Mostrando postagens com marcador Germano Schinkoeth Reis. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Germano Schinkoeth Reis. Mostrar todas as postagens

segunda-feira, 5 de abril de 2021

Guerreiro Camaleão, O soldado do Kaiser - Germano Schinkoeth Reis

"Duas horas direitinho, nós aguentamos no mais terrível fogo de granadas. Por sorte, a maioria passava por cima de nós. Escutamos altos brados de comando lá na frente, eram os pioneiros que tinham terminado o serviço de demolição. Ordeno a retirada. Retornamos, aproveitando grande parte da vala como proteção. Dois homens mal conseguiam andar. O fogo inimigo estava tão forte que, na retaguarda, ficaram admirados com a nossa chegada e com a missão cumprida.
... Porto de Bremen, setembro de 1880. Consegui emprego como foguista no vapor 'Berlin'. Tive que pagar doze marcos para o oficial que contrata os marinheiros. Era meu último dinheiro, sobrou apenas um marco. Eu pensava em ir para a América, Austrália ou África. Mas o navio vai para o Brasil, para a América do Sul.
... Em uma pequena venda, mais voltada para o comércio de bebidas, conheci Otto, um ferreiro, que está há mais de dois anos em São Paulo e também só conseguiu juntar umas poucas economias. Ele disse que vai tentar a sorte na Amazônia (...) [onde] está existindo um eldorado da borracha e muitos estão ficando ricos com ela ... Falou-me também de uma região no interior do Rio de Janeiro, um pouco ao norte, onde existia outro eldorado verde, o do café. Argumentei com ele, como pode ser ouro verde, se o café é preto? Ele explicou que naquela região montanhosa, todos os morros estavam cobertos de cafezais de um tom verde muito bonito, e que na época da floração, ficavam brancos de flores, como um brilho. Como estava gerando muitas riquezas, apelidaram-no de 'ouro verde'.
... Agora vejo a vida como um tabuleiro de xadrez, com suas peças dispostas de forma ordenada. As mais importantes ficam atrás, mais protegidas. A linha de frente, a dos peões, é a primeira a ir para o sacrifício, sem piedade. Com isso fica fácil entender que só os grandes lances, os mais inteligentes e incomuns podem levar à vitória. Sinto que estou fazendo isto agora.
... Quando está acontecendo uma grande guerra, que direta e indiretamente afeta quase todos, por vezes até mesmo quem se encontra distante, é dificil que esse assunto não faça parte de quase todas as conversas. Sabendo de minha participação na [guerra] Franco - Prussiana, Zambrotti, quase que suplicando, insistiu para ouvir como é uma guerra por dentro, contada em detalhes, sem mentiras ou exageros que tanto aparecem nos jornais. Pensei um pouco antes de responder e fui bem claro. - Escute bem, Zambrotti. Prefiro não falar sobre isso, porque não são boas lembranças. Mas vou te contar sobre algo melhor, não sei se na sua terra natal existe alguma coisa parecida. Também não sei se era uma tradição familiar ou regional de onde nasci; bem ao norte, quase na fronteira com a Polônia. Sempre que um rapaz terminava os estudos de sua profissão, antes de começar a trabalhar, tinha que fazer uma espécie de iniciação para a vida. Ela consisitia em uma peregrinação solitária, sem dinheiro, munido apenas de um cajado e uma pequena trouxa de roupas. Eu realizei aos dezesseis anos de idade, logo após minha formatura. (...) Meu pai me entregou o cajado que ele e meu avô já tinham usado, e me explicou que era para cultivar três virtudes: liberdade, humildade e coragem. Já adulto é que compreendi melhor esses valores, que muito me ajudaram a vencer na vida. Quanto à liberdade, era para cortar o cordão umbilical com a família. Descobrir seu grande valor, e sempre fazer por onde nunca perdê-la. Quanto à humildade, cultivada pedindo comida nas casas, era para aprender a não ter vergonha de pedir ajuda, mas sem se curvar, sem subserviência. Por fim, a coragem. Para enfrentar a vida sem medo, sem se acomodar, caminhando sempre em frente, em busca de um sonho a ser realizado. Foram dois meses caminhando pelo norte da Alemanha. Quando retornei, senti que já era um homem, pronto para enfrentar a vida."
