Mostrando postagens com marcador Françoise Massa. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Françoise Massa. Mostrar todas as postagens

segunda-feira, 6 de dezembro de 2021

Um frances no vale do rio Carangola - Francoise Massa

"Nada parecia destinar Alexandre-Marie Bréthel a esse longo exílio, a essa partida sem retorno. Ele nascera a 30 de janeiro de 1834 em Douarnenez. Sua família era abastada, bem que de origem modesta. Seu pai, Alexandre-Alain, após ter sido cirurgião da marinha, depois cirurgião prático em Langonnet, se estabelecera em Douarnenez em 1834. Parece que ele teve sucesso nos negócios se se considera os bens (várias casas, terrenos) enumerados no inventário aberto com a morte de sua mulher, falecida em 1854. Alexandre-Marie tinha então vinte anos e em toda a vida evocará com muita ternura sua mãe, desaparecida muito jovem, e de quem sentirá falta da afeição indulgente e compreensiva.

...

Por que numa tarde de setembro de 1862 Alexandre Bréthel embarcou em um vapor que devia levá-lo ao novo continente, de onde, apesar de seus esforços e esperanças, nunca retornou? As razões são múltiplas e seria dificil dizer o que foi realmente determinante.

...

Todavia, parece que Alexandre ainda não tinha encontrado seu equilíbrio e que sempre esteja à procura de uma situação melhor. Assim quando em 1862 encontra o Sr. Monlevade, é com prazer que aceita a nova situação que lhe é oferecida para ir administrar as plantações brasileiras por dez anos".

Massa coloca assim os antecedentes da partida de Alexandre Brèthel para o Brasil. Mas além do sua ampla e muito bem contextualizada pesquisa, ela incluiu no livro a correspondência que ele manteve com familiares na França que são muito ricas em informações e também poéticas, a exemplo do relato que Alexandre faz para o tio da viagem do Rio de Janeiro ao Carangola:

"O Carangola é uma pequena região que margeia umas vinte léguas o rio Carangola e estende-se umas cinco ou seis léguas sobre cada margem ...

Você faz a viagem? - Certamente compadre Alexandre, - Então caro tio ...

Adeus ao Rio, a bela, a cidade voluptuosa e rica, escondida no fundo de uma baía magnífica. O navio a vapor desliza ao meio de embarcações de bandeiras coloridas de todas as nações marítimas do mundo. Você passa o canal, o forte de Santa Cruz, a montanha do Pão de Açúcar; a maré é mais forte, a terra desapareceu, você está em alto mar.

O navio aponta para o norte, desça para sua cabine, está de noite, tem bruma e o mar é bravio sobretudo nas proximidades de Cabo Frio.

...

Você dormiu bem? Um copo de conhaque para dispersar o vapor da manhã e suba ao convés ... Leme a bombordo, o navio vira um quarto de círculo, a terra logo é vista.

Um rio, é o Paraíba com a cidade de São João da Barra, 3000 habitantes, assentada sobre a margem direita. A maré está alta, você salta a passarela ... pare ... barcos menores acostam, conduzem passageiros, levam seus amigos da véspera ... e ... a caminho; depois de oito léguas nova parada ... é a cidade de Campos (12 mil habitantes) e duas léguas mais alto, uma grande clareira na margem esquerda anuncia um afluente do Paraíba, o Muriaé. De sua parte, você desce do navio que continuará sua viagem fluvial sete léguas a montante, até São Fidelis, e você, agachado em uma canoa índia, um metro de largura e trinta de comprimento, sobe o Muriaé umas doze léguas e sempre à esquerda encontra um rio novo, o Carangola.

Veja sob essa palmeira, esses dois índios, um homem e uma mulher, são Caran e Gola, duas almas, os deuses do rio; uma rede esfarrapada está suspensa no tronco de uma palmeira, embaixo um arco quebrado; ali, bem perto, brasas apagadas.

Avance sobre as águas límpidas do rio, escute os cantos dos índios que remam nas pontas da canoa e admire as majestosas matas que dão sombras às margens. Escute o roçar dos arbustos, esse barulho de folhas secas, arme sua carabina, mire a anta abaixo da pá, ela vem beber no rio e esta noite no rancho você terá um excelente assado. Mas, fogo outra vez sobre esta imitação de tronco de árvore, é um tranquilo jacaré (crocodilo) que desliza sobre as águas sonhando com novos ataques.

