quinta-feira, 9 de dezembro de 2021

Madame Bovary - Gustave Flaubert

"Ela o encantava com um grande número de delicadezas; ora era uma nova maneira de fazer arandelas de papel para velas, um babado que mudava em seu vestido ... um estojo de marfim com um pouquinho de prata dourada. Menos Charles compreendia tais elegâncias, mais sofria sua sedução. Elas acrescentavam alguma coisa ao prazer de seus sentidos e à doçura de seu lar."

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"Antes de casar, ela julgara ter amor; mas como a felicidade que deveria ter resultado daquele amor não viera, ela deveria ter-se enganado, pensava. E Emma procurava saber o que se entendia examente, na vida, pelas palavras felicidade, paixão, embriaguês, que lhe haviam parecido tão belas nos livros."

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"O que a exasperava era que Charles não parecia suspeitar de seu suplício. Sua convicção de que a fazia feliz parecia-lhe um insulto imbecil e sua segurança nesse ponto parecia-lhe ingratidão"

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"E a idéia de ter um filho homem era como a esperança da compensação de todas as impotências passadas. Um homem pelo menos é livre; pode percorrer as paixões e os países, atravessar os obstáculos, agarrar a mais longínqua felicidade. Mas uma mulher é continuamente impedida. Inerte e flexível, ao mesmo tempo tem contra si a languidez da carne com as dependências da lei. Sua vontade, como o véu de um chapéu preso por uma fita, palpita ao sabor de todos os ventos, há sempre algum desejo que arrasta, alguma conveniência que retém."

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"Repetia a si mesma: 'Tenho um amante! Um amante!', deleitando-se com essa ideia como com a de uma outra puberdade que a tivesse atingido. Portanto, ia possuir enfim aquelas alegrias do amor, aquela febre de felicidade da qual desesperara. Entrava em algo maravilhoso, onde tudo seria paixão, êxtase, delírio; uma imensidão azulada a rodeava, os cumes do sentimento cintilavam sob seu pensamento, a existência comum só aparecia ao longe, lá embaixo, na sombra, entre os intervalos daquelas alturas."

Trechos do romance "Madame Bovary", de Gustave Flaubert (Tradução de Fúlvia M.L. Moretto). São Paulo: Abril, 2010.

Gustave Flaubert (1821 - 1880) foi um escritor francês que marcou a literatura pela profundidade de suas análises psicológicas, pelo seu rigor descritivo, pelo seu senso sobre o comportamento social e a realidade, criando um estilo próprio. Era um obsessivo que buscava a palavra precisa, o ritmo certo, a linguagem densa e correta. Dentre suas poucas obras, destancam-se Madame Bovary (1856), A Educação Sentimental (1869) e Salammbô (1862).

Após quatro anos dedicados a escrita do livro, Madame Bovary foi publicado em seis números da Reveu de Paris, de outubro a dezembro de 1856, onde uma passagem inteira - a famosa "cena do fiacre" - foi censurada (os conservadores sempre mostrando suas garras e tentando ceifar a arte e a liberdade, parece que a história se repete sempre). Flaubert protestou, mas a reação foi ainda mais dura, pois o advogado imperial apresentou uma acusação contra o escritor por "ofensas à moral pública e à moral religiosa". O que levou Flaubert a escrever que "a arte em si, parece sempre insurrecional aos governos e imoral aos burgueses". A judicialização fez o assunto ganhar o noticiário e, quando o livro foi finalmente lançado, após obter uma decisão favorável da justiça, fez enorme sucesso, o que desapontou o escritor, pois muitos leram o romance mais por ter sido acusado de indecente e picante, do que por sua arte literária.

Portanto, o livro é um clássico, considerado um divisor de águas, rompendo com o romantismo, e criando uma literatura realista que se contrapõe a idealização do amor, gerando polêmica ao tratar de temas como o adultério e o suicídio. Pode-se dizer que o livro é feminista, na medida em que Emma luta pelo "direito ao prazer", numa "rebelião cega, tenaz e desesperada contra a violência social que sufoca esse direito" como destaca Vargas Llosa. O que causa ainda mais espanto é saber que Madame Bovary foi lançado em 1856, ou seja, passados mais de século e meio, mantém-se como uma das maiores obras da literatura mundial.

O escritor peruano Mario Vargas Llosa escreveu um livro inteiro sobre Flaubert e Madame Bovary (A orgia perpétua. Rio de Janeiro: Objetiva, 2013), no qual mergulha não só no romance, mas na obra de Flaubert. Dessa extensa análise crítica de Llosa, transcrevemos:

"`Há, de um lado, a impressão que Emma Bovary deixa no leitor que se aproxima dela pela primeira (segunda, décima) vez: a simpatia, a indiferença, o tédio. De outro, o que constitui o próprio romance, prescindindo do efeito de sua leitura: a história que é, as fontes de que se vale, a maneira como se faz tempo e linguagem. E, finalmente, o que o romance significa, não em relação a quem o lê, nem como objeto soberano, mas sim do ponto de vista dos romances escritos antes ou depois...

