sexta-feira, 26 de fevereiro de 2021

Seu amigo esteve aqui - Cristina Chacel

"Aos 21 anos, quando entra para a Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), onde vai estudar sociologia e política, Beto já é um homem-feito. Porte atlético nos seus um metro e oitenta centímetros de altura e dono de um estonteante par de olhos verdes, arranca suspiros das garotas ao passar. Inteligente, bem humorado, gosta de andar bem-vestido, chama a atenção por isso. É um tipo amável, fácil de lidar, que se adapta rapidamente aos novos ambientes. Em pouco tempo, torna-se popular. Todo mundo o conhece na UFMG, a primeira escala de uma trajetória revolucionária que o levaria, em dez anos, à condição de desaparecido político da ditadura militar brasileira."

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"Vem dele, Sergio, a vontade de contar a história de Breno. Depois daquela manhã de 15 de fevereiro de 1971, ele nunca mais foi visto. Não se sabe, até hoje, como foi preso. Há poucos testemunhos sobre seu paradeiro. O mais provável foi revelado à militante e amiga Inês Etienne Romeu, quando esteve presa em um centro clandestino de tortura na serra fluminense de Petrópolis, que ficou conhecido como Casa da Morte. Lá, um dos agentes lhe confidenciou: 'Seu amigo esteve aqui.' Por sinistra coincidência, esse torturador havia sido jogador de basquete, em Belo Horizonte, na mesma época em que Carlos Alberto Soares de Freitas - conhecido então por seu apelido, Beto - atuava nas quadras. E ambos teriam se reconhecido."

...

"Passados quarenta anos, ela se esforça para lembrar o que treinou esquecer. Como a última vez que viu Breno ela estava no Rio, de passagem, para participar do Festival de Teatro da Aldeia de Arcozelo, em Paty do Alferes, cidade do interior fluminense. Caminhava por Copacabana quando, de repente, se vê frente a frente com Breno. Um susto! Os dois se abraçam e Breno, ao saber que ela estava ali para um festival de teatro, tem um impulso:

- Eu vou te dar um livro! - diz.

Em seguida, ele entra com Margaret numa livraria perto dali e compra para ela um exemplar de Perseguição e assassinato de Jean-Paul Marat, de Peter Weiss. Primeiro grande sucesso do dramaturgo alemão, a peça de 1964 mergulha no conflito entre a individualidade e a necessidade da revolução. Bem guardado por Margaret até os dias de hoje, o livro não tem dedicatória, como era de se esperar de quem não pode deixar rastros..."



Trecho do livro "Seu amigo esteve aqui: a história do desaparecido político Carlos Alberto Soares de Freitas, assassinado na Casa da Morte", de autoria de Cristina Chacel. Rio de Janeiro: Zahar, 2012.



A jornalista Cristina Chacel esteve nas principais redações dos jornais do Rio de Janeiro: O Globo, Jornal do Brasil, Última Hora, Rádio JB, nos quais atuou como repórter, redatora, editora e colunista nas áreas de economia e tecnologia. Depois seguiu carreira como jornalista independente trabalhando em comunicação corporativa e institucional, marketing político, projetos sociais e solidários. Entre outros livros, Cristina lançou ainda "Janelas Abertas", em coautoria com o fotógrafo Rogério Reis; "Centro", da Coleção Bairros do Rio (Neighborhoods);  "O tatu saia da toca- histórias da internacionalização da Petrobrás"; "Arte e Ousadia"; "Rio de Contos 1000" e "Guanabara espelho do Rio", os dois últimos em coautoria com o marido e fotógrafo Custódio Coimbra. E ainda vários livros publicados com temáticas em políticas públicas e projetos sociais e solidários do Rio de Janeiro. 


Como lembra Álvaro Caldas no prefácio de "Seu amigo esteve aqui": "Vinte e sete anos depois que retornou à democracia, o Brasil ainda luta para desenterrar um doloroso legado perdido que, aos poucos e a duras penas, vem sendo reconstituído".

Cristina faleceu em 28 de julho de 2020 a tempo ainda de viver o grande retrocesso nessa luta. Felizmente com sua ampla pesquisa e relato, a história de Beto e de seu tempo foi por ela muito bem desvelada no livro em comento. 

