segunda-feira, 11 de janeiro de 2021

Nas águas desta baía há muito tempo - Contos da Guanabara - Nei Lopes

 "Guanabara, pelo que eu sei, é um tipo de embarcação de um mastro só e vela grande, a tal da bujarrona. Mas dizem que os índios antigos chamavam assim isto tudo aqui, toda esta lagoa enorme de água salgada. Guaná-pará, eles diziam.

Guaná é "seio", "colo"; e pará é "mar". Então, eles achavam que esse mundão de água era o "seio do mar", veja você! Ou o seio, a mama, de onde brotava a água do mar.

...


No Valongo, quando chegava um comprador, quase sempre cercado de ciganos, calçados de botas, brincos nas orelhas e chicote - cada um tentando convencer o comprador de que sua mercadoria e seu preço eram melhores -, os negros se agitavam, se alegravam e se ofereciam à venda. Mas quando o negócio era fechado, era aquele desespero: irmãos separados; filhos arrancados dos pais, casais desfeitos ... E, de modo geral, aquilo era para sempre: nunca mais parentes, amigos, maridos, mulheres ... Nunca mais.

Valonguinho assistiu a muitas dessas cenas. Mas jamais esboçou qualquer expressão de tristeza ou alegria. Sozinho veio, sozinho ficou, sozinho foi se desfazendo, assim, sem parentes, sem amigos, sem idade, como um cão da rua, como uma pedra do cais. Talvez fosse melhor morrer ali mesmo e ali mesmo ser enterrado. Junto com os milhares de pretos novos que já chegaram quase sem vida ou, de modo inapelável, condenados à morte e ao esquecimento."



Trechos do livro de contos "Nas águas desta baía há muito tempo: contos da Guanabara", de Nei Lopes. Rio de Janeiro: Record, 2011.




Nei Lopes, carioca nascido em Irajá, aos 20 anos ingressou na Faculdade Nacional de Direito, mas acabou trocando a carreira de bacharel pela de compositor de música popular e escritor de ensaios, ficção e poesia. Em 1981, publicou seu primeiro ensaio: "O samba, na realidade: a utopia da ascensão social do sambista". Depois vieram outros com foco nas questões da negritude, até que, em 1987, publicou sua primeira obra de ficção: "Casos crioulos". Entre os ensaios escreveu também "Dicionário de banto", "Enciclopédia da diáspora africana", "Dicionário da antiguidade africana". Lopes ganhou o Prêmio Jabuti nas categorias Melhor Livro de Não Ficção e Livro do Ano com "Dicionário da história do samba", em coautoria com Luiz Antônio Simas. Recebeu também o prêmio Shell de Teatro pelas canções do musical "Bilac vê estrelas", de Heloisa Seixas e Júlia Romeu.  

O romance histórico é tido como um gênero literário em prosa em que a narrativa ficcional se ambienta no passado. No livro, Lopes nos brinda com 18 contos que nos levam a uma viagem aos primórdios da ocupação da baía da Guanabara, uma baía ainda de águas cristalinas, cheias de peixes e ilhas, praias e enseadas que não existem mais em razão da poluição e aterros. Nessa arqueologia, o autor nos traz nomes de locais já esquecidos e apagados dos mapas, palavras que caíram em desuso, narrativas e histórias que se perderam no tempo. Mas Lopes nos apresenta uma baía que não necessariamente existiu de fato, mas que é bem real  na desigualdade, na miscigenação, na violência, nas epopéias, na diversidade, nos mistérios. Uma baía de contrastes.

Na infância e juventude morei em Niterói, em alguns endereços bem perto do mar da baía: Praias das Flechas, Icaraí e Boa Viagem. A vida em torno dessa baía é cheia de encantos, contrastes e mistérios. Lopes nos apresenta algumas versões bem humoradas que procuram desvendar alguns desses mistérios.  