E prossegue Llosa falando sobre como foi sua primeira leitura do livro, após adquri-lo em Paris em 1959: "Comecei a ler nessa mesma tarde...Desde as primeiras linhas, o poder de persuasão do livro agiu sobre mim de maneira fulminante, como um feitiço poderosíssimo. Fazia anos que nenhum romance vampirizava tão rapidamente minha atenção, abolia assim o entorno físico e me submergia tão profundamente em seu mundo. À medida que avançava a tarde, caía a noite, apontava o alvorecer, era mais eficiente o transbordamento mágico, a substituição do mundo real pelo fictício..."

Como se vê, trata-se de uma leitura envolvente, da qual não dá vontade de se afastar antes do fim. Queremos acompanhar a narrativa, mas mais do que isso, desvendar Emma na sua inquietude, sua busca incessante pela felicidade.

Quem curte literatura, não pode deixar de ler essa obra fundamental. E o livro de Vargas Llosa é um excelente complemento, uma crítica que nos amplia os horizontes do romance de Flaubert. Ótima leitura!

Por F@bio

segunda-feira, 6 de dezembro de 2021

Um frances no vale do rio Carangola - Francoise Massa

"Nada parecia destinar Alexandre-Marie Bréthel a esse longo exílio, a essa partida sem retorno. Ele nascera a 30 de janeiro de 1834 em Douarnenez. Sua família era abastada, bem que de origem modesta. Seu pai, Alexandre-Alain, após ter sido cirurgião da marinha, depois cirurgião prático em Langonnet, se estabelecera em Douarnenez em 1834. Parece que ele teve sucesso nos negócios se se considera os bens (várias casas, terrenos) enumerados no inventário aberto com a morte de sua mulher, falecida em 1854. Alexandre-Marie tinha então vinte anos e em toda a vida evocará com muita ternura sua mãe, desaparecida muito jovem, e de quem sentirá falta da afeição indulgente e compreensiva.

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Por que numa tarde de setembro de 1862 Alexandre Bréthel embarcou em um vapor que devia levá-lo ao novo continente, de onde, apesar de seus esforços e esperanças, nunca retornou? As razões são múltiplas e seria dificil dizer o que foi realmente determinante.

...

Todavia, parece que Alexandre ainda não tinha encontrado seu equilíbrio e que sempre esteja à procura de uma situação melhor. Assim quando em 1862 encontra o Sr. Monlevade, é com prazer que aceita a nova situação que lhe é oferecida para ir administrar as plantações brasileiras por dez anos".

Massa coloca assim os antecedentes da partida de Alexandre Brèthel para o Brasil. Mas além do sua ampla e muito bem contextualizada pesquisa, ela incluiu no livro a correspondência que ele manteve com familiares na França que são muito ricas em informações e também poéticas, a exemplo do relato que Alexandre faz para o tio da viagem do Rio de Janeiro ao Carangola:

"O Carangola é uma pequena região que margeia umas vinte léguas o rio Carangola e estende-se umas cinco ou seis léguas sobre cada margem ...

Você faz a viagem? - Certamente compadre Alexandre, - Então caro tio ...

Adeus ao Rio, a bela, a cidade voluptuosa e rica, escondida no fundo de uma baía magnífica. O navio a vapor desliza ao meio de embarcações de bandeiras coloridas de todas as nações marítimas do mundo. Você passa o canal, o forte de Santa Cruz, a montanha do Pão de Açúcar; a maré é mais forte, a terra desapareceu, você está em alto mar.

O navio aponta para o norte, desça para sua cabine, está de noite, tem bruma e o mar é bravio sobretudo nas proximidades de Cabo Frio.

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Você dormiu bem? Um copo de conhaque para dispersar o vapor da manhã e suba ao convés ... Leme a bombordo, o navio vira um quarto de círculo, a terra logo é vista.

Um rio, é o Paraíba com a cidade de São João da Barra, 3000 habitantes, assentada sobre a margem direita. A maré está alta, você salta a passarela ... pare ... barcos menores acostam, conduzem passageiros, levam seus amigos da véspera ... e ... a caminho; depois de oito léguas nova parada ... é a cidade de Campos (12 mil habitantes) e duas léguas mais alto, uma grande clareira na margem esquerda anuncia um afluente do Paraíba, o Muriaé. De sua parte, você desce do navio que continuará sua viagem fluvial sete léguas a montante, até São Fidelis, e você, agachado em uma canoa índia, um metro de largura e trinta de comprimento, sobe o Muriaé umas doze léguas e sempre à esquerda encontra um rio novo, o Carangola.

Veja sob essa palmeira, esses dois índios, um homem e uma mulher, são Caran e Gola, duas almas, os deuses do rio; uma rede esfarrapada está suspensa no tronco de uma palmeira, embaixo um arco quebrado; ali, bem perto, brasas apagadas.

Avance sobre as águas límpidas do rio, escute os cantos dos índios que remam nas pontas da canoa e admire as majestosas matas que dão sombras às margens. Escute o roçar dos arbustos, esse barulho de folhas secas, arme sua carabina, mire a anta abaixo da pá, ela vem beber no rio e esta noite no rancho você terá um excelente assado. Mas, fogo outra vez sobre esta imitação de tronco de árvore, é um tranquilo jacaré (crocodilo) que desliza sobre as águas sonhando com novos ataques.