Ainda segundo Álvaro Caldas: "Como se fosse um romance de não ficção, intercalando investigação jornalística, autobiografia e crônica, na fronteira entre os fatos e o relato ficcional, o texto segue os passos do mito criado em torno de um militante desparecido para devolvê-lo à história real. Eis então que temos de novo entre nós o 'nosso amigo' guerreiro, o que pode não ser um consolo, mas oferece uma valiosa contribuição para a construção da Verdade, e é um soco na cara dos carrascos que o assassinaram".

Também cursei Ciências Econômicas, mas na Universidade Federal Fluminense em Niterói. Ingressei em 1975, tempos da ditadura e época em que o coordenador do curso havia sido preso e era mantido incomunicável. Participei da iniciativa de criação de uma cooperativa de livros e, indo a Belo Horizonte, fui a UFMG conhecer a renomada cooperativa que lá existia justo na mesma faculdade em que Beto estudou. Na época não sabia da sua história, como poderia saber?

Conheci Cristina há pouco tempo, mas o suficiente para saber que ela era uma pessoa alegre e lutadora, que sabia traduzir em palavras as emoções de momentos especiais e comover os que estavam ao seu lado. Lutou no jornalismo, na ecologia, nos sindicados e organizações sociais, na política e contra um câncer, nem todas venceu, mas deixou um inestimável legado, como o livro resgate da história de Carlos Alberto Soares de Freitas. Com um texto muito bem costurado, onde cria um clima de suspense ao narrar uma história verídica de um militante desaparecido político no obscuro período da ditadura militar no Brasil.

Com ampla pesquisa em arquivos públicos e pessoais, depoimentos e reportagens de época, Cristina trás a luz a luta de um idealista contra o autoritarismo e as sombras do regime autoritário de 1964. Carlos Alberto Soares de Freitas, o Beto ou Breno foi um dos três militantes homenageado por sua companheira de lutas que viria a ser presidente da república, Dilma Rousseff. Numa narrativa envolvente, o livro é importante contribuição para desvelar uma parte da história brasileira que alguns tentam esconder, para não revelar suas atrocidades como agentes do estado brasileiro. 

Um belo resgate da verdade e revelador das masmorras que não podem ser ignoradas como querem os atuais ocupantes do governo federal no Brasil.

Boa leitura e reflexão para todos!

Por F@bio


quarta-feira, 17 de fevereiro de 2021

A Viragem dos Ventos - Maruza Bastos

"...Ela todo sorrisos, esforçava-se para se integrar à turma. Tudo corria bem até a conversa descontraída virar uma curva fechada e engrenar na perigosa direção de uma cumplicidade engajada. Não tinha estofo para compartilhar. Isolou-se intimidada com a desorientação que precisava urgentemente disfarçar. Emudeceu, amordaçando a ignorância; o fulgor de seu rosto desaparecia quanto mais se refugiava. Envergonhou-se. A seus olhos, a falta de saber lhe pareceu inconcebível. O que sucedera com a vitalidade juvenil, a que viera se assegurar junto às autoridades médicas do Rio? Levantou-se. Não foi fácil manter o corpo ereto e os passos firmes.

...

Veio à tona o êxtase vivido nos dias presentes. O sentido e a beleza da alforria que experimentara no Rio. Horizontes impensados se descortinavam diante dela como estrelas novas que nasciam. Não, nada disso poderia ser pecado, nem induziria a sacrifícios de mortificação. Um fio ligava a liberdade conquistada à tradição de sua história daqueles dias longínquos. Esse encontro desencontro pulsava, contração expansão; o universo no peito batendo, contração expansão; o sentido da existência, contração expansão; o bombear do coração, contrair expandir.

Esse todo verdade de repente a invadiu com uma garra insondável pela vida. Revirado em júbilo, o sentimento se verteu em clara evidência. Ainda tenho um amor novo inteiro para viver, murmurou, abstraindo em reza a força da devoção. De onde surgia tamanho arroubo que arremessava para longe os traços de sua fraqueza?"


Trechos do romance A Viragem dos Ventos, de Maruza Bastos. Rio de Janeiro: Ape'Ku Editora, 2020.