Em entrevista a Ana Maria Gonçalves (https://livreopiniao.com/2017/09/05/em-entrevista-nei-lopes-conversa-sobre-seu-novo-livro-nas-aguas-desta-baia-ha-muito-tempo/), Nei Lopes informa de onde veio a ideia do livro: 

"- O que tem acontecido mais é a vontade de contar a história e eu escolher o lugar onde ela vai se desenvolver. Mas no caso deste 'contos da Guanabara', tudo começou pela constatação enorme de ilhas e ilhotas existentes na nossa Baía. No meu trajeto, da periferia onde moro até a capital, isso um dia me ocorreu. E a ideia começou a tomar forma numa viagem de barca a Paquetá. Aí, busquei na memória e nos livros as referências: Lima Barreto na Ilha do Governador e estudando em Niterói; o maestro Anacleto de Medeiros em Paquetá; o episódio de João Cândido… Mas cravei, mesmo, a seta no alvo quando li detalhes sobre a Revolta da Armada, no fim do século 19. Aí, resolvi fazer desse evento histórico, a âncora (sem trocadilho) do conjunto de contos que escrevi." 

E mais adiante acrescenta: 

"- A  grande história que eu venho contando é a da exclusão do povo negro. Isso é o que perpassa toda a minha obra. E acho que venho conseguindo fazer isso sem lamúria, com picardia, com molho, com 'suingue'. Afinal de contas, eu sou sambista; e isso para mim é fundamental..." 

Como diz a música de Aldir e Bosco: "há muito tempo nas águas da Guanabara..." Não perca a oportunidade de entrar nessa nau e empreender essa viagem no tempo.   

Boa leitura e diversão!

Por F@bio


segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

Fim - Fernanda Torres

 "Como é possível prosseguir sem planos? Aos vinte, assassinam-se amores, amizades, vai-se em frente como uma flecha afiada: só mais tarde se aprende quão raros são os reais afetos. Não acredito em paixões tardias, não se ama mais depois dos quarenta. É mentira. No máximo, faz-se em acordo formal, finge-se saudade, apreço, mas a biologia não precisa dos arroubos juvenis de um velho."

...

"Desintegro no ar sobre Copacabana. Uma vez, li que a morte era o momento mais significativo da vida, e é mesmo. A minha foi boa, está sendo, não por muito mais."



Trechos do romance Fim, de Fernanda Torres. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.


Fernanda Torres é carioca, atriz de sucesso no teatro, televisão e cinema e colunista em jornais e revistas brasileiros. Atriz admirada pela sua capacidade representativa, seguindo a linhagem familiar, filha que é de atores muito talentosos, Fernanda Montenegro e Fernando Torres. 

Dizem que esse nome tem significado de "viajante ousado, corajoso" e assim me parece Fernanda, enveredando ousadamente pela literatura. Suas qualidades de escritora já haviam se revelado nas crônicas, mas se confirmaram na ficção. 

Com grandes sucessos nas telas e nos palcos em papéis cômicos, sua ficção também segue esse caminho da comédia de costumes, mas com uma dramática abordagem sobre os momentos em que a finitude da vida se nos apresenta sem subterfúgios. Como diz Sergio Rodrigues na contracapa do livro: "Nesse claro-escuro ela encontra matizes inéditos de sabedoria, crueldade, ternura, tristeza e humor". 

Trata-se de uma história sobre cinco amigos de longa jornada, ambientada em Copacabana, um bairro habitado majoritariamente por idosos, que vão relatando com humor fatos marcantes de suas vidas e amizade.

O livro é muito bem escrito e de leitura fluída no qual a autora nos apresenta uma graça que nos é muito próxima, porquanto há personagens que nos remetem a muitos de nossos familiares. Cheio de humor litorâneo, com praia, sol e sexo, mas também com tristeza, resignação, tragédia
e melancolia..

A narrativa é envolvente e, especialmente nesses tempos de pandemia e isolamento,  nos faz refletir sobre amizade, amores, perdas, encontros e desencontros, fracassos e superações, sobre o sentido e finitude da vida. 


Boa leitura e diversão!


Por F@bio


domingo, 27 de dezembro de 2020

Urubus - Carla Bessa

 "Ao puxar o sapato vem junto uma perna esgarçada. Mas não é só de calça desmembrada do dono, não. Tem gente dentro, carne, osso. Tem sexo. Dá para ver direitinho que tem tudo isso ali dentro da perna daquela calça. É homem. É, ou foi. Será que está vivo ou morto? Mas antes de se ocupar disso a mãozinha ainda gordinha de criança apalpa, se escarafuncha para dentro do bolso, quem sabe não tem dinheiro por aqui. Já teve várias vezes, tantos fundos de calça recheados ali no lixão.