Ali o rio é cheio de areia; impulsione a canoa, empurre firme, não tenha medo, é um tronco de árvore oco; bem, já tem mais água, rápido a bordo, não pendure assim, vai virar a canoa. A grande árvore à direita é o angelim ou árvore que chora, no meio dos mais fortes calores do dia, suas folhas destilam água que cai gota a gota; aquele cipó flexível e fino que desce como uma driça de bandeira da árvore tão alta é o timbó, uma infusão de uma pequena parte dele seria a morte pronta e segura. O macaco que sobe naquele sapucaieiro é o barbado; você conhece seu grito rouco e é uma espécie de coco do tamanho de uma cabeça de criança, com amêndoas muito gostosas; aquela cobra dourada cheia de ranhuras negras que se enrola naquele coqueiro é a surucutinha, que Deus o proteja do veneno dela. Papagaios e colibris olham passar o viajante que vem das terras dos caras pálidas. Como a brisa é perfumada, como essa natureza silenciosa e florida descança a cabeça e o coração.

A lua apareceu e prateia o rio e a mata; os índios a saúdam com uma canção enquanto um deles acompanha o ritmo triste e cadenciado na viola.

...

A canoa atraca, acendem fogueiras sobre a areia para afastar animais selvagens. Você grelha uns peixes que um guia pesca no rio, o arroz coze em uma panela e seu assado de anta suspenso em um galho doura ao fogo; você tem pimenta, sal, vinagre, aguardente. Que banquete! Não procure garfos, nem pratos, nem colheres, nem guardanapos, pois seria trabalho perdido; você tem seu facão de caça e por prato a metade de um coité [cuia], basta, basta, caro tio. Pegue o peixe, o arroz, um bom pedaço de anta, corte tudo, salpique pimenta e sal, coloque por cima um fio de vinagre, misture bem e acione as mandíbulas. Um gole de aguardente para desengordurar os dentes e deixe a garrafa aos guias.

Perto do fogo, enrolado em sua capa, com a carabina à mão, a faca de caça deslizando bem na bainha e o revólver na cintura, boa noite, não sonhe com tigres, serpentes, nem negros fugidios; talvez possa cantar com seus guias, nada mais é preciso. Boa noite ainda, sonhe com a França.

Sua viagem termina ... você percorreu sete léguas do Carangola e já escuta o barulho das cachoeiras; uma clareira na mata, é a vila de Tombos do Carangola. Pé na terra, caro tio, seu sobrinho, o boêmio bretão, sua mulher e a filha desejam-lhe boas-vindas."

Trechos do livro "Um francês no vale do Carangola: Alexandre Bréthel, farmacêutico e fazendeiro (pesquisa sobre sua correspondência brasileira, 1861 - 1901)", de Françoise Massa. Tradução de Heloisa Azevedo da Costa. Belo Horizonte: Crisálida, 2016.

A autora e pesquisadora, Françoise Massa, escreveu o livro como fruto de sua tese de doutorado. Massa tem vasto currículo no ensino e pesquisa de espanhol e português como professora da Universidade de Rennes 2 - Haute Bretagne, onde trabalhou de 1970 a 2002. Entre suas obras, se destacam, em coautoria com Jean Michel Massa, os dicionários bilingues e enciclopédicos sobre a lingua escrita em São Tomé e Principe e em Cabo Verde.

O acaso e a sorte contribuiram para a preservação das ricas cartas enviadas por Alexandre Bréthel a familiares entre 1862 e 1887. Como relata a autora, essa correspondência estava esquecida no celeiro de um solar na Bretanha e "esperava que a descobrissem ou a destruíssem e, com ela, o passado que ela permitiria fazer reviver". Como afirma a tradutora, Heloisa Costa, "Tão importante quanto o cronista é o homem cujo drama vai sensibilizar o leitor: um imigrante que pensava retornar em dez anos e por circunstâncias de vida nunca mais volta a sua terra; um homem culto que se exila em uma região de matas em pleno interior do Brasil; uma alma romântica que procura respostas para suas inquietações".

Nasci nessa região do vale do Carangola, no Noroeste Fluminense, e foi com muito entusiasmo que, a partir da leitura dos relatos de Massa e Bréthel, viajei no tempo e pude reconhecer nas lembranças de minha infância os restos da região que sobraram da época em que lá viveu o imigrante bretão: as estradas quase intransponíveis, a ausência de luz elétrica, as tempestades tropicais assustadoras, as fazendas quase auto-suficientes, os animais silvestres ainda sobreviventes, os restos de matas, os rios, cachoeiras, o cafezal...

O livro é um belo resgate do Brasil interiorano e quase selvagem da segunda metade do Século XIX.

Boa leitura!

Por F@bio

quinta-feira, 19 de agosto de 2021

Receita para se fazer um monstro - Mário Rodrigues

"Um sábado de Carnaval - há tempos. O menino tinha o queixo defeituoso pra dentro do rosto. E seu lábio era leporino. Devia ser portador de alguma deficiência mental pois não sabia articular as palavras. Embora as corda vocais - diziam - fossem perfeitas. Todas as crianças normais se sujavam de farinha de trigo e depois tomavam banho no chuveirão que a prefeitura havia instalado no bairro. Eu não estava molhado da água do chuveirão. Tinha minha próprias brincadeiras. Fazia uma bomba: espécie de seringa gigante... Quando dobrei a esquina com a bomba na mão o menino débil e sem queixo e de lábio leporino carregava com zelo um saco de leite que retirara na padaria com um tíquete fornecido aos pobres pelo governo. O zelo ao carregar o leite era explicável: a mãe lhe confiara aquilo. Depositara confiança nele pela primeira vez. E ele não queria falhar. Queria mostrar a mãe que era capaz. Por isso passou longe da brincadeira e da folia. Mas eu o persegui. Ele tentou fugir. Não queria se sujar. Eu o alcancei...

