quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

Mar - Rui Teixeira Motta

Deserto impróprio,
Quantos Lawrence marinheiros
te amam desigualmente
na tua espantosa igualdade.
Felino no requebro fácil
mas pensado ...
feminino no movimento
nos redondos do rosto
mas homem no olhar devolvido.
Composto de todas as cores
com todas te fazes
no contraste bárbaro com a talhada de melancia
com os olhos azuis de um filho sonhado, por nascer
começando no fim ...
Transportando no terreiro azul da pele
horas e tempos outra vez horas
que secam nos tombadilhos dos navios
que embatem em horizontes
que jazem nas madrugadas
surpreendidas pelo vento.
Inseguro ao leme, segues um barco a palmilhar-te as léguas
Ondas brancas, porque não verdes?
porque não fracas?

Transcrito de "A Poesia É para Comer - Iguarias para o Corpo e para o Espírito", seleção de poemas por Ana Vidal; coordenação editorial por Renata Lima. São Paulo: Babel, 2011.

Rui Teixeira Motta, português, advogado, membro do Conselho de Opinião da RTP - Radio e Televisão de Portugal, é autor do livro "A construção e o canto: Poesia". Lisboa: Editorial Notícias, 1993.

Sempre gostei de contemplar o mar, vê-lo em sua amplidão, parecendo indomável e ao mesmo tempo dócil, misterioso e ao mesmo tempo cristalino. O mar infinito fundindo-se com o céu no horizonte. De movimento permanente a embalar e acalentar. Observar o mar para refletir e meditar. Olhar o mar a refletir o céu.  O mar para amar e temer, o mar para domar e tremer, o mar a desafiar e inspirar...
Por F@bio

sábado, 5 de janeiro de 2013

Soneto da Enseada - Ledo Ivo

SONETO DA ENSEADA

Sou sempre o que está além de mim
como a ponte de Brooklyn ao pôr-do-sol.
Sou o peixe buscado pelo anzol
e o caracol imóvel no jardim.

De mim mesmo me parto, qual navio,
e sou tudo o que vive além de mim:
o barulho da noite e o cheiro de jasmim
que corre entre as estrelas como um rio.

Quem atravessa a ponte logo aprende
que a vida é simplesmente a travessia
entre um aquém e um além que são dois nadas.

Na madrugada escura a luz se acende.
Que luz? De que vigília ou de que dia?
De que barco ancorado na enseada?

Obtido de: http://www.sonetos.com.br/sonetos.php?n=2724


Ledo Ivo está bem presente neste Blog e não poderia deixar de registrar seu falecimento no último dia 23 de dezembro de 2012, aos 88 anos, de infarto. Morreu na encantadora cidade de Sevilha, Espanha, capital da Andaluzia, onde é tão forte a presença moura. Ledo Ivo é considerado um grande artesão da palavra, um poeta inspirado e de uma "acidez cômica", nas palavras do acadêmico Marcos Villaça, seu colega de ABL. Fez a travessia entre o aquém e o  além de que fala no soneto. Partiu de si mesmo, qual navio a desbravar outros mares, outros aléns...
por F@bio

quarta-feira, 10 de outubro de 2012

O Navio de Espelhos - Mario Cesariny


O navio de espelhos
não navega cavalga

Seu mar é a floresta
que lhe serve de nível

Ao crepúsculo espelha
sol e lua nos flancos

Por isso o tempo gosta
de deitar-se com ele

Os armadores não amam
a sua rota clara

(Vista do movimento
dir-se-ia que pára)

Quando chega à cidade
nenhum cais o abriga

O seu porão traz nada
nada leva à partida

Vozes e ar pesado
é tudo o que transporta

(E no mastro espelhado
uma espécie de porta)

Seus dez mil capitães
têm o mesmo rosto

A mesma cinta escura
o mesmo grau e posto

Quando um se revolta
há dez mil insurrectos

(Como os olhos da mosca
reflectem os objectos)

