sexta-feira, 29 de agosto de 2014

Quem Fala? - Fabio M. Faria

"Quem fala?
de Fabio Martins Faria
(...)

Naquela época, o país estava em plena crise do petróleo. Não havia divisas suficientes para pagar os compromissos internacionais. A saída era realizar um controle diário das exportações e importações para saber como evoluía o saldo de dólares.

Certa noite, um novo funcionário estava sozinho na seção, conferindo umas tabelas, no que era reconhecido como um craque.  No meio desse serão, tocou o telefone.

- Alô, boa noite! - atendeu meio sonado o zeloso funcionário.

- É da estatística? - indagou alguém com uma voz imperial.

- Sim, é do setor de estatística – respondeu o funcionário.

- Eu quero saber da balança. Quero aqui agora na minha sala, traz logo!

- Mas eu não sei onde está – retrucou o empregado com sua sinceridade habitual.

- Como? - grunhiu a voz do outro lado

- Não faço ideia onde está.

- Pois então se vira e traga logo aqui pra mim. É urgente! - ordenou com voz colérica.

- Mas tô sozinho aqui e não sei onde está – respondeu com toda calma o aplicado funcionário.

- Você sabe com quem está falando?

Pelo tom ameaçador, percebeu logo que era o “poderoso chefão”, mas como não tinha contato com ele, resolveu arriscar.

- E o senhor sabe quem está falando?

- Não, seu imbecil, quem está falando aí? – berrou o chefão irado.

- Ainda bem...


- Tum...Tum...Tum..."


Transcrito do livro "Casos e Acasos do Comércio Exterior", São Paulo: Aduaneiras, 2014

Recentemente lançamos o livro durante o Encontro Nacional de Comércio Exterior - ENAEX 2014, realizado pela Associação de Comércio Exterior do Brasil (AEB), nos dias 7 e 8 de agosto, no Rio de Janeiro. Sou organizador do livro, juntamente com o Professor Jovelino Pires. Somos 6 autores: Arthur Pimentel, Edson Lupatini, Eduardo Coelho, Fabio M. Faria, Jovelino Pires e Ricardo Dobbin. O livro tem 32 crônicas que relatam casos pitorescos vividos pelos autores nas suas militâncias no comércio internacional. As criativas ilustrações são de Renato Pires. Abrilhanta o livro, o emocionante prefácio de Ricardo Cravo Albin. Participar dessa iniciativa foi muito divertido e estimulante.
Por F@bio

sábado, 14 de junho de 2014

O Conto da Ilha Desconhecida - José Saramago

"(...) 
Andando, andando, o homem chegou ao porto, foi à doca, perguntou pelo capitão, e enquanto ele não chegava deitou-se a adivinhar qual seria, de quantos barcos ali estavam, o que iria ser o seu, grande já se sabia que não, o cartão de visita do rei era muito claro neste ponto, por conseguinte ficavam de fora os paquetes, os cargueiros e os navios de guerra, tão-pouco poderia ser ele tão pequeno que resistisse mal às forças do vento e aos rigores do mar, o rei também havia sido categórico neste ponto, Que navegue bem e seja seguro, foram estas as suas formais palavras, assim implicitamente excluindo os botes, as faluas e os escaleres, os quais, sendo bons navegantes, e seguros, conforme a condição de cada qual, não tinham nascido para sulcar os oceanos, que é onde se encontram as ilhas desconhecidas. Um pouco afastada dali, escondida por trás de uns bidões, a mulher da limpeza correu os olhos pelos barcos atracados, Para o meu gosto, aquele, pensou, porém a sua opinião não contava, nem sequer havia sido ainda contratada, vamos ouvir antes o que dirá o capitão do porto. O capitão veio, leu o cartão, mirou o homem de alto a baixo, e fez a pergunta que o rei se tinha esquecido de fazer, Sabes navegar, tens carta de navegação, ao que o homem respondeu, Aprenderei no mar. O capitão disse, Não to aconselharia, capitão sou eu, e não me atrevo com qualquer barco, Dá-me então um com que possa atrever-me eu, não, um desses não, dá-me antes um barco que eu respeite e que possa respeitar-me a mim, Essa linguagem é de marinheiro, mas tu não és marinheiro, Se tenho a linguagem, é como se o fosse.
(...)"