...

Meu irmão morreu tostado num incêndio no circo. Recebemos com espanto seu corpo diminuído e escurecido. A morte e o fogo desenharam um sorriso arreganhado no seu rosto. Ele era melhor do que eu em tudo. E seria muito dificil superar a dramaticidade e o heroísmo da sua morte. Escapara do incêndio mas voltara pra salvar a namorada. O mastro quebrou e a lona o envolveu e as queimaduras de terceiro grau o levaram. Para mim foi um alívio. Viver sem sua presença e sem as comparações foi um espécie de renascimento. O tempo passou. Não senti sua falta. Mas algo estranho começou a ocorrer..."

Trechos do livro de contos "Receita para se fazer um monstro", de Mário Rodrigues. Rio de Janeiro: Record, 2016.

Mário Rodrigues é pernambucano, nascido em 1977, em Garanhuns. É professor de literatura, portugues e redação, e edita o jornal U-Carbureto. Também tem o blog de críticas literárias "Na estante de Mário". O livro em comento foi vencedor do Prêmio SESC de Literatura de 2016 na categoria Contos.

São 93 contos curtíssimos divididos em 7 capítulos. Nascido no agreste, o autor também é seco na linguagem. Narrado na primeira pessoa, como se fossem memórias da infância, onde se formam "paixões e os desejos inconfessáveis". Pois "é dessa perversidade que tratam os contos do professor Mário Rodrigues. São contos curtos, mas extremamente impactantes, contados por um "narrador cruel", tendo por resultado "uma sequência de sobressaltos e revelações". Apesar disso e de, por vezes, termos o desejo de abandonar o livro, com sua narrativa envolvente somos compelidos a continuar lendo para conhecer um pouco mais dessa natureza humana que nos deixa indignados e, ao mesmo tempo, curiosos para conhecer até onde pode chegar essa perversidade. Mas não se trata de um herói infalível que, muitas das vezes, é a vítima da crueldade que relata.

Em entrevista na página da Record, o autor Mário Rodrigues diz que o seu protagonista "tem um poder carismático torto que dialoga com o leitor, porque questiona mesmo os limites da empatia e da antipatia. Se, por um lado, há em certos contos um asco latente por suas atitudes e sua fala, em outras histórias brota a nossa condescendência. E ainda em outras nos reconhecemos quase como num espelho”.

Inovador, o autor tece sua escrita com símbolos que revelam as características do seu personagem/narrador: quebra as frazes “como se quebrasse dentes ou narizes de meninos rivais”; na pontuação “só usa ponto (porque lembra tiro), travessão (porque lembra facada) e dois-pontos (porque lembra tiro de cano duplo)”.

O protagonista é um garoto solitário e agressivo que se define como uma planta típica do agreste, o mandacaru, pois "tenho só espinhos e um deserto à minha volta”.

Boa leitura!

Por F@bio

quarta-feira, 30 de junho de 2021

Doidinho - José Lins do Rego

"Fazia um mês que eu chegara ao colégio. Um mês de um duro aprendizado que me custara suores frios. tinha também ganho o meu apelido: chamavam-me de Doidinho. (...) E a verdade é que eu não repelia o apelido. Todos tinham o seu. Havia o Coruja, o Pão-Duro, o Papa-Figo.

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E levou-me para o meio dos outros. Ria-se de tudo, entre os parentes reunidos. A morte de meu pai fora notícia de um fato velho, de que já pareciam ter conhecimento. Ninguém se preocupava com um doido de há dez anos. E, calado, eu via a fogueira queimando no pátio e o chiar do mijão dos meninos brincando. As pistoletas estouravam as suas bolas de fogo. Na banca do alpendre, com a conversa de todos e a brincadeira dos meninos, era o mesmo que se estivesse no quarto do meio, do colégio, de castigo. Sentia ainda na boca o gosto salgado das lágrimas engolidas, e para onde olhava descobria o morto escondido no caixão, de braços cruzados. Ouvia o tio Juca contando a história da briga com Silvino, para lisonjear a minha coragem:

- Muito menor do que o o outro, e botou-o para correr.

Ele queria sarar a minha mágoa. Ia criando interesse para mim a história. E de súbito, num segundo, voltava a visão do meu pai morto, de braços cruzados."


Trechos transcritos do romance "Doidinho", de José Lins do Rego - 46ª edição. Rio de Janeiro : José Olimpio, 2011.