Ao sentir-se cavoucado, o quadril lá dentro da roupa se contorce, vira de bruços, a mãozinha do ladrãozinho fica imprensada, vai junto, ai meu deus. Cambaleia-tropeça o menino por cima do corpo que, caramba tá vivo mesmo. O cheiro é: não tem nem como descrever, é é é azedo, é é é insuportável. O corpo nos resíduos parece que reside há muito tempo. O menino grita, mas da boca não sai som. Com desmedido esforço dá um último puxão cheio de dor-raiva-medo, a mão liberta, a boca solta um suspiro, aaaaah. Um pedaço de calça com pele grudada, escamas, gordura, um líquido preto vem junto na palma suja. O homem no meio do lixo se decompõe, o menino pensa"

...

"O velho é muito velho, e a rua, muito movimentada.

Os passinhos são curtos e lentos.

Pode ser que leve uma eternidade até ele alcançar a outra calçada. Pode ser que ele alcance a eternidade antes.

Isso é um ponto.

O outro ponto é que: há uma ilusão de ótica ali.

Se você semicerrar os olhos e olhar fixamente para o velho atravessando a rua, 

verá que:

é a rua que atravessa o velho"


Trechos do livro de contos Urubus de Carla Bessa. Rio de Janeiro: Confraria do Vento, 2019.



Carla Bessa é niteroiense, escritora, tradutora, atriz e diretora de teatro, que reside na Alemanha desde 1991. Escreveu também o livro de contos Aí Eu Fiquei Sem Esse Filho (Editra Oito e Meio, 2017). No ano passado lançou Urubus, livro que reúne 18 contos com personagens como crianças de lixões e pivetes de rua, idosos, prostitutas, travestis, golpistas, mulheres desiludidas ... restos de pessoas que vivem de restos de coisas e emoções.


Em 2019, Bessa ficou em terceiro lugar na categoria "Conto" do Prêmio Off-Flip (Festa Literária Internacional de Paraty) de Literatura. Neste ano, foi contemplada com o Prêmio Jabuti (categoria conto) com Urubus, que foi ainda o segundo colocado no Prêmio Clarice Lispector, da Biblioteca Nacional.


É um livro que se lê de um só fôlego, com uma linguagem direta e envolvente e essa urgência é parte da narrativa. Os contos estão entrelaçados, no tempo, espaço e personagens, e, nesse aspecto, me fez lembrar de outro livro, Fim, de Fernanda Torres, ambientado em Copacabana, como alguns dos contos de Bessa. 


Vale destacar a observação de Alexandre Kovacs (https://www.mundodek.com/2020/05/carla-bessa-urubus.html) "...os contos reunidos nesta mais recente antologia de Carla Bessa que apresenta um recurso técnico original ao fazer com que as narrativas se desenvolvam em um mesmo recorte de tempo e espaço, produzindo múltiplos pontos de vista para uma dada situação em função dos personagens envolvidos e suas próprias motivações".


Uma curiosidade é o conto Sem Verbo, um excelente exercício criativo escrito, como diz o título, sem verbo e nem por isso, carente de ação.


Nesses tempos tão obscuros e polarizados,  e ainda sob uma das maiores pandemias a assolar nosso planeta, grande parte das pessoas parece ter ligado um "dane-se" para o seu semelhante e se aglomera nas praias, parques, festas e bares, anda sem máscara e parece pouco se incomodar com centenas de milhares de vidas ceifadas. Como Carla escreve: "A verdade é que estão se devorando uns aos outros. E depois nós [os urubus] é que somos os abutres, nós os fatídicos,  os mau-agourentos, o ser humano é um bicho estranho mesmo. A nós deixam o trabalho de livra-los de seus próprios restos..."


Mais sobre a autora pode ser lido em https://homoliteratus.com/author/carla/


Boa leitura!


Por F@bio


domingo, 13 de dezembro de 2020

A memória de uma amizade eterna - Gail Caldwell

"É aquela velha história: eu tinha uma amiga, nós partilhávamos tudo, e então ela morreu e nós, partilhamos isso também.

...

Como a maioria das memórias marcadas pelo capítulo final, as minhas têm o peso físico da tristeza. O que nunca nos dizem a respeito do luto é que sentir falta de alguém é a parte mais simples.

...