Transcrito de O Conto da Ilha Desconhecida de José Samarago, foi lançado em 1997 e está disponível em http://contobrasileiro.com.br/


José Saramago, um dos maiores nomes da literatura portuguesa, jornalista, escritor e poeta, nascido em 1922 e falecido em 2010. Ganhador dos Prêmios Nobel e Camões, tem vasta obra de contos e romances, incluindo Ensaio sobre a Cegueira, adaptado para o cinema. Deixou como legado, além de sua obra, a Fundação José Saramago com o objetivo de defesa dos direitos humanos e do meio ambiente, situada na Casa dos Bicos, em Lisboa - Portugal.
Saramago nos presenteia com um texto, que embora curto, é extremamente denso de conteúdo e imagens. Nos faz questionar sobre nossa acomodação com os papéis sociais e o medo do desconhecido. Nos traz uma escrita que rompe com as regras da gramática, mas não com a musicalidade do texto e a magia das palavras. O conto é divertido e filosófico, no sentido de que nos faz pensar sobre a eterna busca do homem sobre si mesmo e o sentido da vida.
No conto, um homem simples demanda ao Rei um barco para navegar até uma ilha desconhecida, que acredita existir, mas que só de fato saberá se o é, quando lá chegar e torna-la então conhecida.
O sonho e a imaginação tornam a aventura possível. A ficção nos permite viajar até lugares inimagináveis, sem necessariamente sair de onde nos encontramos. Essa é a magia dos livros a nos transportar a lugares possíveis e impossíveis. Para sonhar, basta existir!
Por F@bio

domingo, 8 de junho de 2014

Cais - Conceição Rios


"Quando o mar veio esbarrar na vida,
pouca gente ainda estava no cais.

Não havia mais por quem chorar os sais.
A espuma virou névoa.
A brisa congelou a relva.
O som do navio fantasma
fazia as casas balançarem.

Não era o balanço do mar.
Não era o vai-e-vem de amar.
Não era onde se queria estar.

Era o único lugar."


Transcrito do livro "Confluência", de Conceição Rios, pág. 25. Rio de Janeiro: Ibis Libris, 2009.

Conceição Rios é carioca, poeta, pedagoga pela PUC-RJ, onde trabalhou com arte-educação em permanente contato com o teatro, a música, o cinema, a publicidade, a televisão e até o circo (voador).

O cais é o porto seguro, onde a vida resiste aos tropeços, temores e terrores. A nau da vida faz sua travessia por águas calmas e tormentosas, mas sempre há um cais para nos abrigar do vai-e-vem cotidiano, dos caminhos interrompidos, dos fracassos sofridos ou dos amores partidos.
Por F@bio

quinta-feira, 1 de maio de 2014

Escritos de Vitória - Porto - Jorge Alencar

Apresentação do Livro Escritos de Vitória – PORTO

O Porto sempre esteve presente na minha vida. Especialmente quando adolescente e morador do centro de Vitória. Morava na Beira-Mar e, muitas vezes, percorria os olhos em direção ao Porto. Algumas coisas me intrigavam, a vida dos embarcadiços, as estórias de contrabando, as mensagens escritas nas pedras, os marinheiros do Bar Scandinávia, as prostitutas. Esta é a imagem que conservo do Porto de Vitória.
O apito dos navios ressoando no canal de Vitória... Os navios de guerra... Como gostava de ver os navios de guerra! A formação dos marinheiros, todos de branco no convés. O embarque e desembarque de café, a facilidade com que aqueles homens levantavam e carregavam os sacos de juta impressos com um ramo de café verde. Os novos guindastes, lembro-me bem, acompanhei a montagem deles da escadaria do Palácio.
Uma certa noite, desci do apartamento e deitei-me sobre a balsa que servia para atracar as embarcações da praticagem. Deitado de bruços, olhando rente ao mar, o reflexo das luzes da Beira-Mar, dos prédios, dos navios, dos portos ficou para sempre registrado na minha memória. Esta parte da cidade, para mim, era um grande mistério. Nem tudo que via entendia, mas acreditava que fazia parte da vida do Porto as idas e vindas de diferentes navios e nacionalidades. Houve uma época que eu colecionava maços de cigarros vazios. Só próximo ao Porto se conseguia uma variedade maior de marcas. Às vezes fico imaginando Vitória sem o Porto ou o Porto sem Vitória. O que seria disso? Imagine um elevado ao lado do Porto. O cais virando mão e contramão. Os navios fora do Porto. De repente, quem sabe, um aterro unindo Vitória a Vila Velha. Nossa Senhora!... Isto é delírio.
As ilustrações, os contos, as crônicas, os poemas, presentes nos Escritos de Vitória no futuro poderão ser dos únicos registros do sentimento que o nosso Porto – parte da nossa Memória – inspira em nosso artífices do traço e da palavra. Vale a pena lê-los e entendê-los como cada um vê o seu Porto e como cada um o interpreta.