Maruza Bastos é carioca, psicóloga e psicanalista que realizou sua formação na Sociedade de Psicanálise Iracy Doyle da cidade do Rio de Janeiro, onde atua. Mestre e Doutora em Psicologia, foi professora universitária, pesquisadora e atuou também na justiça da infância e adolescência. É autora ainda dos livros "Olhos de Serpente", romance de 2015, e "Cárcere de Mulheres",  dissertação de 1997. Publicou os contos: "O Cofre de Extima" (2009), "Bicho Solto" (2011) e "Carta ao Irmão" (2015). Alguns desses e outros de seus escritos estão registrados em www.freudeslizar.blogspot.com.



No romance A Viragem dos Ventos, a protagonista - Gigi - é uma ex-modelo de sucesso que deu uma virada para uma vida burguesa e pacata no campo, casando-se com rico fazendeiro e passando a morar em Cuiabá com o marido e um casal de filhos. Tendo a beleza como uma preocupação central em sua vida, decide fazer um checkup com especialistas no Rio. Mas antes programa uma parada em São Paulo para reencontrar amigas e, quem sabe, amores do passado.

Ao chegar no Rio, seus planos são atravessados por um turbilhão de acontecimentos. Novas amizades, novas experiências, novos questionamentos, novas aventuras. Essa tempestade de acontecimentos surge como um vendaval que se contrapõe ao tradicionalismo e a mesmice da vida de Gigi. Diante dessa ebulição, afloram desejos reprimidos: "ela atravessa o mar pulsional de sua existência", em meio a ativismos político, ambiental, existencial que insuflam "no espírito de cada um a urgência de uma escolha" e o amor nem sempre é a escolha mais óbvia e simples.

Uma ótima leitura e que os bons ventos da viragem cheguem em breve nesses tempos de isolamento e pandemias.

Por F@bio


quinta-feira, 28 de janeiro de 2021

Coração das Trevas - Joseph Conrad

"Dali a alguns dias a Expedição Eldorado penetrou na selva paciente, que se fechou novamente atrás deles como as águas do mar à passagem de um mergulhador...

Subir aquele rio era como viajar de volta aos primórdios da existência do mundo, quando a vegetação cobria a Terra em desordem e árvores imensas reinavam nas matas. Um curso de água intacto, um grande silêncio, uma floresta impenetrável. O ar era quente, denso, pesado, inerte. Não havia alegria alguma no brilho da luz do sol. Os longos trechos de rio se estendiam, desertos, até a escuridão das distâncias envoltas em sombras. Em bancos de areia prateada. hipopótamos e crocodilos tomavam sol lado a lado. O leito cada vez mais largo do rio corria pelo meio da multidão de ilhas arborizadas. Era tão fácil perder-se naquele rio quanto num deserto, e você passava o dia inteiro raspando o fundo do barco nos baixios, tentando encontrar o canal, até achar que tinha sofrido algum feitiço e fora separado para sempre de tudo que algum dia conhecera - em algum lugar - muito distante - numa outra existência, talvez. Havia momentos em que o passado me tomava de assalto, como ocorre às vezes quando você não tem um momento sequer para si mesmo; mas chegava na forma de um sonho inquieto e ruidoso, rememorado com espanto em meio às realidades avassaladoras daquele estranho mundo de plantas, água e silêncio. E essa calmaria da vida em nada lembrava a paz. Era a calma de uma força impiedosa, pairando acima de uma intenção inescrutável. Ela nos contemplava com uma expressão de vingança...

As águas pardacentas corriam rápidas para longe do coração das trevas, levando-nos rio abaixo na direção do mar ao dobro da velocidade do nosso avanço a montante; e a vida de Kurtz também se escoava depressa, esvaindo-se, esvaindo-se do seu coração para ir desaguar no mar do tempo inexorável..."


Trechos do livro "Coração nas trevas", de Joseph Conrad (trad. Sergio Flaksman). São Paulo: Companhia das Letras, 2008.