José Lins do Rego Cavalcanti, conforme sua biografia constante da Academia Brasileira de Letras - ABL,  foi romancista e jornalista. Nasceu no Engenho Corredor, município de Pilar, Paraíba, em 3 de junho de 1901, e faleceu no Rio de Janeiro, RJ, em 12 de setembro de 1957. Formou-se em 1923 na Faculdade de Direito do Recife. Nomeado em 1925 promotor em Manhuaçu - MG, casou-se com  D. Naná (Filomena Masa Lins do Rego), e transferiu-se em 1926 para a capital de Alagoas, onde passou a exercer as funções de fiscal de bancos até 1930 e fiscal de consumo de 1931 a 1935. Em Maceió publicou o primeiro livro, "Menino de engenho" (1932), obra que se revelou de importância fundamental na história do moderno romance brasileiro.  Em 1933, publicou o segundo livro, "Doidinho". Em 1935, já nomeado fiscal do imposto de consumo, transferiu-se para o Rio de Janeiro, onde passou a residir e integrou-se plenamente na vida carioca. Continuou a fazer jornalismo, que iniciara no Recife e Maceió, colaborando em vários periódicos com crônicas diárias. Revelou-se, então, sua faceta esportiva, sofrendo e vivendo as paixões desencadeadas pelo futebol, o esporte de sua predileção, foi fanático torcedor do Flamengo. Exerceu o cargo de secretário-geral da Confederação Brasileira de Desportos de 1942 a 1954.  Publicou também, dentro do  “Ciclo da cana-de-açúcar”:  Banguê, Fogo morto e Usina. No “Ciclo do cangaço, misticismo e seca”: Pedra Bonita e Cangaceiros. E ainda: O moleque Ricardo, Pureza, Riacho Doce; Água-mãe e Eurídice. Recebeu o Prêmio da Fundação Graça Aranha, pelo romance Menino de engenho (1932); o Prêmio Felipe d’Oliveira, pelo romance Água-mãe (1941), e o Prêmio Fábio Prado, pelo romance Eurídice (1947).



Doidinho tem por protagonista o menino Carlinhos, que vive a experiência de um colégio interno com os rigores do sistema educacional do início do Século XX. Nele, experimenta a inadaptação aos métodos rigorosos e violentos e as injustiças praticas em nome da disciplina e da ordem. Mas na mesma escola fará importantes amizades e terá suas primeiras incursões no mundo da literatura.


José Lins do Rego constrói um texto com base em memórias e reminiscências da infância e adolescência. Apesar das agruras e perdas, há espaço para a solidariedade e o amor, ainda que este venha como redenção ou inferno. No livro podem ser encontradas belíssimas passagens plenas de imagens poéticas, como quando é surpreendido pelo diretor: "seis bolos cantaram nas minhas mãos. Fiquei de pé na frente da mesa, oprimindo os soluços que se elevavam com o protesto de minha sensibilidade machucada". Ou quando o colega Coruja conversa com ele: "falou-se da irmã, que voltara do colégio doente. Ela tinha um olho cego, furado numa brincadeira com ele, quando eram bem pequenos. Coitado do Coruja! Havia esta mágoa profunda dentro dele: a irmã cega de um olho por sua culpa. Eu só sei que a consolação das minhas dores ele me trouxe, derramando o óleo de suas confidências sobre minhas feridas abertas". Ou ainda, ao referir-se a uma família de miseráveis: "Os molequinhos com os pratos de barro na mão, enchendo as barrigas grávidas de vermes. Comi também aqueles caroços duros de feijão com farinha, aqueles pedaços de batata-doce com café".

É um livro de leitura envolvente e que nos leva a ter uma visão da vida no interior nordestino no início do Século passado.

Boa leitura!

Por F@bio


terça-feira, 18 de maio de 2021

A primavera do Dragão – A juventude de Glauber Rocha – Nelson Motta

 “Com 19 anos e ideia fixa em cinema, Glauber se sentia pronto para fazer o seu primeiro filme. O curta seria uma experiência narrativa radical. Sem narrativa. Sem palavras nem música. Sem histórias nem símbolos. Sem razões nem sentimentos. Sem literatura nem psicologia. Influenciado apenas pela poesia concreta, Glauber desenvolveu o roteiro de Pátio imaginando apenas formas e movimentos, luzes e sombras, pretos e brancos. Na trilha sonora, só ruídos, sons eletroconcretistas.

O filme seria estrelada por Helena Ignez, contracenando com o belo Solon, da Escola de Teatro, e filmado em um lindíssimo pátio de um velho casarão na Ladeira Mauá, com piso de cerâmica em preto e branco, como um grande tabuleiro de xadrez cercado de árvores e sombras. E ao fundo o mar da Bahia brilhando ao sol.

Para Glauber, além de cinema poético concretista, Pátio era um filme de amor, para Helena. Para revelar sua beleza e sua presença de atriz.”

“No Rio de Janeiro, Glauber fez a montagem definitiva e acrescentou a trilha sonora ... Pátio foi exibido junto com Caminhos, o primeiro curta do amigo Saraceni, em concorrida sessão-dupla na casa da artista plástica Lígia Pape, com a presença do grande crítico de arte Mário Pedrosa, o artista de vanguarda Hélio Oiticica, o poeta Ferreira Gullar, o escultor Amílcar de Castro e boa parte dos editores do Suplemento Dominical do Jornal do Brasil (SDJB), que era o grande palco, vitrine e tribuna da poesia concreta. Além de muitos artistas e jornalistas, belas mulheres e alguns penetras.