A aceitação [da perda], inadivertidamente, envolve o nosso coração. Naquele ano, eu vagava por uma casa aberta à visitação na vizinhança e vi um soneto emoldurado de Pablo Neruda na parede; falava algo sobre a natureza espacial da perda que eu jamais vira articulado antes. A morte de Caroline era um lugar vago no coração, um lugar que eu nem podia nem desejava preencher. Fiquei confusa pela prevalência desses sentimentos, a sensação de que a partida dela era algo em si mesmo, uma memória cercada por uma fita de isolamento, na qual mudar qualquer coisa seria uma ofensa terrível. Mas aqui estava Neruda, solicitando aos enlutados que habitassem a morte como se ela fosse uma morada:

'Ausência é uma casa tão grande
que lá dentro você vai atravessar paredes
e suspender imagens no ar.'

Eu morei naquela casa de ausência, obtive consolo nela, até que a mágoa se tornasse um substituto daquilo que havia partido. 'O luto ... me fez lembrar de seus traços mais belos', diz Constance, de Shakespeare, em Rei João, sobre a perda de seu filho. 'Então, eu tenho motivos para apreciar a dor.' Eu sabia que nunca mais teria outra amiga como Caroline; eu suspeitava que ninguém mais iria me conhecer tão bem novamente. Que Caroline fosse insubstituível era uma lealdade agridoce: sua morte era o que eu tinha agora ... Durante meses, eu quis ligar para ela, achando que podia, para dizer o que sua morte havia significado, o que sua morte havia feito com minha vida ... Eu não era capaz de suportar a evidente ausência de Caroline ou a noção insignificante de que memória era tudo o que a vida eterna realmente significa, e passei tempo demais me perguntando onde as pessoas encontram forças para continuar se movimentando para além dos mortos...

Eram quase cinco da manhã quando eu voltei andando para uma casa infinitamente silenciosa, mais triste do que lágrimas poderiam jamais dizer, sabendo que eu estava no corredor de algo muito maior do que eu e que tinha de aguentar e permanecer onde estava...

Os velhos tecelões da tribo Navajo costumavam inserir um fio destoante em cada um de seus tapetes, uma cor contrastante que ia até a borda do tapete. É possível identificar um tapete autêntico por essa falha intencional, que é chamada de linha do espírito, cujo propósito seria liberar a energia aprisionada dentro do tapete e pavimentar o caminho para a próxima criação.

Todas as histórias da vida que merecem ser lembradas têm uma linha de espírito. Você pode chamar isso de esperança, 'amanhã', ou 'e então' de sua história, mas sem isso - sem o fato dissonante e reluzente do desconhecido e do incontrolável - a consciência e tudo o mais iria cair e implodir. O Universo insiste: o que é fixo é também finito."

Trecho do romance A memória de uma amizade eterna (Let's take de long way home), de Gail Caldwell (tradução de Beatriz Bastos). São Paulo: Globo, 2011.

Gail Caldwell é escritora e crítica literária americana. Foi a principal crítica e chefe de crítica literária do jornal The Boston Globe, onde trabalhou na equipe de 1985 a 2009. Caldwell foi vencedora do Prêmio Pulitzer de 2001. O prêmio foi para oito resenhas de domingo e duas outras colunas escritas em 2000.

Duas amigas que se tornaram inseparáveis. Ambas eram escritoras, mas uma sabia nadar e a outra remar. As duas queriam trocar experiências e, por anos, remaram, caminharam e conversaram juntas. Um livro de memórias sobre como o laço entre duas mulheres pode iluminar os momentos mais hilários e também os mais solitários e tristes da vida, incluindo a morte. Outro fato em comum entre as duas foi a luta para vencer o alcoolismo ("a taça de vinho branco que Caroline segurava era, ao mesmo tempo, sua varinha mágica e seu punhal") e amor por cachorros e com eles fazem longas caminhadas aos som de suas conversas, quando falavam sobre tudo: alcoolismo, tabagismo, relacionamentos com homens, trabalho, literatura, esportes, cachorros, família...

Narrado de forma envolvente, é um livro que nos faz refletir sobre o poder da amizade, nossas perdas e superações, sobre o sentido da vida.