Jozef Teodor Konrad Korzeniowki (1857 - 1924), filho de poloneses, nasceu em Berditchev, Polônia (hoje Ucrânia) à época dominada pela Rússia czarista. Seu primeiro contato com a língua inglesa deu-se através do pai, tradutor de Shakespeare e outros autores renomados. A família foi perseguida politicamente e Conrad ficou órfão ainda cedo. Aos 16 anos viajou para Marselha na França para realizar seu desejo de viver no Mar, ingressando na Escola de Marinha. Em 1878 mudou-se para a Inglaterra, onde seguiu carreira na marinha, e em 1884 obteve a cidadania britânica com o nome Joseph Conrad. Esteve no Congo, Malásia e outros países que inspiraram muitos de seus romances. Após ter abandonando a carreira na marinha, em 1893, em razão de doenças contraídas na América do Sul e Extremo Oriente, passando a dedicar-se à literatura. Publicou o primeiro livro aos 38 anos, "A loucura do Almayer". Dentre suas obras de maior destaque estão "Lord Jim" (1900), "Coração das trevas" e "Juventude" - veja breve resenha aqui no Cargueiro de Letras - (1902), "O agente secreto" (1907), "Sob os olhos ocidentais" (1911) e "A linha da sombra" (1917). Conrad faleceu na Inglaterra em 1924. .


Publicado em forma de livro em 1902, a novela Coração das trevas é um dos maiores clássicos da literatura do Século XX, conhecida também por ter sido fonte de inspiração para o filme Apocalypse Now, de Francis Ford Coppola de 1979.

No livro, o protagonista recebe a missão de resgatar um importante comprador de marfim, cujos métodos já não atendem mais aos interesses da empresa. Trata-se de uma história dentro da história, no qual um narrador implícito, nos apresenta ao protagonista, Marlow, que se torna o narrador principal. Ele então passa a contar a sua aventura na África (Congo) para amigos a bordo de um navio ancorado no Rio Tâmisa. O tempo vai anoitecendo sobre Londres e, com isso, a atmosfera densa e pesada da narrativa acaba envolvendo os ouvintes e também os leitores. 

Conforme Luiz Felipe de Alencastro aborda no posfácio "Persistência das trevas", incluso na edição em comento: "De mais a mais, a intensidade e a sutileza da novela, bem como as questões morais, históricas e literárias nela introduzidas, convertem-se num dos textos obrigatórios... Ensaios e comentários críticos sobre Coração das trevas privilegiam, de maneira geral, duas linhas de interpretação em boa medida complementares: a primeira, cujo conteúdo está sobretudo na metade inicial do texto, concerne à desumanização e à violência engendradas pelo colonialismo europeu na África. Mais baseada na outra metade da novela, a segunda leitura aponta para a inquietação existencial e o desregramento de indivíduos confrontados com a ruptura dos laços sociais". 

Fala-se muito ultimamente na questão do racismo e muitos não se dão conta de quão enraizada ele está na estrutura de nossa sociedade, desde que a cor da pele passou a ser a característica depreciativa da pessoa e razão para ser tratada como ser inferior, inclusive por diversos pseudos estudos acadêmicos e científicos. Conrad traça uma crítica ao colonialismo e Alencastro relembra o que o autor escreveu anos depois do lançamento: "Este tema sombrio tinha de ser tratado com uma sinistra ressonância, uma tonalidade própria, uma vibração continua que, eu esperava, soaria no ar e permaneceria no ouvido depois que a última nota tivesse sido tocada".  Ainda segundo Alencastro, "mais de cem anos após sua publicação, a novela ainda nos interpela como leitores e como cidadãos do mundo". E não poderia ser diferente, pois quase um século e meio após o termino da escravidão negra no Brasil, a questão do racismo que restou como herança maldita daquele longo período, ainda persiste entre nós, lamentavelmente.

Boa leitura e reflexão!

Por F@bio


segunda-feira, 11 de janeiro de 2021

Nas águas desta baía há muito tempo - Contos da Guanabara - Nei Lopes

 "Guanabara, pelo que eu sei, é um tipo de embarcação de um mastro só e vela grande, a tal da bujarrona. Mas dizem que os índios antigos chamavam assim isto tudo aqui, toda esta lagoa enorme de água salgada. Guaná-pará, eles diziam.

Guaná é "seio", "colo"; e pará é "mar". Então, eles achavam que esse mundão de água era o "seio do mar", veja você! Ou o seio, a mama, de onde brotava a água do mar.

...


No Valongo, quando chegava um comprador, quase sempre cercado de ciganos, calçados de botas, brincos nas orelhas e chicote - cada um tentando convencer o comprador de que sua mercadoria e seu preço eram melhores -, os negros se agitavam, se alegravam e se ofereciam à venda. Mas quando o negócio era fechado, era aquele desespero: irmãos separados; filhos arrancados dos pais, casais desfeitos ... E, de modo geral, aquilo era para sempre: nunca mais parentes, amigos, maridos, mulheres ... Nunca mais.