Os dois filmes foram recebidos com grande entusiasmo pelos convidados. Mas ninguém fez mais sucesso do que a exuberante Helena Ignez, a mais festejada da noite, deixando Glauber de olho vivo, faro fino e orelha em pé. Era uma perfeita festa carioca, movida a uíque, jazz e bossa nova, cheia de conquistadores e de mulheres liberais, com pequenos grupos discutindo cultura e política.”


Trechos do livro “A  primavera do Dragão – A juventude de Glauber Rocha”, de Nelson Motta. Rio de Janeiro: Objetiva, 2011. Pags: 160 a 163



Como está na orelha do livro, “Nelson Motta é fascinado por personagens anárquicos, radicais, doidões com causa, artistas notáveis que perseguem seu sonho com potência criativa. Depois de Vale Tudo, a biografia eletrizante de Tim Maia, o jornalista, escritor e produtor musical reconstitui a juventude do cineasta Glauber Rocha, ícone de uma geração excepcional”.


O livro é de fato uma ótima leitura, narrando a infância e juventude de Glauber Rocha, num Brasil que se transformava a passos largos e num ambiente de efervescência política e cultural. Uma época de expansão criativa: bossa nova, cinema novo, poesia concreta, teatro do oprimido e de arena, e diversos outros movimentos de cultura popular. Mas também de carência de recursos e pleno de improvisações, tanto que o lema do cinema novo era “uma câmera na mão e uma ideia na cabeça”.


Glauber propõe uma nova forma de fazer cinema: nada de cenários e medalões. Inspirado no realismo italiano, usa locações do mundo real que retrata. Valoriza a dramaturgia, o argumento e personagens do povo. E foi com muita garra, improvisação e parcos recursos que conseguiu levar o seu Deus e o Diabo na Terra do Sol para o Festival de Cannes, um dos mais notáveis palcos do cinema no planeta, onde se consagrou.


Nelson Motta fez inúmeras entrevistas e acessou preciosos arquivos de amigos e familiares de Glauber. Escreveu o livro com seu jeito dinâmico e fluido de narrar, com humor e maestria. O livro, mais do que uma biografia, é um retrato de uma época onde o sonho embalou corações e mentes. Uma biografia em ritmo de romance, fazendo um recorte da vida de Glauber, partindo do  seu nascimento, passando pela infância e juventude, até o seu desabrochar como vulcão criativo, falastrão e libertário, que muito contribuiu para moldar a cultura brasileira. 


Boa leitura e diversão!

Por F@bio

quarta-feira, 14 de abril de 2021

Fragmentos de memórias malditas: invenções de si e de mundos - Cecília Coimbra

"Falar daqueles três meses em que fiquei detida - incomunicável e sem um único banho de sol ou qualquer outro tipo de exercício - é falar de uma viagem ao inferno: dos suplícios físicos e psíquicos, dos sentimentos de desamparo, solidão, medo, pânico, abandono, desespero; é falar da 'separação entre corpo e mente', como afirmava o psicanalista Helio Pellegrino: 'O corpo implora para que se fale, a mente proíbe que isso ocorra'. A tortura não quer apenas fazer falar, também quer calar. Este foi o esgarçamento que experimentei: a terrível situação que opera através da dor, da humilhação e da degradação, transformando-nos em coisa, em objeto. Resistir a isso, não perder a lucidez e não permitir que o torturador penetre em nossa alma, em nosso espírito, em nosso pensamento e domine o nosso corpo exige um gigantesco esforço.

...

Apesar do massacre de toda e qualquer oposição, a vida insiste. Os anos seguintes foram de muita solidariedade, especialmente com meus irmãos e amigos mais próximos. Ocorreu uma grande aproximação. Passamos a morar próximos uns dos outros. Viajávamos de férias juntos e confraternizávamos em datas festivas - um congraçamentos muito forte, com muita união e muita alegria por estarmos juntos e vivos.

...

A inquietude e o combate com linhas duras animam a minha existência. Uma experiência de vida marcada por sucessivos abalos em torno da construção de ética-estética da liberdade na invenção de um viver potente. Não me conformo com a mutilação de uma vida pacificada para caber na caixa do mundo já estabelecido. Sinto a faísca da vida que me incendeia nos encontros que experimento com alunos, livros, autores, companheiros, amigos. Porém, durante muitos anos, tinha um sentimento muito forte de que nunca mais veria os amigos exilados ... Sentia um peso muito grande, que se desfez aos poucos ao longo dos anos - com a anistia, ao rever os companheiros-amigos, com os pensadores-intercessores, com os alunos: enfim, com novos e bons encontros que aumentam nossa potência de existir.

Movida pelos bons encontros sigo em busca de mais ar. Afetada pela pandemia do Coronavirus busco refugio na serra de Friburgo, em um pequeno ponto do planeta Terra onde a mata Atlântica resiste e insiste em sua acolhida multicor. Este foi o território que me acolheu e me implusionou em direção à escrita deste texto. Pássaros, flores, sapos, cobras, borboletas, aranhas, vagalumes e insetos variados passam a atravessar meus dias... Que essas memórias possam seguir afetando-desdobrando e seja, também, um pouco do possível, um pouco de ar para outras resistências e invenções de si e de mundos"

Trechos do livro "Fragmentos de memórias malditas: invenções de si e de mundos", de Cecília Coimbra. São Paulo: N-1 Edições, 2021.