Ali o rio é cheio de areia; impulsione a canoa, empurre firme, não tenha medo, é um tronco de árvore oco; bem, já tem mais água, rápido a bordo, não pendure assim, vai virar a canoa. A grande árvore à direita é o angelim ou árvore que chora, no meio dos mais fortes calores do dia, suas folhas destilam água que cai gota a gota; aquele cipó flexível e fino que desce como uma driça de bandeira da árvore tão alta é o timbó, uma infusão de uma pequena parte dele seria a morte pronta e segura. O macaco que sobe naquele sapucaieiro é o barbado; você conhece seu grito rouco e é uma espécie de coco do tamanho de uma cabeça de criança, com amêndoas muito gostosas; aquela cobra dourada cheia de ranhuras negras que se enrola naquele coqueiro é a surucutinha, que Deus o proteja do veneno dela. Papagaios e colibris olham passar o viajante que vem das terras dos caras pálidas. Como a brisa é perfumada, como essa natureza silenciosa e florida descança a cabeça e o coração.

A lua apareceu e prateia o rio e a mata; os índios a saúdam com uma canção enquanto um deles acompanha o ritmo triste e cadenciado na viola.

...

A canoa atraca, acendem fogueiras sobre a areia para afastar animais selvagens. Você grelha uns peixes que um guia pesca no rio, o arroz coze em uma panela e seu assado de anta suspenso em um galho doura ao fogo; você tem pimenta, sal, vinagre, aguardente. Que banquete! Não procure garfos, nem pratos, nem colheres, nem guardanapos, pois seria trabalho perdido; você tem seu facão de caça e por prato a metade de um coité [cuia], basta, basta, caro tio. Pegue o peixe, o arroz, um bom pedaço de anta, corte tudo, salpique pimenta e sal, coloque por cima um fio de vinagre, misture bem e acione as mandíbulas. Um gole de aguardente para desengordurar os dentes e deixe a garrafa aos guias.

Perto do fogo, enrolado em sua capa, com a carabina à mão, a faca de caça deslizando bem na bainha e o revólver na cintura, boa noite, não sonhe com tigres, serpentes, nem negros fugidios; talvez possa cantar com seus guias, nada mais é preciso. Boa noite ainda, sonhe com a França.

Sua viagem termina ... você percorreu sete léguas do Carangola e já escuta o barulho das cachoeiras; uma clareira na mata, é a vila de Tombos do Carangola. Pé na terra, caro tio, seu sobrinho, o boêmio bretão, sua mulher e a filha desejam-lhe boas-vindas."

Trechos do livro "Um francês no vale do Carangola: Alexandre Bréthel, farmacêutico e fazendeiro (pesquisa sobre sua correspondência brasileira, 1861 - 1901)", de Françoise Massa. Tradução de Heloisa Azevedo da Costa. Belo Horizonte: Crisálida, 2016.

A autora e pesquisadora, Françoise Massa, escreveu o livro como fruto de sua tese de doutorado. Massa tem vasto currículo no ensino e pesquisa de espanhol e português como professora da Universidade de Rennes 2 - Haute Bretagne, onde trabalhou de 1970 a 2002. Entre suas obras, se destacam, em coautoria com Jean Michel Massa, os dicionários bilingues e enciclopédicos sobre a lingua escrita em São Tomé e Principe e em Cabo Verde.

O acaso e a sorte contribuiram para a preservação das ricas cartas enviadas por Alexandre Bréthel a familiares entre 1862 e 1887. Como relata a autora, essa correspondência estava esquecida no celeiro de um solar na Bretanha e "esperava que a descobrissem ou a destruíssem e, com ela, o passado que ela permitiria fazer reviver". Como afirma a tradutora, Heloisa Costa, "Tão importante quanto o cronista é o homem cujo drama vai sensibilizar o leitor: um imigrante que pensava retornar em dez anos e por circunstâncias de vida nunca mais volta a sua terra; um homem culto que se exila em uma região de matas em pleno interior do Brasil; uma alma romântica que procura respostas para suas inquietações".

Nasci nessa região do vale do Carangola, no Noroeste Fluminense, e foi com muito entusiasmo que, a partir da leitura dos relatos de Massa e Bréthel, viajei no tempo e pude reconhecer nas lembranças de minha infância os restos da região que sobraram da época em que lá viveu o imigrante bretão: as estradas quase intransponíveis, a ausência de luz elétrica, as tempestades tropicais assustadoras, as fazendas quase auto-suficientes, os animais silvestres ainda sobreviventes, os restos de matas, os rios, cachoeiras, o cafezal...

O livro é um belo resgate do Brasil interiorano e quase selvagem da segunda metade do Século XIX.

Boa leitura!

Por F@bio