Valonguinho assistiu a muitas dessas cenas. Mas jamais esboçou qualquer expressão de tristeza ou alegria. Sozinho veio, sozinho ficou, sozinho foi se desfazendo, assim, sem parentes, sem amigos, sem idade, como um cão da rua, como uma pedra do cais. Talvez fosse melhor morrer ali mesmo e ali mesmo ser enterrado. Junto com os milhares de pretos novos que já chegaram quase sem vida ou, de modo inapelável, condenados à morte e ao esquecimento."



Trechos do livro de contos "Nas águas desta baía há muito tempo: contos da Guanabara", de Nei Lopes. Rio de Janeiro: Record, 2011.




Nei Lopes, carioca nascido em Irajá, aos 20 anos ingressou na Faculdade Nacional de Direito, mas acabou trocando a carreira de bacharel pela de compositor de música popular e escritor de ensaios, ficção e poesia. Em 1981, publicou seu primeiro ensaio: "O samba, na realidade: a utopia da ascensão social do sambista". Depois vieram outros com foco nas questões da negritude, até que, em 1987, publicou sua primeira obra de ficção: "Casos crioulos". Entre os ensaios escreveu também "Dicionário de banto", "Enciclopédia da diáspora africana", "Dicionário da antiguidade africana". Lopes ganhou o Prêmio Jabuti nas categorias Melhor Livro de Não Ficção e Livro do Ano com "Dicionário da história do samba", em coautoria com Luiz Antônio Simas. Recebeu também o prêmio Shell de Teatro pelas canções do musical "Bilac vê estrelas", de Heloisa Seixas e Júlia Romeu.  

O romance histórico é tido como um gênero literário em prosa em que a narrativa ficcional se ambienta no passado. No livro, Lopes nos brinda com 18 contos que nos levam a uma viagem aos primórdios da ocupação da baía da Guanabara, uma baía ainda de águas cristalinas, cheias de peixes e ilhas, praias e enseadas que não existem mais em razão da poluição e aterros. Nessa arqueologia, o autor nos traz nomes de locais já esquecidos e apagados dos mapas, palavras que caíram em desuso, narrativas e histórias que se perderam no tempo. Mas Lopes nos apresenta uma baía que não necessariamente existiu de fato, mas que é bem real  na desigualdade, na miscigenação, na violência, nas epopéias, na diversidade, nos mistérios. Uma baía de contrastes.

Na infância e juventude morei em Niterói, em alguns endereços bem perto do mar da baía: Praias das Flechas, Icaraí e Boa Viagem. A vida em torno dessa baía é cheia de encantos, contrastes e mistérios. Lopes nos apresenta algumas versões bem humoradas que procuram desvendar alguns desses mistérios.  

Em entrevista a Ana Maria Gonçalves (https://livreopiniao.com/2017/09/05/em-entrevista-nei-lopes-conversa-sobre-seu-novo-livro-nas-aguas-desta-baia-ha-muito-tempo/), Nei Lopes informa de onde veio a ideia do livro: 

"- O que tem acontecido mais é a vontade de contar a história e eu escolher o lugar onde ela vai se desenvolver. Mas no caso deste 'contos da Guanabara', tudo começou pela constatação enorme de ilhas e ilhotas existentes na nossa Baía. No meu trajeto, da periferia onde moro até a capital, isso um dia me ocorreu. E a ideia começou a tomar forma numa viagem de barca a Paquetá. Aí, busquei na memória e nos livros as referências: Lima Barreto na Ilha do Governador e estudando em Niterói; o maestro Anacleto de Medeiros em Paquetá; o episódio de João Cândido… Mas cravei, mesmo, a seta no alvo quando li detalhes sobre a Revolta da Armada, no fim do século 19. Aí, resolvi fazer desse evento histórico, a âncora (sem trocadilho) do conjunto de contos que escrevi." 

E mais adiante acrescenta: 

"- A  grande história que eu venho contando é a da exclusão do povo negro. Isso é o que perpassa toda a minha obra. E acho que venho conseguindo fazer isso sem lamúria, com picardia, com molho, com 'suingue'. Afinal de contas, eu sou sambista; e isso para mim é fundamental..." 

