"Um sábado de Carnaval - há tempos. O menino tinha o queixo defeituoso pra dentro do rosto. E seu lábio era leporino. Devia ser portador de alguma deficiência mental pois não sabia articular as palavras. Embora as corda vocais - diziam - fossem perfeitas. Todas as crianças normais se sujavam de farinha de trigo e depois tomavam banho no chuveirão que a prefeitura havia instalado no bairro. Eu não estava molhado da água do chuveirão. Tinha minha próprias brincadeiras. Fazia uma bomba: espécie de seringa gigante... Quando dobrei a esquina com a bomba na mão o menino débil e sem queixo e de lábio leporino carregava com zelo um saco de leite que retirara na padaria com um tíquete fornecido aos pobres pelo governo. O zelo ao carregar o leite era explicável: a mãe lhe confiara aquilo. Depositara confiança nele pela primeira vez. E ele não queria falhar. Queria mostrar a mãe que era capaz. Por isso passou longe da brincadeira e da folia. Mas eu o persegui. Ele tentou fugir. Não queria se sujar. Eu o alcancei...
...
Meu irmão morreu tostado num incêndio no circo. Recebemos com espanto seu corpo diminuído e escurecido. A morte e o fogo desenharam um sorriso arreganhado no seu rosto. Ele era melhor do que eu em tudo. E seria muito dificil superar a dramaticidade e o heroísmo da sua morte. Escapara do incêndio mas voltara pra salvar a namorada. O mastro quebrou e a lona o envolveu e as queimaduras de terceiro grau o levaram. Para mim foi um alívio. Viver sem sua presença e sem as comparações foi um espécie de renascimento. O tempo passou. Não senti sua falta. Mas algo estranho começou a ocorrer..."
Trechos do livro de contos "Receita para se fazer um monstro", de Mário Rodrigues. Rio de Janeiro: Record, 2016.
Mário Rodrigues é pernambucano, nascido em 1977, em Garanhuns. É professor de literatura, portugues e redação, e edita o jornal U-Carbureto. Também tem o blog de críticas literárias "Na estante de Mário". O livro em comento foi vencedor do Prêmio SESC de Literatura de 2016 na categoria Contos.
São 93 contos curtíssimos divididos em 7 capítulos. Nascido no agreste, o autor também é seco na linguagem. Narrado na primeira pessoa, como se fossem memórias da infância, onde se formam "paixões e os desejos inconfessáveis". Pois "é dessa perversidade que tratam os contos do professor Mário Rodrigues. São contos curtos, mas extremamente impactantes, contados por um "narrador cruel", tendo por resultado "uma sequência de sobressaltos e revelações". Apesar disso e de, por vezes, termos o desejo de abandonar o livro, com sua narrativa envolvente somos compelidos a continuar lendo para conhecer um pouco mais dessa natureza humana que nos deixa indignados e, ao mesmo tempo, curiosos para conhecer até onde pode chegar essa perversidade. Mas não se trata de um herói infalível que, muitas das vezes, é a vítima da crueldade que relata.
Em entrevista na página da Record, o autor Mário Rodrigues diz que o seu protagonista "tem um poder carismático torto que dialoga com o leitor, porque questiona mesmo os limites da empatia e da antipatia. Se, por um lado, há em certos contos um asco latente por suas atitudes e sua fala, em outras histórias brota a nossa condescendência. E ainda em outras nos reconhecemos quase como num espelho”.
Inovador, o autor tece sua escrita com símbolos que revelam as características do seu personagem/narrador: quebra as frazes “como se quebrasse dentes ou narizes de meninos rivais”; na pontuação “só usa ponto (porque lembra tiro), travessão (porque lembra facada) e dois-pontos (porque lembra tiro de cano duplo)”.
O protagonista é um garoto solitário e agressivo que se define como uma planta típica do agreste, o mandacaru, pois "tenho só espinhos e um deserto à minha volta”.
Boa leitura!
Por F@bio
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