o céu que os cobre
e os altos choupos que vagarosamente deslizam sobre a película luminosa dos olhos.
Nadam-me peixes no sangue
e oscilam entre suas águas
como os apelos imprecisos da memória.
Sinto a força dos braços e a vara que os prolonga.
Ao fundo do rio e de mim,
desce como um lento e firme pulsar do coração.
Agora o céu está mais perto e mudou de cor.
É todo ele verde e sonoro porque de ramo em ramo
acorda o canto das aves.
E quando num largo espaço o barco se detém,
o meu corpo despido brilha debaixo do sol,
entre o esplendor maior que acende a superfície das águas.
Aí se fundem numa só verdade as lembranças confusas da memória
e o vulto subitamente anunciado do futuro.
Uma ave sem nome desce donde não sei
e vai pousar calada sobre a proa rigorosa do barco.
Imóvel, espero que toda a água se banhe de azul
e que as aves digam nos ramos por que são altos os choupos
e rumorosas as suas folhas.
Então, corpo de barco e de rio na dimensão do homem,
sigo adiante para o fulvo remanso que as espadas verticais circundam.
Aí, três palmos enterrarei a minha vara até à pedra viva.
Haverá o grande silêncio primordial quando as mãos se juntarem às mãos.
Depois saberei tudo"
Poesia de José Saramago obtida no Jornal da Poesia disponível em http://www.revista.agulha.nom.br/1saramago1.html
José Saramago, um dos grandes mestres da lingua portuguesa, com seu estilo inconfundível, nos deixou um rico legado, com obras magistrais. Um novelo que ele soube como ninguém densenrolar e tecer de forma primorosa. Novelo que foi sua linha de vida e criação, um rio no qual navegou o barco de sua pena. Juntas suas mãos, saberá mais ainda agora como tecer a flor do láscio ou já sabia o que bastava?
Por F@bio
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