Como diz a música de Aldir e Bosco: "há muito tempo nas águas da Guanabara..." Não perca a oportunidade de entrar nessa nau e empreender essa viagem no tempo.   

Boa leitura e diversão!

Por F@bio


segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

Fim - Fernanda Torres

 "Como é possível prosseguir sem planos? Aos vinte, assassinam-se amores, amizades, vai-se em frente como uma flecha afiada: só mais tarde se aprende quão raros são os reais afetos. Não acredito em paixões tardias, não se ama mais depois dos quarenta. É mentira. No máximo, faz-se em acordo formal, finge-se saudade, apreço, mas a biologia não precisa dos arroubos juvenis de um velho."

...

"Desintegro no ar sobre Copacabana. Uma vez, li que a morte era o momento mais significativo da vida, e é mesmo. A minha foi boa, está sendo, não por muito mais."



Trechos do romance Fim, de Fernanda Torres. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.


Fernanda Torres é carioca, atriz de sucesso no teatro, televisão e cinema e colunista em jornais e revistas brasileiros. Atriz admirada pela sua capacidade representativa, seguindo a linhagem familiar, filha que é de atores muito talentosos, Fernanda Montenegro e Fernando Torres. 

Dizem que esse nome tem significado de "viajante ousado, corajoso" e assim me parece Fernanda, enveredando ousadamente pela literatura. Suas qualidades de escritora já haviam se revelado nas crônicas, mas se confirmaram na ficção. 

Com grandes sucessos nas telas e nos palcos em papéis cômicos, sua ficção também segue esse caminho da comédia de costumes, mas com uma dramática abordagem sobre os momentos em que a finitude da vida se nos apresenta sem subterfúgios. Como diz Sergio Rodrigues na contracapa do livro: "Nesse claro-escuro ela encontra matizes inéditos de sabedoria, crueldade, ternura, tristeza e humor". 

Trata-se de uma história sobre cinco amigos de longa jornada, ambientada em Copacabana, um bairro habitado majoritariamente por idosos, que vão relatando com humor fatos marcantes de suas vidas e amizade.

O livro é muito bem escrito e de leitura fluída no qual a autora nos apresenta uma graça que nos é muito próxima, porquanto há personagens que nos remetem a muitos de nossos familiares. Cheio de humor litorâneo, com praia, sol e sexo, mas também com tristeza, resignação, tragédia
e melancolia..

A narrativa é envolvente e, especialmente nesses tempos de pandemia e isolamento,  nos faz refletir sobre amizade, amores, perdas, encontros e desencontros, fracassos e superações, sobre o sentido e finitude da vida. 


Boa leitura e diversão!


Por F@bio


domingo, 27 de dezembro de 2020

Urubus - Carla Bessa

 "Ao puxar o sapato vem junto uma perna esgarçada. Mas não é só de calça desmembrada do dono, não. Tem gente dentro, carne, osso. Tem sexo. Dá para ver direitinho que tem tudo isso ali dentro da perna daquela calça. É homem. É, ou foi. Será que está vivo ou morto? Mas antes de se ocupar disso a mãozinha ainda gordinha de criança apalpa, se escarafuncha para dentro do bolso, quem sabe não tem dinheiro por aqui. Já teve várias vezes, tantos fundos de calça recheados ali no lixão.

Ao sentir-se cavoucado, o quadril lá dentro da roupa se contorce, vira de bruços, a mãozinha do ladrãozinho fica imprensada, vai junto, ai meu deus. Cambaleia-tropeça o menino por cima do corpo que, caramba tá vivo mesmo. O cheiro é: não tem nem como descrever, é é é azedo, é é é insuportável. O corpo nos resíduos parece que reside há muito tempo. O menino grita, mas da boca não sai som. Com desmedido esforço dá um último puxão cheio de dor-raiva-medo, a mão liberta, a boca solta um suspiro, aaaaah. Um pedaço de calça com pele grudada, escamas, gordura, um líquido preto vem junto na palma suja. O homem no meio do lixo se decompõe, o menino pensa"

...

"O velho é muito velho, e a rua, muito movimentada.

Os passinhos são curtos e lentos.

Pode ser que leve uma eternidade até ele alcançar a outra calçada. Pode ser que ele alcance a eternidade antes.

Isso é um ponto.

O outro ponto é que: há uma ilusão de ótica ali.