Trecho do romance biográfico "Guerreiro Camaleão - O soldado do Kaiser", de autoria de Germano Schinkoeth Reis. São Paulo: All Print Editora, 2013.
Germano Schinkoeth Reis é médico formado pela Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro, que "encontrou na cirurgia plástica e reparadora sua realização profissional". Militou na política e foi vereador por três mandatos, de 1993 a 2004, no município de Natividade (RJ), chegando a ser presidente da Câmara Municipal. Autor ainda do livro "Medicina Simples - Orientações e Medicações", pela Editora Vozes (2000).
O livro é baseado nos diários do avô do autor, o empresário germânico Carl Heinrich Schinkoeth, nascido em 1851, em Beneschau/Schleisien - Alemanha, e falecido em 1928, em Natividade (RJ). O médico Germano S. Reis revelou-se um ótimo escritor que conseguiu dar um ritmo de aventura aos diários do avô. Como consta da contracapa do livro "Grandes escritores conseguem transformar biografias simples, com histórias comuns, em excelentes e famosos romances. Aqui se encontra quase o inverso, isto é, em linguagem simples, conta-se uma história riquíssima; quase inacreditável, mas verdadeira. Para não torná-la longa e enfadonha, a maior parte das anotações do personagem (quatro volumes em alemão) foi cortada para não cansar o leitor".
A trajetória de Carl começa a ser relatada com a sua participação na guerra Franco - Prussiana. Um jovem soldado que no front lidera seus companheiros e é condecorado com a mais alta distinção de bravura da época, a Cruz de Ferro, da qual ele, ao longo da vida, não irá se vangloriar. Pelo contrário, como no trecho acima transcrito, evitará falar sobre a guerra porque "não são boas lembranças". Após sua participação no conflito, ele irá trabalhar em condições muito duras em seu país, até decidir buscar melhores perspectivas no exterior. Por um acaso da vida e também pela falta de dinheiro, acaba embarcando num navio para a América, não a do Norte e sim a do Sul, vindo parar no Brasil, aportando em Santos, onde consegue fugir do inferno que era trabalhar de foguista nos porões da embarcação, sendo tratado praticamente como um escravo. No Brasil, um conterrâneo lhe informa sobre duas opções para ganhar dinheiro com "ouro verde": a borracha na Amazônia e o café no norte do Estado do Rio de Janeiro. Ele vai para a Amazônia e consegue ganhar dinheiro. Depois, volta para sua amada, Anna, que deixara na Alemanha. Mas a vida lá não estava fácil e Carl convence Anna a vir com ele para o Brasil, indo morar em Manaus, onde se torna industrial. Todavia, Anna não se adapta ao clima quente e úmido da cidade. Carl decide então ir em busca do outro "ouro verde". De trem chega a Natividade e lá se estabelece como comerciante e, após conhecer a serra de Varre-Sai de onde vinham tantas tropas de mulas carregadas de "ouro verde", exportador de café.
Como afirma seu neto, Germano, Carl Schinkoeth "no período da guerra que lutou, em que não se vangloriou de seus feitos, também [não] o fez no período em que se aventurou intrepidamente pela Amazônia e no mundo dos negócios, onde, de certa forma, existe um outro tipo de guerra, mas de inteligência e esperteza na disputa pelo dinheiro".
Me envolvi com a pesquisa genealógica - um vício - e por tal razão estou sempre pesquisando minhas origens. Nasci numa fazenda de café justo em Varre-Sai, e foi uma maravilha ler o livro e conhecer o relato de Carl ao subir a serra rumo às plantações de café no final do Século XIX. Trata-se de um período carente de relatos da geografia e economia da região e o livro trás um importante contribuição para conhecermos um pouco mais da vida regional na época. Aliás, a literatura é cada vez mais reconhecida como rica fonte de pesquisa histórica.