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segunda-feira, 31 de março de 2014
Os Estatutos do Homem - Thiago de Mello
(Ato Institucional Permanente)
A Carlos Heitor Cony
Artigo I.
Fica decretado que agora vale a verdade.
que agora vale a vida,
e que de mãos dadas,
trabalharemos todos pela vida verdadeira.
Artigo II.
Fica decretado que todos os dias da semana,
inclusive as terças-feiras mais cinzentas,
têm direito a converter-se em manhãs de domingo.
Artigo III.
Fica decretado que, a partir deste instante,
haverá girassóis em todas as janelas,
que os girassóis terão direito
a abrir-se dentro da sombra;
e que as janelas devem permanecer, o dia inteiro,
abertas para o verde onde cresce a esperança.
Artigo IV.
Fica decretado que o homem
não precisará nunca mais
duvidar do homem.
Que o homem confiará no homem
como a palmeira confia no vento,
como o vento confia no ar,
como o ar confia no campo azul do céu.
Parágrafo Único:
O homem confiará no homem
como um menino confia em outro menino.
Artigo V.
Fica decretado que os homens
estão livres do jugo da mentira.
Nunca mais será preciso usar
a couraça do silêncio
nem a armadura de palavras.
O homem se sentará à mesa
com seu olhar limpo
porque a verdade passará a ser servida
antes da sobremesa.
Artigo VI.
Fica estabelecida, durante dez séculos,
a prática sonhada pelo profeta Isaías,
e o lobo e o cordeiro pastarão juntos
e a comida de ambos terá o mesmo gosto de aurora.
Artigo VII.
Por decreto irrevogável fica estabelecido
o reinado permanente da justiça e da claridade,
e a alegria será uma bandeira generosa
para sempre desfraldada na alma do povo.
Artigo VIII.
Fica decretado que a maior dor
sempre foi e será sempre
não poder dar-se amor a quem se ama
e saber que é a água
que dá à planta o milagre da flor.
Artigo IX.
Fica permitido que o pão de cada dia
tenha no homem o sinal de seu suor.
Mas que sobretudo tenha sempre
o quente sabor da ternura.
Artigo X.
Fica permitido a qualquer pessoa,
a qualquer hora da vida,
o uso do traje branco.
Artigo XI.
Fica decretado, por definição,
que o homem é um animal que ama
e que por isso é belo.
muito mais belo que a estrela da manhã.
Artigo XII.
Decreta-se que nada será obrigado nem proibido.
tudo será permitido,
inclusive brincar com os rinocerontes
e caminhar pelas tardes
com uma imensa begônia na lapela.
Parágrafo único:
Só uma coisa fica proibida:
amar sem amor.
Artigo XIII.
Fica decretado que o dinheiro
não poderá nunca mais comprar
o sol das manhãs vindouras.
Expulso do grande baú do medo,
o dinheiro se transformará em uma espada fraternal
para defender o direito de cantar
e a festa do dia que chegou.
Artigo Final.
Fica proibido o uso da palavra liberdade.
a qual será suprimida dos dicionários
e do pântano enganoso das bocas.
A partir deste instante
a liberdade será algo vivo e transparente
como um fogo ou um rio,
e a sua morada será sempre
o coração do homem.
Santiago do Chile, abril de 1964
Publicado no livro Faz Escuro Mas Eu Canto: Porque a Manhã Vai Chegar (1965).
In: MELLO, Thiago de. Vento geral, 1951/1981: doze livros de poemas. 2.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 198
Obtido de: http://www.escritas.org/pt/poema/12844/os-estatutos-do-homem
Amadeu Thiago de Mello, nascido em Barreirinha, Amazonas, em 1926, é um dos maiores e mais respeitado poeta brasileiro. Seus versos são um canto de liberdade e de fé na humanidade, no homem solidário e transformador.
Preso durante a ditadura militar brasileira (1964-1985), exilou-se no Chile, onde construiu forte víncluo de amizade com outro poeta maior, Pablo Neruda. No exílio, morou na Argentina, Chile, Portugal, França, Alemanha. Com o fim do regime militar, voltou ao Brasil e à sua cidade natal, Barreirinha, onde vive até hoje.
Seu poema mais conhecido, Os Estatutos do Homem, aqui reproduzido, no qual o poeta enaltece os valores simples da natureza humana e o direito inalienável à liberdade. Abaixo, o próprio poeta declama o poema num encontro pelas liberdades democráticas realizado no Circo Voador, no Rio de Janeiro.
Lembro-me do meu tempo de militância política contra a ditadura, encontrar nos versos de Thiago a inspiração para continuar na luta pela liberdade. Lembro-me, também, de um dia, após retornar do exílio, vê-lo na Universidade Federal Fluminense, em Niterói, indo se juntar aos estudantes e declamar seu poema libertador. Fazia escuro ainda, mas cantávamos juntos pela amanhã de um novo dia, onde o sol iluminaria a todos: "Fica decretado que agora vale a verdade/que agora vale a vida,/e que de mãos dadas,/trabalharemos todos pela vida verdadeira."
Precisava marcar essa data de triste lembrança, onde a liberdade foi extirpada, a voz calada e o medo imposto sobre todos, para que saibam que a democracia que temos hoje foi conquistada com o braço forte dos que foram para as ruas e lutaram pela liberdade!!!
Por F@bio
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