Se você semicerrar os olhos e olhar fixamente para o velho atravessando a rua, 

verá que:

é a rua que atravessa o velho"


Trechos do livro de contos Urubus de Carla Bessa. Rio de Janeiro: Confraria do Vento, 2019.



Carla Bessa é niteroiense, escritora, tradutora, atriz e diretora de teatro, que reside na Alemanha desde 1991. Escreveu também o livro de contos Aí Eu Fiquei Sem Esse Filho (Editra Oito e Meio, 2017). No ano passado lançou Urubus, livro que reúne 18 contos com personagens como crianças de lixões e pivetes de rua, idosos, prostitutas, travestis, golpistas, mulheres desiludidas ... restos de pessoas que vivem de restos de coisas e emoções.


Em 2019, Bessa ficou em terceiro lugar na categoria "Conto" do Prêmio Off-Flip (Festa Literária Internacional de Paraty) de Literatura. Neste ano, foi contemplada com o Prêmio Jabuti (categoria conto) com Urubus, que foi ainda o segundo colocado no Prêmio Clarice Lispector, da Biblioteca Nacional.


É um livro que se lê de um só fôlego, com uma linguagem direta e envolvente e essa urgência é parte da narrativa. Os contos estão entrelaçados, no tempo, espaço e personagens, e, nesse aspecto, me fez lembrar de outro livro, Fim, de Fernanda Torres, ambientado em Copacabana, como alguns dos contos de Bessa. 


Vale destacar a observação de Alexandre Kovacs (https://www.mundodek.com/2020/05/carla-bessa-urubus.html) "...os contos reunidos nesta mais recente antologia de Carla Bessa que apresenta um recurso técnico original ao fazer com que as narrativas se desenvolvam em um mesmo recorte de tempo e espaço, produzindo múltiplos pontos de vista para uma dada situação em função dos personagens envolvidos e suas próprias motivações".


Uma curiosidade é o conto Sem Verbo, um excelente exercício criativo escrito, como diz o título, sem verbo e nem por isso, carente de ação.


Nesses tempos tão obscuros e polarizados,  e ainda sob uma das maiores pandemias a assolar nosso planeta, grande parte das pessoas parece ter ligado um "dane-se" para o seu semelhante e se aglomera nas praias, parques, festas e bares, anda sem máscara e parece pouco se incomodar com centenas de milhares de vidas ceifadas. Como Carla escreve: "A verdade é que estão se devorando uns aos outros. E depois nós [os urubus] é que somos os abutres, nós os fatídicos,  os mau-agourentos, o ser humano é um bicho estranho mesmo. A nós deixam o trabalho de livra-los de seus próprios restos..."


Mais sobre a autora pode ser lido em https://homoliteratus.com/author/carla/


Boa leitura!


Por F@bio


domingo, 13 de dezembro de 2020

A memória de uma amizade eterna - Gail Caldwell

"É aquela velha história: eu tinha uma amiga, nós partilhávamos tudo, e então ela morreu e nós, partilhamos isso também.

...

Como a maioria das memórias marcadas pelo capítulo final, as minhas têm o peso físico da tristeza. O que nunca nos dizem a respeito do luto é que sentir falta de alguém é a parte mais simples.

...

A aceitação [da perda], inadivertidamente, envolve o nosso coração. Naquele ano, eu vagava por uma casa aberta à visitação na vizinhança e vi um soneto emoldurado de Pablo Neruda na parede; falava algo sobre a natureza espacial da perda que eu jamais vira articulado antes. A morte de Caroline era um lugar vago no coração, um lugar que eu nem podia nem desejava preencher. Fiquei confusa pela prevalência desses sentimentos, a sensação de que a partida dela era algo em si mesmo, uma memória cercada por uma fita de isolamento, na qual mudar qualquer coisa seria uma ofensa terrível. Mas aqui estava Neruda, solicitando aos enlutados que habitassem a morte como se ela fosse uma morada:

'Ausência é uma casa tão grande
que lá dentro você vai atravessar paredes
e suspender imagens no ar.'