Fonte: Escritos de Vitória – Uma publicação da Secretaria de Cultura e Turismo da Prefeitura Municipal de Vitória, ES – 1994. Prefeito Municipal, Paulo Hartung. Autor: Jorge Alencar – Secretário  Municipal de Cultura e Esporte  de Vitória - 1994. Ilustração: Atílio Colnago - Ilustrou nesta publicação a crônica "Kallima" da autora Bernadette Lyra

Obtido de: http://www.morrodomoreno.com.br/materias/porto-escritos-de-vitoria.html

Não li o livro, ainda, mas achei muito legal esse texto de apresentação do Jorge Alencar, muito ilustrativo do porto de Vitória. Lembro que, certa vez, fui gravar uma entrevista para o "Bom dia ES". Optaram por uma externa bem no local onde o autor ficava deitado admirando a movimentação dos navios no porto de Vitória. Nesse dia, por sorte, enquanto gravava a entrevista, no canal ao fundo, um navio manobrava. Era o pano de fundo ideal para a entrevista na qual falava sobre o comércio exterior brasileiro, em geral, e capixaba, em particular.
Por F@bio

sábado, 19 de abril de 2014

O Amor Nos Tempos do Cólera (2) - Gabriel García Máquez

"A independência do domínio espanhol, e a seguir a abolição da escravatura, precipitaram o estado de decadência honrada em que nasceu e cresceu o doutor Juvenal Urbino. As grandes famílias de outrora afundavam em silêncio dentro de suas fortalezas desguarnecidas. Nos altos e baixos das ruas empedradas que tão eficazes tinham sido em guerras e desembarques de bucaneiros, as ervas se despenhavam dos balcões e abriam gretas mesmo nos muros de cal e cantaria das mansões mais bem conservadas, e o único sinal de vida às duas da tarde eram os lânguidos exercícios de piano na penumbra da sesta. Por dentro, nos frescos dos quartos de dormir saturados de incenso, as mulheres de guardavam do sol como de um contágio indigno, e mesmo nas missas de madrugada tapavam a cara com a mantilha. Seus amores eram lentos e difíceis, perturbados amiúde por presságios sinistros, e a vida lhes parecia interminável. Ao anoitecer, no instante opressivo da passagem para as sombras, subia dos pântanos um turbilhão de pernilongos carniceiros, e uma branda exalação de merda humana, cálida e triste, revolvia no fundo da alma a certeza da morte.

Pois a vida própria da cidade colonial, que o jovem Juvenal Urbino costumava idealizar em suas melancolias de Paris, era então uma ilusão da memória. Seu comércio tinha sido o mais próspero do Caribe no século XVIII, sobretudo graças ao privilégio ingrato de ser o maior mercado de escravos africanos nas Américas. Era além disso residência habitual dos vice-reis do Novo Reino de Granada, que preferiam  governar daqui, frente ao oceano do mundo, e não da capital distante e gelada cujo chuvisco de séculos lhes transtornava o sentido da realidade. Várias vezes por ano se concentravam na baía as frotas de galeões carregados com as riquezas de Potosí, de Quito, de Vera-cruz, e a cidade vivia então aqueles que foram seus anos de glória. Na sexta-feira 8 de junho de 1708 às quatro da tarde, o galeão San José, que acabava de zarpar para Cádiz com um carregamento de pedras e metais preciosos avaliados em quinhentos bilhões de pesos da época, foi afundado por uma esquadra inglesa diante da entrada do porto, e dois longos séculos depois ainda não tinha sido resgatado. Aquela fortuna jacente em fundos de corais, com o cadáver do comandante flutuando adernado no posto de mando, costumava ser evocada pelos historiadores com o emblema da cidade afogada nas recordações.

Do outro lado da baía, no bairro residencial de Mangueira, a casa do doutor Juvenal Urbino se situava em outro tempo. Era grande e fresca. de um andar só, e com um pórtico de colunas dóricas na varanda da frente, da qual se dominava a água parada de miasmas e escombros de naufrágios da baía. O chão estava forrado de pedras axadrezadas, brancas e pretas, da porta de entrada até a cozinha, e isto se atribuíra mais de uma vez à paixão dominante do doutor Urbino, sem lembrar que se tratava de um fraqueza comum aos mestres-de-obra catalães que tinham construído no princípio do século aquele bairro de ricos de fresca data (...)