E quando um deles ala
o corpo sobre os mastros
e escruta o mar do fundo

Toda a nave cavalga
(como no espaço os astros)

Do princípio do mundo
até ao fim do mundo




Mário Cesariny de Vasconcelos (1923 – 2006), português, pintor e poeta, considerado o principal representante do surrealismo em Portugal, sendo de se destacar também o seu trabalho de antologista, compilador e polêmico historiador das atividades surrealistas em seu país. Afirma-se que foi o artista português que de forma mais plena assumiu o surrealismo: "não como método ou escola, mas como forma de insurreição permanente, na arte e na vida". Uma característica peculiar da arte de Cesariny é que nela a pintura e a poesia foram sempre aliadas: muitas de suas obras incluem palavras recortadas, conjugações de textos e imagens, e outras formas experimentais. (obtido de http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1rio_Cesariny e http://cesariny.blogs.sapo.pt/)

 

domingo, 7 de outubro de 2012

Apenas um navio - Lidia Maria de Melo


Apenas um navio

No ano de meia quatro,
no meio do estuário
em frente ao porto de Santos,
o porto de minha infância,
Das barcas e das catraias,
dos navios e rebocadores,
Dos trens e dos armazéns,
onde os botos,
às cinco e meia da tarde,
viraram cambalhotas
enquanto as gaivotas
fisgavam peixes no mar,
avistava-se um navio
velho, preto,
ancorado
próximo à Ilha Barnabé,
que os menos informados
confundiam com um navio comum.
Mas eu e muitas crianças,
que ansiavam
para verem os pais
(confinados),
sabíamos que ele era bem mais
que um navio qualquer
e o culpávamos
pela ausência paterna
nos almoços de domingo,
pela angústia disfarçada nos olhos de nossas mães,
pela melancolia que abraçava
todas nossas brincadeiras,
pela vontade de chorar
sem saber bem o porquê.
Nós já sentíamos tudo
e éramos tão crianças!
Só o que não entendíamos
é que o Raul Soares
era apenas um navio
e não tinha culpa de nada.
Não tinha culpa de ter virado
instrumento repressivo
no ano de meia quatro.



Lídia Maria de Melo. Raul Soares: Um navio tatuado em nós. São Paulo / Santos: Pioneira / Universidade Santa Cecília, 1995. Baixado em 07/10/2012 de: http://www.portogente.com.br/texto.php?cod=69655

Alessandro Atanes tem sido uma boa fonte para o Cargueiro. Poeta e jornalista, com ampla pesquisa sobre a literatura santista. No artigo "Golpe: poesia da exceção", Atanes nos apresenta o poema de Lídia Maria de Melo e informa que  “Apenas um navio” foi escrito em 1982,  na fase final da ditadura. O poema evoca a infância da escritora e "remete a um clima inicial de nostalgia, logo cortado pelo trauma, pela chaga no cais, a presença do navio-presídio Raul Soares no estuário, próximo à Ilha Barnabé... No poema de Lídia não é desolação que presenciamos, e sim a incerteza do Estado de Exceção após o golpe".
Navios foram concebidos como meio de transporte de pessoas e cargas, mas alguns tiveram sina terrível, como os negreiros a transportar escravos e os navios presídios, onde muitos foram confinados, maltratados e mortos. O Raul Soares era um navio misto, de carga e passageiros, de origem alemã que foi incorporado ao Lloyd Brasileiro, utilizado na navegação de cabotagem antes de virar prisão, seu triste fim. (vide “Raul Soares – Tempos de Gloria”, de Humberto de Lima Moraes em http://www.portogente.com.br/texto.php?cod=4824)

terça-feira, 12 de junho de 2012

1822 - Laurentino Gomes

"Como principal negociadora do reconhecimento do Brasil independente, a Inglaterra se valeu de seu poder econômico e político para tirar vantagem da nova situação. Em 1825, o Brasil já era o terceiro mercado mais importante dos produtos ingleses, graças ao vantajoso tratado comercial assinado por Dom João em 1810 que concedia à Inglaterra tarifas de importação inferiores às de seus concorrentes nos portos brasileiros. O tratado venceria em julho de 1825 e todo o esforço dos ingleses se concentrou em convencer D. Pedro a renová-lo em troca do reconhecimento da Indenpendência. Foi, de fato, o que aconteceu. Além de assegurar a prorrogação das vantagens alfandegárias para seus produtos, a Inglaterra perpetuou no Brasil independente alguns privilégios que gozava com Portugal..."

