quinta-feira, 28 de janeiro de 2021

Coração das Trevas - Joseph Conrad

"Dali a alguns dias a Expedição Eldorado penetrou na selva paciente, que se fechou novamente atrás deles como as águas do mar à passagem de um mergulhador...

Subir aquele rio era como viajar de volta aos primórdios da existência do mundo, quando a vegetação cobria a Terra em desordem e árvores imensas reinavam nas matas. Um curso de água intacto, um grande silêncio, uma floresta impenetrável. O ar era quente, denso, pesado, inerte. Não havia alegria alguma no brilho da luz do sol. Os longos trechos de rio se estendiam, desertos, até a escuridão das distâncias envoltas em sombras. Em bancos de areia prateada. hipopótamos e crocodilos tomavam sol lado a lado. O leito cada vez mais largo do rio corria pelo meio da multidão de ilhas arborizadas. Era tão fácil perder-se naquele rio quanto num deserto, e você passava o dia inteiro raspando o fundo do barco nos baixios, tentando encontrar o canal, até achar que tinha sofrido algum feitiço e fora separado para sempre de tudo que algum dia conhecera - em algum lugar - muito distante - numa outra existência, talvez. Havia momentos em que o passado me tomava de assalto, como ocorre às vezes quando você não tem um momento sequer para si mesmo; mas chegava na forma de um sonho inquieto e ruidoso, rememorado com espanto em meio às realidades avassaladoras daquele estranho mundo de plantas, água e silêncio. E essa calmaria da vida em nada lembrava a paz. Era a calma de uma força impiedosa, pairando acima de uma intenção inescrutável. Ela nos contemplava com uma expressão de vingança...

As águas pardacentas corriam rápidas para longe do coração das trevas, levando-nos rio abaixo na direção do mar ao dobro da velocidade do nosso avanço a montante; e a vida de Kurtz também se escoava depressa, esvaindo-se, esvaindo-se do seu coração para ir desaguar no mar do tempo inexorável..."


Trechos do livro "Coração nas trevas", de Joseph Conrad (trad. Sergio Flaksman). São Paulo: Companhia das Letras, 2008.



Jozef Teodor Konrad Korzeniowki (1857 - 1924), filho de poloneses, nasceu em Berditchev, Polônia (hoje Ucrânia) à época dominada pela Rússia czarista. Seu primeiro contato com a língua inglesa deu-se através do pai, tradutor de Shakespeare e outros autores renomados. A família foi perseguida politicamente e Conrad ficou órfão ainda cedo. Aos 16 anos viajou para Marselha na França para realizar seu desejo de viver no Mar, ingressando na Escola de Marinha. Em 1878 mudou-se para a Inglaterra, onde seguiu carreira na marinha, e em 1884 obteve a cidadania britânica com o nome Joseph Conrad. Esteve no Congo, Malásia e outros países que inspiraram muitos de seus romances. Após ter abandonando a carreira na marinha, em 1893, em razão de doenças contraídas na América do Sul e Extremo Oriente, passando a dedicar-se à literatura. Publicou o primeiro livro aos 38 anos, "A loucura do Almayer". Dentre suas obras de maior destaque estão "Lord Jim" (1900), "Coração das trevas" e "Juventude" - veja breve resenha aqui no Cargueiro de Letras - (1902), "O agente secreto" (1907), "Sob os olhos ocidentais" (1911) e "A linha da sombra" (1917). Conrad faleceu na Inglaterra em 1924. .


Publicado em forma de livro em 1902, a novela Coração das trevas é um dos maiores clássicos da literatura do Século XX, conhecida também por ter sido fonte de inspiração para o filme Apocalypse Now, de Francis Ford Coppola de 1979.

No livro, o protagonista recebe a missão de resgatar um importante comprador de marfim, cujos métodos já não atendem mais aos interesses da empresa. Trata-se de uma história dentro da história, no qual um narrador implícito, nos apresenta ao protagonista, Marlow, que se torna o narrador principal. Ele então passa a contar a sua aventura na África (Congo) para amigos a bordo de um navio ancorado no Rio Tâmisa. O tempo vai anoitecendo sobre Londres e, com isso, a atmosfera densa e pesada da narrativa acaba envolvendo os ouvintes e também os leitores. 

Conforme Luiz Felipe de Alencastro aborda no posfácio "Persistência das trevas", incluso na edição em comento: "De mais a mais, a intensidade e a sutileza da novela, bem como as questões morais, históricas e literárias nela introduzidas, convertem-se num dos textos obrigatórios... Ensaios e comentários críticos sobre Coração das trevas privilegiam, de maneira geral, duas linhas de interpretação em boa medida complementares: a primeira, cujo conteúdo está sobretudo na metade inicial do texto, concerne à desumanização e à violência engendradas pelo colonialismo europeu na África. Mais baseada na outra metade da novela, a segunda leitura aponta para a inquietação existencial e o desregramento de indivíduos confrontados com a ruptura dos laços sociais". 

Fala-se muito ultimamente na questão do racismo e muitos não se dão conta de quão enraizada ele está na estrutura de nossa sociedade, desde que a cor da pele passou a ser a característica depreciativa da pessoa e razão para ser tratada como ser inferior, inclusive por diversos pseudos estudos acadêmicos e científicos. Conrad traça uma crítica ao colonialismo e Alencastro relembra o que o autor escreveu anos depois do lançamento: "Este tema sombrio tinha de ser tratado com uma sinistra ressonância, uma tonalidade própria, uma vibração continua que, eu esperava, soaria no ar e permaneceria no ouvido depois que a última nota tivesse sido tocada".  Ainda segundo Alencastro, "mais de cem anos após sua publicação, a novela ainda nos interpela como leitores e como cidadãos do mundo". E não poderia ser diferente, pois quase um século e meio após o termino da escravidão negra no Brasil, a questão do racismo que restou como herança maldita daquele longo período, ainda persiste entre nós, lamentavelmente.

Boa leitura e reflexão!

Por F@bio


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