Eu morei naquela casa de ausência, obtive consolo nela, até que a mágoa se tornasse um substituto daquilo que havia partido. 'O luto ... me fez lembrar de seus traços mais belos', diz Constance, de Shakespeare, em Rei João, sobre a perda de seu filho. 'Então, eu tenho motivos para apreciar a dor.' Eu sabia que nunca mais teria outra amiga como Caroline; eu suspeitava que ninguém mais iria me conhecer tão bem novamente. Que Caroline fosse insubstituível era uma lealdade agridoce: sua morte era o que eu tinha agora ... Durante meses, eu quis ligar para ela, achando que podia, para dizer o que sua morte havia significado, o que sua morte havia feito com minha vida ... Eu não era capaz de suportar a evidente ausência de Caroline ou a noção insignificante de que memória era tudo o que a vida eterna realmente significa, e passei tempo demais me perguntando onde as pessoas encontram forças para continuar se movimentando para além dos mortos...

Eram quase cinco da manhã quando eu voltei andando para uma casa infinitamente silenciosa, mais triste do que lágrimas poderiam jamais dizer, sabendo que eu estava no corredor de algo muito maior do que eu e que tinha de aguentar e permanecer onde estava...

Os velhos tecelões da tribo Navajo costumavam inserir um fio destoante em cada um de seus tapetes, uma cor contrastante que ia até a borda do tapete. É possível identificar um tapete autêntico por essa falha intencional, que é chamada de linha do espírito, cujo propósito seria liberar a energia aprisionada dentro do tapete e pavimentar o caminho para a próxima criação.

Todas as histórias da vida que merecem ser lembradas têm uma linha de espírito. Você pode chamar isso de esperança, 'amanhã', ou 'e então' de sua história, mas sem isso - sem o fato dissonante e reluzente do desconhecido e do incontrolável - a consciência e tudo o mais iria cair e implodir. O Universo insiste: o que é fixo é também finito."

Trecho do romance A memória de uma amizade eterna (Let's take de long way home), de Gail Caldwell (tradução de Beatriz Bastos). São Paulo: Globo, 2011.

Gail Caldwell é escritora e crítica literária americana. Foi a principal crítica e chefe de crítica literária do jornal The Boston Globe, onde trabalhou na equipe de 1985 a 2009. Caldwell foi vencedora do Prêmio Pulitzer de 2001. O prêmio foi para oito resenhas de domingo e duas outras colunas escritas em 2000.

Duas amigas que se tornaram inseparáveis. Ambas eram escritoras, mas uma sabia nadar e a outra remar. As duas queriam trocar experiências e, por anos, remaram, caminharam e conversaram juntas. Um livro de memórias sobre como o laço entre duas mulheres pode iluminar os momentos mais hilários e também os mais solitários e tristes da vida, incluindo a morte. Outro fato em comum entre as duas foi a luta para vencer o alcoolismo ("a taça de vinho branco que Caroline segurava era, ao mesmo tempo, sua varinha mágica e seu punhal") e amor por cachorros e com eles fazem longas caminhadas aos som de suas conversas, quando falavam sobre tudo: alcoolismo, tabagismo, relacionamentos com homens, trabalho, literatura, esportes, cachorros, família...

Narrado de forma envolvente, é um livro que nos faz refletir sobre o poder da amizade, nossas perdas e superações, sobre o sentido da vida.

Transcrevo o poema completo de Pablo Neruda na tradução original:

"Se eu morrer, sobrevive a mim com tamanha força
que acordarás as fúrias do pálido e do frio,
de sul a sul, ergue teus olhos indeléveis,
de sol a sol sonha através de tua boca cantante.
Não quero que tua risada ou teus passos hesitem.
Não quero que minha herança de alegria morra.
Não me chames. Estou ausente.
Vive em minha ausência como em uma casa.
A ausência é uma casa tão rápida
que dentro passarás pelas paredes
e pendurarás quadros no ar.
A ausência é uma casa tão transparente
que eu, morto, te verei, vivendo,
e se sofreres, meu amor, eu morrerei novamente."

Ontem perdi uma grande amiga e hoje esse livro me veio à mente. Eu o li recentemente, uma de minhas leituras nesses tempos de isolamento e pandemia (na saúde e na política). A doença tem ceifado muitas vidas de forma trágica, pois é desconhecida e a ciência ainda não compreende porque uns resistem e outros não. Tempos de dor, em que as ausências tornam-se muito presentes em nossas vidas. Me identifico muito com uma frase da autora "minha idéia de um dia produtivo ... era ler por horas a fio e ficar olhando pela janela".

Boa leitura!

Por F@bio