Cecília Maria Bouças Coimbra é historiadora formada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e psicológa pela Universidade Gama Filho, mestre pela Universidade Candido Mendes, com doutorado em psicologia na Universidade de São Paulo (USP), pós-doutorado em ciência política também na USP. Professora aposentada de psicologia da Universidade Federal Fluminense (UFF) e uma das fundadoras e atual participante da Diretoria Colegiada do Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro.. É autora também do livro "Guardiães da Ordem, uma viagem pelas práticas psi no Brasil do milagre", publicado pela Editora Oficina do Autor, em 1995 (esgotado e disponível on line).

O livro de memórias do período em que esteve presa sem qualquer processo judicial, se baseia no próprio depoimento da autora às comissões Nacional e Estadual da Verdade, sendo ainda inspirado em sua tese de doutorado. O livro também é um marco dos seus 80 anos, nos quais lutou por ideiais de um mundo mais justo e pelo direito à verdade, à justiça e à dignidade humana. Como ela mesmo diz: falar das memórias "malditas e perigosas dos vencidos" é ainda doloroso e muito difícil, mas cada vez mais "absolutamente necessário".

Cecília fala daquelas memórias "que não contam nos livros oficiais e que o Estado tenta incessantemente fazer desaparecer, ainda hoje insistem em nossos corpos. São histórias que fazem parte de nossas vidas e que continuam a ferro e fogo", e continua: "Sinto necessidade de escrever para liberar a vida. Só consigo seguir em frente no abalo que constantemente tira tudo do lugar novamente. Em uma fina sintonia entre Leibniz e Deleuze: na chegada ao porto eis que sou lançada novamente em alto mar".

Mãe, avó, militante dos direitos humanos, professora universitária, historiadora, cientista política e psicóloga, Cecília Coimbra é uma potência. A fundadora e principal referência do grupo Tortura Nunca Mais fala mais sobre sua vida e o livro na ótima entrevista à Carta Capital (https://www.cartacapital.com.br/sociedade/nao-tenho-mais-ilusao-de-revolucao-minha-afirmacao-e-a-vida-cotidiana/).

Como Cecília também me refugio na serra de Nova Friburgo buscando um pouco mais de ar e acolhida da natureza. Mas resistir é luta cotidiana, sem tréguas, pela liberdade, pela justiça, pela vida. Sobretudo nesses tempos sombrios e de múltiplas pandemias (na saúde, na sociedade, na política...), é ato de sanidade, fé e coragem.

E resistir é preciso. Boa leitura!