Transcrevo o poema completo de Pablo Neruda na tradução original:

"Se eu morrer, sobrevive a mim com tamanha força
que acordarás as fúrias do pálido e do frio,
de sul a sul, ergue teus olhos indeléveis,
de sol a sol sonha através de tua boca cantante.
Não quero que tua risada ou teus passos hesitem.
Não quero que minha herança de alegria morra.
Não me chames. Estou ausente.
Vive em minha ausência como em uma casa.
A ausência é uma casa tão rápida
que dentro passarás pelas paredes
e pendurarás quadros no ar.
A ausência é uma casa tão transparente
que eu, morto, te verei, vivendo,
e se sofreres, meu amor, eu morrerei novamente."

Ontem perdi uma grande amiga e hoje esse livro me veio à mente. Eu o li recentemente, uma de minhas leituras nesses tempos de isolamento e pandemia (na saúde e na política). A doença tem ceifado muitas vidas de forma trágica, pois é desconhecida e a ciência ainda não compreende porque uns resistem e outros não. Tempos de dor, em que as ausências tornam-se muito presentes em nossas vidas. Me identifico muito com uma frase da autora "minha idéia de um dia produtivo ... era ler por horas a fio e ficar olhando pela janela".

Boa leitura!

Por F@bio

sábado, 7 de novembro de 2020

O filho eterno - Cristovão Tezza

"Ele sente uma outra estranheza, um mundo sob outro mundo, em camadas. Levou um susto, como alguém já definitivamente de um outro tempo. Todas as pessoas - ele pensa olhando o mar no belo caminho de volta, a criança no colo - estão no limite, permanentemente no limite de si mesmas; e no entanto do outro lado está apenas o tempo. Um passo em frente é o tempo que ele leva. Fecha os olhos e refugia-se no tempo: nada do que não foi poderia ter sido, e novamente se irrita. Não pode ser apenas isso. Mas é um bom álibi, uma espécie de repouso: relaxe; o tempo está escorrendo. O tempo não pode fazer nada contra você, ele pensa, além de envelhecê-lo, e a essa altura isso é muito bom. 'Envelheçam', aconselhava Nelson Rodrigues aos jovens, e ele sorriu com a lembrança".


Transcrito do romance "O filho eterno", de Cristovão Tezza - 18ª edição, pág. 79. Rio de Janeiro : Record, 2016. Acervo da Biblioteca da Tribuna Livre Cultural, Lumiar, Nova Friburgo (RJ).


Cristovão Tezza é catarinense de Lages, mas mora em Curitiba desde criança. Na juventude foi ator amador. No início dos anos 1970 concluiu o ensino médio, tentou se formar em oficial marinheiro e depois foi para Portugal estudar Letras na Universidade de Coimbra, paralisada em virtude da revolução dos Cravos. Foi então vagar e fazer bicos pela Europa. Casou-se em 1977 e 1984 ingressou como professor de Língua Portuguesa da Universidade Federal de Santa Catarina, para retornar dois anos depois a Curitiba e lecionar na Universidade Federal do Paraná, da qual se demitiu em 2009 para se dedicar exclusivamente à literatura. Hoje conta com mais de uma deseja de livros publicados entre romances, contos, crônicas, ensaios e didáticos. Tornou-se conhecido com o romance Trapo publicado em 1988. Seu outro romance, Breve espaço entre cor e sombra, foi contemplado com o Prêmio Machado de Assis da Biblioteca Nacional em 1998. Foi cronista da Folha de São Paulo e da Gazeta do Povo de Curitiba. O romance em foco, O filho eterno, publicado em 2007, recebeu o Prêmio da Associação Paulista dos Críticos de Arte, o prêmio Jabuti e outros. Sua edição francesa também foi laureada com o Prêmio Charles Brisset da Associação Francesa de Psiquiatria. Além da França, a obra foi lançada na Itália, Inglaterra, Portugal, Holanda, Espanha, México, Estados Unidos, Austrália, China, Eslovênia, Dinamarca, Noruega e Macedônia. O filho eterno foi adaptado para o teatro e para o cinema.