Transcrito da obra "1822" de Laurentino Gomes, História, pág. 288. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2010. O livro tem por subtítulo "como um homem sábio, uma princesa triste e um escocês louco por dinheiro ajudaram D. Pedro a criar o Brasil - um país que tinha tudo para dar errado."

Laurentino Gomes é jornalista, nascido em Maringá - Paraná, com carreira de repórter e editor no jornal O Estado de São Paulo e na revista Veja. É membro da Academia Paranaense de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo. Li suas duas obras de jornalismo histórico, que registram dois períodos marcantes da formação do Brasil: 1808 que trata da fuga da família real portuguesa para o Rio de Janeiro, com amplos reflexos na conformação do estado brasileiro e na criação do caldo de cultura que propiciou a declaração de indepedência. Já 1822 aborda o ambiente e as articulações que levaram o País a declarar o rompimento com a metrópole portuguesa, fato caracterizado pelo autor como uma combinação de sorte, improvisação, acasos e também sabedoria das lideranças responsáveis pela condução dos destinos do Brasil, num momento de idealizações, conflitos e perigos. Além de uma escrita ágil, ela é muito rica em informações. Laurentino inclui nos relatos aspectos pouco abordados nos livros didáticos, como a vida sexual e afetiva dos protagonistas de nossa história, idiossincrasias de alguns personagens, visão dos vencedores e dos vencidos no processo que levou à declaração de independência. Demais, o autor relata que o projeto que o levou a escrever o livro surgiu de uma conversa casual com o vice-almirante Armando de Senna Bittencourt, diretor do Patrimônio Histórico e Cultural da Marinha, que fez a seguinte observação para o autor: "É inacreditável como um parte da elite brasileira conseguiu envolver o príncipe regente nos seus planos, separar-se de Portugal e, principalmente, manter o país unido quando tudo indicava que o caminho mais provável seria o da guerra civil e da fragmentação territorial". Realmente esse era o pano de fundo dominante do momento. O que o livro destaca é que sem a liderança de D. Pedro e o estabelecimento do regime monárquico possívelmente não seríamos um só Brasil. Viva o primeiro rei brasileiro!
Por F@bio

sábado, 26 de maio de 2012

Os Velhos Marinheiros - Jorge Amado

Os Velhos Marinheiros - Jorge Amado

"Com a luneta ao olho examinou a cidade, as casas de azulejos portugueses, a pitoresca agitação do mercado Ver-o-Peso, o ancoradouro do Port-of-Pará, onde ia encostar o Ita. Os oficiais de bordo estavam todos na ponte, mesmo o Comissário. O Imediato ditava ordens. O navio aproximava-se. Vasco detinha-se nas bandeiras dos cargueiros e paquetes ancorados: ia o Ita, segundo tudo indicava, ficar ao lado de um cargueiro inglês, mais adiante estava um pequeno navio do Lloyd Brasileiro, um iate vindo da Guiana Francesa, além das gaiolas numerosas. Do barco inglês, marujos loiros saudavam com a mão. O Comandante pensou que sua missão estava finda, pois as máquinas reduziam o ritmo, quase deixando de trabalhar. O navio chegava ao seu destino. (...) Carregadores ofereciam seus serviços, mostravam os números no peito. Tudo correra bem, pensou o Comandante. Foi nesse momento, quando um sorriso de perfeita satisfação abriu-se em seus lábios, que ressoou aos seus ouvidos a voz do Imediato, cercado por todos os oficiais de bordo, o Comissário inclusive:
- Comandante!"

