"É aquela velha história: eu tinha uma amiga, nós partilhávamos tudo, e então ela morreu e nós, partilhamos isso também.
...Como a maioria das memórias marcadas pelo capítulo final, as minhas têm o peso físico da tristeza. O que nunca nos dizem a respeito do luto é que sentir falta de alguém é a parte mais simples.
...A aceitação [da perda], inadivertidamente, envolve o nosso coração. Naquele ano, eu vagava por uma casa aberta à visitação na vizinhança e vi um soneto emoldurado de Pablo Neruda na parede; falava algo sobre a natureza espacial da perda que eu jamais vira articulado antes. A morte de Caroline era um lugar vago no coração, um lugar que eu nem podia nem desejava preencher. Fiquei confusa pela prevalência desses sentimentos, a sensação de que a partida dela era algo em si mesmo, uma memória cercada por uma fita de isolamento, na qual mudar qualquer coisa seria uma ofensa terrível. Mas aqui estava Neruda, solicitando aos enlutados que habitassem a morte como se ela fosse uma morada:
'Ausência é uma casa tão grande
que lá dentro você vai atravessar paredes
e suspender imagens no ar.'
Eu morei naquela casa de ausência, obtive consolo nela, até que a mágoa se tornasse um substituto daquilo que havia partido. 'O luto ... me fez lembrar de seus traços mais belos', diz Constance, de Shakespeare, em Rei João, sobre a perda de seu filho. 'Então, eu tenho motivos para apreciar a dor.' Eu sabia que nunca mais teria outra amiga como Caroline; eu suspeitava que ninguém mais iria me conhecer tão bem novamente. Que Caroline fosse insubstituível era uma lealdade agridoce: sua morte era o que eu tinha agora ... Durante meses, eu quis ligar para ela, achando que podia, para dizer o que sua morte havia significado, o que sua morte havia feito com minha vida ... Eu não era capaz de suportar a evidente ausência de Caroline ou a noção insignificante de que memória era tudo o que a vida eterna realmente significa, e passei tempo demais me perguntando onde as pessoas encontram forças para continuar se movimentando para além dos mortos...
Eram quase cinco da manhã quando eu voltei andando para uma casa infinitamente silenciosa, mais triste do que lágrimas poderiam jamais dizer, sabendo que eu estava no corredor de algo muito maior do que eu e que tinha de aguentar e permanecer onde estava...
Os velhos tecelões da tribo Navajo costumavam inserir um fio destoante em cada um de seus tapetes, uma cor contrastante que ia até a borda do tapete. É possível identificar um tapete autêntico por essa falha intencional, que é chamada de linha do espírito, cujo propósito seria liberar a energia aprisionada dentro do tapete e pavimentar o caminho para a próxima criação.
Todas as histórias da vida que merecem ser lembradas têm uma linha de espírito. Você pode chamar isso de esperança, 'amanhã', ou 'e então' de sua história, mas sem isso - sem o fato dissonante e reluzente do desconhecido e do incontrolável - a consciência e tudo o mais iria cair e implodir. O Universo insiste: o que é fixo é também finito."
Trecho do romance A memória de uma amizade eterna (Let's take de long way home), de Gail Caldwell (tradução de Beatriz Bastos). São Paulo: Globo, 2011.
Gail Caldwell é escritora e crítica literária americana. Foi a principal crítica e chefe de crítica literária do jornal The Boston Globe, onde trabalhou na equipe de 1985 a 2009. Caldwell foi vencedora do Prêmio Pulitzer de 2001. O prêmio foi para oito resenhas de domingo e duas outras colunas escritas em 2000.
Duas amigas que se tornaram inseparáveis. Ambas eram escritoras, mas uma sabia nadar e a outra remar. As duas queriam trocar experiências e, por anos, remaram, caminharam e conversaram juntas. Um livro de memórias sobre como o laço entre duas mulheres pode iluminar os momentos mais hilários e também os mais solitários e tristes da vida, incluindo a morte. Outro fato em comum entre as duas foi a luta para vencer o alcoolismo ("a taça de vinho branco que Caroline segurava era, ao mesmo tempo, sua varinha mágica e seu punhal") e amor por cachorros e com eles fazem longas caminhadas aos som de suas conversas, quando falavam sobre tudo: alcoolismo, tabagismo, relacionamentos com homens, trabalho, literatura, esportes, cachorros, família...
Narrado de forma envolvente, é um livro que nos faz refletir sobre o poder da amizade, nossas perdas e superações, sobre o sentido da vida.
Transcrevo o poema completo de Pablo Neruda na tradução original:
"Se eu morrer, sobrevive a mim com tamanha força
que acordarás as fúrias do pálido e do frio,
de sul a sul, ergue teus olhos indeléveis,
de sol a sol sonha através de tua boca cantante.
Não quero que tua risada ou teus passos hesitem.
Não quero que minha herança de alegria morra.
Não me chames. Estou ausente.
Vive em minha ausência como em uma casa.
A ausência é uma casa tão rápida
que dentro passarás pelas paredes
e pendurarás quadros no ar.
A ausência é uma casa tão transparente
que eu, morto, te verei, vivendo,
e se sofreres, meu amor, eu morrerei novamente."
Ontem perdi uma grande amiga e hoje esse livro me veio à mente. Eu o li recentemente, uma de minhas leituras nesses tempos de isolamento e pandemia (na saúde e na política). A doença tem ceifado muitas vidas de forma trágica, pois é desconhecida e a ciência ainda não compreende porque uns resistem e outros não. Tempos de dor, em que as ausências tornam-se muito presentes em nossas vidas. Me identifico muito com uma frase da autora "minha idéia de um dia produtivo ... era ler por horas a fio e ficar olhando pela janela".
Boa leitura!
Por F@bio
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