Num romance ao mesmo tempo autobiográfico e ficcional, extremamente corajoso, por expor sua intimidade e da família, Cristovão Tezza aborda as inúmeras dificuldades de ter um filho com síndrome de Down e também algumas saborosas conquistas não só filho, mas também do pai.  Indo além da vida de genitor, o autor inclui, em flashback, situações vividas na infância, adolescência e juventude, como: as experiências de ator amador, de viver em comunidade e com drogas, como clandestino na Alemanha trabalhando em faxina de hospital, as indefinições sobre o futuro, a tentativa de se tornar oficial de marinha mercante, os desafios da escrita e suas frustrações, a pretensa estabilidade como professor universitário e as dificuldades de se tornar pai de um filho que será sempre especial.



Narrado em terceira pessoa, na qual o narrador e o autor se confundem, o romance não disfarça o caráter de acerto de contas do escritor com o seu papel de pai de um filho com síndrome de Down. Como bem retrata o trecho transcrito, a obra se constitui em "uma brilhante reflexão sobre a necessidade e importância da ação do tempo para operar o ciclo da maturação e amadurecimento". Da rejeição inicial ao receber a noticia de um filho com Down, passando pela peregrinação para dar a ele o necessário acompanhamento até a libertação que vem com a aceitação desse filho eterno. E o tempo escorre...

Boa leitura.

Por F@bio


segunda-feira, 26 de outubro de 2020

Meu nome é Ébano - Toninho Vaz

 Meu nome é Ébano - Toninho Vaz

"Merece destaque ... o encontro ... com o poeta Manoel de Barros ... Melodia também fazia versos simples na construção, vasculhando o chão. Ambos tinham dicção poética semelhante, com temáticas ingênuas e desconcertantes pela simplicidade ...

Poesia sempre: E algumas folhas de hortelã ... Depois de homenagear em disco os marginais de sua estima, Luiz Melodia continuava militando na causa dos desvalidos e abandonados pela sorte. Mantinha uma forte cumplicidade com os sacaneados pela sisitema - como ele próprio afirmava. Na virada da década (de 1980), Luiz Melodia estava 'mais São Carlos' do que nunca".

E para Euclides Amaral, pesquisador da MPB, entrevistado por Toninho: "Luiz Melodia é um dos formadores da moderna MPB ... Com sua polivalência, perpetuou-se no cancioneiro popular através de suas composições e também de suas interpretações singulares de clássicos ... Outra característica, pouco comentada em sua obra, é o seu trato com a letra e a poesia nas composições. Ainda que o texto poético tenha, na maioria das vezes, cadência e ritmo próprios, com a música colocada (harmonia, melodia e ritmo), é gerado um terceiro produto - a composição em si -, privilégiando e ressaltando os dois principais códigos da MPB: letra e melodia. Depois, é incorporado o arranjo e, por fim, a interpretação, que leva o produto para outro lado, dependendo do timbre e afinação. Ele era profícuo em versos para as próprias melodias e nos que produzia para violonistas ..., assim como quando musicava letras e poesias ... Luiz Melodia foi mestre em gerar esse terceiro produto, quando compunha (como letrista ou melodista) e quando interpretava outros autores, sendo este o seu legado à MPB." 

Transcrito da biografia "Meu nome é Ébano : a vida e obra de Luiz Melodia", de Toninho Vaz. São Paulo : Tordesilhas, 2020.



Toninho Vaz é jornalista, escritor e biógrafo, que além da obra sobre o Melodia, escreveu biografias do poeta Paulo Leminski, do antropólogo, escritor e politico Darcy Ribeiro, do compositor e cantor Zé Rodrix, dentre outras.  

Na obra em foco, Vaz conta a trajetória do menino do morro de São Carlos, bairro do Estácio no Rio de Janeiro, que conquistou o Brasil com seu talento e músicas. O escritor destaca que a originalidade de Melodia está em sua musicalidade, poética e interpretação.  Toninho ressalta que, apesar da pouca escolaridade, Luiz Melodia tinha um talento natural para letras, como em Juventude Transviada: 

"Lava roupa todo dia, que agonia

Na quebrada da soleira, que chovia

Até sonhar de madrugada, uma moça sem mancada

Uma mulher não deve vacilar

Eu entendo a juventude transviada

E o auxílio luxuoso de um pandeiro

Até sonhar de madrugada, uma moça sem mancada

Uma mulher não deve vacilar

Cada cara representa uma mentira

Nascimento, vida e morte, quem diria

Até sonhar de madrugada, uma moça sem mancada

Uma mulher não deve vacilar

Hoje pode transformar, e o que diria a juventude

Um dia você vai chorar, vejo clara as fantasias."