Por F@bio

segunda-feira, 5 de abril de 2021

Guerreiro Camaleão, O soldado do Kaiser - Germano Schinkoeth Reis

"Duas horas direitinho, nós aguentamos no mais terrível fogo de granadas. Por sorte, a maioria passava por cima de nós. Escutamos altos brados de comando lá na frente, eram os pioneiros que tinham terminado o serviço de demolição. Ordeno a retirada. Retornamos, aproveitando grande parte da vala como proteção. Dois homens mal conseguiam andar. O fogo inimigo estava tão forte que, na retaguarda, ficaram admirados com a nossa chegada e com a missão cumprida.
... Porto de Bremen, setembro de 1880. Consegui emprego como foguista no vapor 'Berlin'. Tive que pagar doze marcos para o oficial que contrata os marinheiros. Era meu último dinheiro, sobrou apenas um marco. Eu pensava em ir para a América, Austrália ou África. Mas o navio vai para o Brasil, para a América do Sul.
... Em uma pequena venda, mais voltada para o comércio de bebidas, conheci Otto, um ferreiro, que está há mais de dois anos em São Paulo e também só conseguiu juntar umas poucas economias. Ele disse que vai tentar a sorte na Amazônia (...) [onde] está existindo um eldorado da borracha e muitos estão ficando ricos com ela ... Falou-me também de uma região no interior do Rio de Janeiro, um pouco ao norte, onde existia outro eldorado verde, o do café. Argumentei com ele, como pode ser ouro verde, se o café é preto? Ele explicou que naquela região montanhosa, todos os morros estavam cobertos de cafezais de um tom verde muito bonito, e que na época da floração, ficavam brancos de flores, como um brilho. Como estava gerando muitas riquezas, apelidaram-no de 'ouro verde'.
... Agora vejo a vida como um tabuleiro de xadrez, com suas peças dispostas de forma ordenada. As mais importantes ficam atrás, mais protegidas. A linha de frente, a dos peões, é a primeira a ir para o sacrifício, sem piedade. Com isso fica fácil entender que só os grandes lances, os mais inteligentes e incomuns podem levar à vitória. Sinto que estou fazendo isto agora.
... Quando está acontecendo uma grande guerra, que direta e indiretamente afeta quase todos, por vezes até mesmo quem se encontra distante, é dificil que esse assunto não faça parte de quase todas as conversas. Sabendo de minha participação na [guerra] Franco - Prussiana, Zambrotti, quase que suplicando, insistiu para ouvir como é uma guerra por dentro, contada em detalhes, sem mentiras ou exageros que tanto aparecem nos jornais. Pensei um pouco antes de responder e fui bem claro. - Escute bem, Zambrotti. Prefiro não falar sobre isso, porque não são boas lembranças. Mas vou te contar sobre algo melhor, não sei se na sua terra natal existe alguma coisa parecida. Também não sei se era uma tradição familiar ou regional de onde nasci; bem ao norte, quase na fronteira com a Polônia. Sempre que um rapaz terminava os estudos de sua profissão, antes de começar a trabalhar, tinha que fazer uma espécie de iniciação para a vida. Ela consisitia em uma peregrinação solitária, sem dinheiro, munido apenas de um cajado e uma pequena trouxa de roupas. Eu realizei aos dezesseis anos de idade, logo após minha formatura. (...) Meu pai me entregou o cajado que ele e meu avô já tinham usado, e me explicou que era para cultivar três virtudes: liberdade, humildade e coragem. Já adulto é que compreendi melhor esses valores, que muito me ajudaram a vencer na vida. Quanto à liberdade, era para cortar o cordão umbilical com a família. Descobrir seu grande valor, e sempre fazer por onde nunca perdê-la. Quanto à humildade, cultivada pedindo comida nas casas, era para aprender a não ter vergonha de pedir ajuda, mas sem se curvar, sem subserviência. Por fim, a coragem. Para enfrentar a vida sem medo, sem se acomodar, caminhando sempre em frente, em busca de um sonho a ser realizado. Foram dois meses caminhando pelo norte da Alemanha. Quando retornei, senti que já era um homem, pronto para enfrentar a vida."
Trecho do romance biográfico "Guerreiro Camaleão - O soldado do Kaiser", de autoria de Germano Schinkoeth Reis. São Paulo: All Print Editora, 2013.
Germano Schinkoeth Reis é médico formado pela Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro, que "encontrou na cirurgia plástica e reparadora sua realização profissional". Militou na política e foi vereador por três mandatos, de 1993 a 2004, no município de Natividade (RJ), chegando a ser presidente da Câmara Municipal. Autor ainda do livro "Medicina Simples - Orientações e Medicações", pela Editora Vozes (2000).
O livro é baseado nos diários do avô do autor, o empresário germânico Carl Heinrich Schinkoeth, nascido em 1851, em Beneschau/Schleisien - Alemanha, e falecido em 1928, em Natividade (RJ). O médico Germano S. Reis revelou-se um ótimo escritor que conseguiu dar um ritmo de aventura aos diários do avô. Como consta da contracapa do livro "Grandes escritores conseguem transformar biografias simples, com histórias comuns, em excelentes e famosos romances. Aqui se encontra quase o inverso, isto é, em linguagem simples, conta-se uma história riquíssima; quase inacreditável, mas verdadeira. Para não torná-la longa e enfadonha, a maior parte das anotações do personagem (quatro volumes em alemão) foi cortada para não cansar o leitor".
A trajetória de Carl começa a ser relatada com a sua participação na guerra Franco - Prussiana. Um jovem soldado que no front lidera seus companheiros e é condecorado com a mais alta distinção de bravura da época, a Cruz de Ferro, da qual ele, ao longo da vida, não irá se vangloriar. Pelo contrário, como no trecho acima transcrito, evitará falar sobre a guerra porque "não são boas lembranças". Após sua participação no conflito, ele irá trabalhar em condições muito duras em seu país, até decidir buscar melhores perspectivas no exterior. Por um acaso da vida e também pela falta de dinheiro, acaba embarcando num navio para a América, não a do Norte e sim a do Sul, vindo parar no Brasil, aportando em Santos, onde consegue fugir do inferno que era trabalhar de foguista nos porões da embarcação, sendo tratado praticamente como um escravo. No Brasil, um conterrâneo lhe informa sobre duas opções para ganhar dinheiro com "ouro verde": a borracha na Amazônia e o café no norte do Estado do Rio de Janeiro. Ele vai para a Amazônia e consegue ganhar dinheiro. Depois, volta para sua amada, Anna, que deixara na Alemanha. Mas a vida lá não estava fácil e Carl convence Anna a vir com ele para o Brasil, indo morar em Manaus, onde se torna industrial. Todavia, Anna não se adapta ao clima quente e úmido da cidade. Carl decide então ir em busca do outro "ouro verde". De trem chega a Natividade e lá se estabelece como comerciante e, após conhecer a serra de Varre-Sai de onde vinham tantas tropas de mulas carregadas de "ouro verde", exportador de café.
Como afirma seu neto, Germano, Carl Schinkoeth "no período da guerra que lutou, em que não se vangloriou de seus feitos, também [não] o fez no período em que se aventurou intrepidamente pela Amazônia e no mundo dos negócios, onde, de certa forma, existe um outro tipo de guerra, mas de inteligência e esperteza na disputa pelo dinheiro".
Me envolvi com a pesquisa genealógica - um vício - e por tal razão estou sempre pesquisando minhas origens. Nasci numa fazenda de café justo em Varre-Sai, e foi uma maravilha ler o livro e conhecer o relato de Carl ao subir a serra rumo às plantações de café no final do Século XIX. Trata-se de um período carente de relatos da geografia e economia da região e o livro trás um importante contribuição para conhecermos um pouco mais da vida regional na época. Aliás, a literatura é cada vez mais reconhecida como rica fonte de pesquisa histórica.