Transcrito de "A Completa Verdade sobre as Discutidas Aventuras do Comandante Vasco Moscoso de Aragão, Capitão de Longo Curso" em Os Velhos Marinheiros, de Jorge Amado (pág. 283). Romance. 23a. Ed. São Paulo: Martins, 1970.

Jorge Amando tem sido a mais rica fonte para este modesto blog, um Cargueiro que navega na rede e tem a pretensão de levar as letras aos internautas. Como o objetivo é que as citações literárias tenham algum elo com o comércio exterior, grande parte delas retratam o universo dos portos e da navegação. O livro Os Velhos Marinheiros tem o subtitulo "duas histórias do cais da Bahia". São duas histórias deliciosas, a do Comandante de Longo Curos citada e Quincas Berro D'Água. As histórias têm como protagonistas duas figuras características do universo ficcional de Jorge Amado, que não abrem mão do direito de comandar seus destinos na terra, sem abdicar do direito de sonhar. O romance alia humor, drama, ternura e sobretudo poesia. Ao final, o narrador indaga aos leitores onde está a verdade: "está naquilo que sucede todos os dias, nos quotidianos acontecimentos, na mesquinhez e chatice da vida da imensa maioria dos homens ou reside a verdade no sonho que nos é dado sonhar para fugir da nossa triste condição? Como se elevou o homem em sua caminhada pelo mundo: através do dia a dia de miséria e futricas, ou pelo livre sonho, sem fronteiras nem limitações?" Esse é o grande Jorge Amado a nos provocar e incentivar a ter um vida menos mesquinha. Salve Jorge!!
Por F@bio

domingo, 13 de maio de 2012

Dois Irmãos - Milton Hatoum

"Uma tarde de domingo, minha mãe me convidou para passear na praça da Matriz. Perto dali, atracados no Manaus Harbour, os grande cargueiros achatavam barcos e canoas, ocultando o horizonte da floresta. No centro da praça não havia mais a multidão de pássaros que encantava as crianças. Agora o aviário que tanto me fascinara estava silencioso. Sentados na escadaria da igreja, índios e migrantes do interior do Amazonas esmolavam. Domingas trocou palavras com uma índia e não entendi a conversa; as duas se benzeram quando os sinos deram seis badaladas. Minha mãe se despediu da mulher, entrou sozinha na igreja, rezou. Depois nós entramos no Manaus Harbour, fomos até a extremidade do trapiche. O porto flutuante estava movimentado, com seus estivadores, guindastes e empilhadeiras. Um homem que andava por ali nos reconheceu e acenou. Era o Calisto, um dos vizinhos do cortiço. Descalço, só de calção, ele esperava uma ordem para descarregar caixas de produtos eletrônicos. Eu não sabia que ele trabalhava aos domingos no porto. Calisto se livrara das garras de Estelita Reinoso, mas agora tinha de agüentar outro peso".

Transcrito de "Dois Irmãos", romance de Milton Hatoum (pág. 240). São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

Milton Hatoum é amazonense de Manaus. Professor de literatura na Universidade do Amazonas e na Universidade da Califórnia (Berkeley). Dois Irmãos é seu segundo romance, ganhador do Premio Jabuti, como o primeiro "Relato de um certo Oriente".

Dois irmãos é a história de gêmeos que, qual Caim e Abel, se digladiam, enquanto o narrador busca sua identidade no seio de uma familia de imigrantes árabes - sírios para ser mais preciso. Os amores e conflitos familiares são o veio de um narrador que busca sua identidade.

O romance tem também, como pano de fundo, o cenário de uma cidade formada por imigrantes, no meio da floresta amazônica, em processo de transformação. A arquitetura e modo de vida iniciado no ciclo da borracha dá lugar ao polo que se industrializa.

Hatoum constrói um texto envolvente com uma escrita prazeirosa e de textura delicada, quase poética. Um texto tão intenso quanto as relações afetivas que situa no coração de uma família de imigrantes.
Por F@bio