De uma geração surgida nos tempos sombrios da ditadura militar, Melodia foi vítima contumaz da censura oficial, pois a temática social está muito presente em sua obra. Sobre isto o próprio fala em entrevista de 1996 concedida ao repórter Paulo Vieira do jornal Follha de S. Paulo citada no livro: "Nunca fui ligado nisso, mas decidi falar. Até pelo que está acontecendo. Todos estão vendo: desemprego, política falsa, bala perdida... Essa coisa acaba tendo um lugar só, a desgraça". A realidade brasileira parace que não muda nunca.

Ao traçar a personalidade de Melodia, considerado problemático por ser arredio à ideia de celebridade, o autor não foge de temas delicados como o uso de drogas, alcoolistmo, paternidade involuntária, marginalidade, prisões e episódios de racismo ao longo da vida, ceifada precocemente, do músico.

Melodia deixou um legado musical marcante, numa obra que surge no berço do samba, o morro de São Carlos, e recebe influências da jovem guarda, bossa nova, jazz, blues, rock e outros ritmos que ele soube temperar e harmonizar com letras de sintaxe muito particular. 

Boa leitura.

Por F@bio


sexta-feira, 31 de julho de 2020

Essa Gente - Chico Buarque

"31 de janeiro de 2019
Folheio sem ânimo a política, busco o futebol, o cinema, os classificados, mas no caminho dou com um anúncio fúnebre.
...
2 de julho de 2019
...
A Rebekka não apareceu no dia seguinte, nem no outro, nem no outro, e passada uma semana deixei de ir à casa da Maria Clara, alegando urgência de concluir meu romance. Mentira, porque a escrita, que já vinha rateando havia tempo, agora permanecia em ponto morto. À praia não fui nunca mais, sequer descia à calçada, não ia a lugar algum. Comia qualquer besteira na cozinha e voltava para a cama, dormia, dormia, dormia noite e dia, sonhava com o presidente da República, só tinha pensamentos mórbidos. Tomei enjoo de notícias, desliguei para sempre a televisão e cancelei a assinatura do jornal, que continuavam a me entregar com promessa de descontos e brindes. Vagando morto de sono pelo apartamento, às vezes me pegava a examinar o revólver da Maria Clara, o cano curto, a agulha embutida, o tambor carregado, e foi num dia assim tenebroso que a Rebekka me telefonou."


Trecho do romance Essa Gente, de Chico Buarque, pag. 24 e 170. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

Francisco Buarque de Holanda é muito conhecido como compositor e cantor, com uma vasta obra no cancioneiro brasileiro desde os anos 1960 até os dias de hoje. Sensíveis e contundentes suas letras são obra prima da Música Popular Brasileira. Chico nasceu no Rio de Janeiro em 1944, no seio de uma família de intelectuais, filho de Sergio Buarque de Holanda, destacado historiador, jornalista e critico literário. Chico, além das músicas, também escreveu peças, como Gota D'Água (em parceria com Paulo Pontes) e Ópera do Malandro. A partir de 1974 aventurou-se pela ficção, consagrando-se com Budapeste (2003), Leite Derramado (2009) e O irmão alemão (2014). 

Em Essa gente, Chico Buarque é ousado ao ambientar o romance no período super recente, num Rio de Janeiro partido e repartido, nesses tempos de intolerância e sob um governo que defende a ditadura militar e homenageia torturadores. Um governo que promove a liberação de armas e o desmantelamento das políticas trabalhista, ambiental, cultural e educacional que vinham sendo implementadas pelos diversos governos anteriores, inclusive pelos militares.

Narrado sob a forma de um diário, tendo por protagonista um escritor decadente e em crise financeira e afetiva. A cidade a sua volta não se difere do que se passa em sua vida pessoal, também está em colapso financeiro e afetivo, a cidade partida agora não no social, na econômica e na politica, mas também na afetividade e receptividade do carioca. 

Como muito bem analisa o meu xará e critico literário da Veja, Fábio Altman, na "narrativa de Chico há vasta porção de cinza, é tudo mais sutil, mais lírico, costurado por paixões e suspense policial".

Uma ótima leitura, particularmente nesses tempos isolamento e pandemia (na saúde e na política).
Por F@bio