No entanto, nenhum outro lugar revelava a solenidade meticulosa da biblioteca, que foi o santuário do doutor Urbino antes que a velhice o derrubasse. Ali, em redor da escrivaninha de nogueira do pai,  das poltronas de couro almofadado, fez forrar as paredes e até as janelas com estantes envidraçadas, e colocou numa ordem quase demente três mil livros idênticos encadernados em pele de bezerro e com suas iniciais douradas na lombada. Ao contrário dos outros aposentos, que estavam à mercê das comoções e dos maus cheiros provenientes do porto, a biblioteca teve sempre o recolhimento e o odor de uma abadia. Nascidos e criados debaixo da superstição do caribe de abrir portas e janelas para convocar uma fresca que não existia na realidade, o doutor Urbino e sua esposa sentiram a princípio o coração oprimido da clausura. Mas acabaram convencidos das vantagens do método romano contra o calor, que consistia em manter as casas fechadas no torpor de agosto para que não entrasse o sopro ardente da rua, e abri-las de par em par aos ventos da noite. A sua foi desde então a mais fresca no sol bravo da Mangueira, e era uma ventura fazer a sesta na penumbra dos quartos, e sentar à tarde no pórtico para ver passar os cargueiros de Nova Orleans, pesados e cinzentos, e os navios fluviais de roda de madeira com as luzes acesas ao entardecer, que iam purificando com uma esteira de música o monturo estanque da baía..."

Transcrito de "O Amor nos Tempos do Cólera", de Gabriel García Márquez, tradução de Antônio Callado. Página 27 a 30. Rio de Janeiro: Editora Record, 1985.

Acho que podemos dizer que a literatura não seria a mesma sem García Márquez. Ele deu uma enorme contribuição à produção literária latinoamericana e permitiu que esta conquistasse seu espaço num ambiente completamente dominado pelos autores estadunidenses e europeus. O primeiro livro de Márquez que li foi Olhos de Cão Azul. Me encantei de cara com o realismo fantástico e o vigor poético. Depois li Os Funerais de Mamãe Grande e A Incrível e Triste História de Cândida Erêndira e sua Avó Desalmada. Ao ler Cem Anos de Solidão o encantamento se consolidou e pude descobrir que a história das gerações da família Buendía, situada por García Márquez na sua cidade natal, Aracataca, Colômbia, poderia estar situada em qualquer outro país da América Latina. Esse sentimento de latinidade no texto de García Márquez me contagiou. Essa semana o autor fez sua passagem, mas seu legado fica para que possamos ler e reler. Obrigado Gabo, fica em paz!
Por F@bio

terça-feira, 15 de abril de 2014

Tristes Navios que Passam - Emanuel Félix

Tristes Navios que Passam

            Para o Daniel Santos,
                  no outro lado do mar

Tristes navios que passam
na hora da nossa vida
na hora da nossa morte

escuros vasos de guerra
cargueiros tanques paquetes
brancos navios de vela

levam óleo levam ódio
luxo lixo das cidades
levam gente gente gente

deixam ficar nostalgia

tristes navios que passam
na hora da nossa morte
na hora da nossa vida

Félix, Emanuel (1977), A Palavra.O Açoite. Coimbra: Poesia Centelha, p. 31.

Obtido de: http://www.ces.uc.pt/projectos/poesiadaguerracolonial/pages/pt/antologia/poemas/partidas.php

O poeta Emanuel Félix Borges da Silva nasceu em 24 de outubro de 1936, em Angra do Heroísmo, nos Açores, Portugal, e faleceu em 14 de fevereiro de 2004. Seu livro de estreia, aos 15 anos, foi  O Vendedor de Bichos. Teve uma profícua produção literária que só terminou em 2003 com a coletânea 121 Poemas Escolhidos. É considerado o responsável pela introdução do concretismo poético em Portugal,  mas optou pelo surrealismo. Em 1958, com Rogério Silva, fundou e dirigiu a revista Gávea, onde fez crítica literária e de artes plásticas.

A vida que passa qual navios, cruzando nossos horizontes, levam um pouco de nós, a cada instante, a vida que se esvai, qual água a correr nos rios, nos mares, cargueiros a levar nossos anos, nossos pares, levam vida, levam coisas, até nossa alma carregam, fica a tristeza de saber, que um pouco de nós se foi, a cada instante, no vai e vem da ondas, no giro da hélice, na brisa marinha, fica esse amargo na boca, o gosto da tristeza, da nossa vida que vai, carregada pela correnteza, da passagem, nostalgia!
Por F@bio   

segunda-feira, 31 de março de 2014

Os Estatutos do Homem - Thiago de Mello


(Ato Institucional Permanente)

A Carlos Heitor Cony


Artigo I.
Fica decretado que agora vale a verdade.
que agora vale a vida,
e que de mãos dadas,
trabalharemos todos pela vida verdadeira.

Artigo II.
Fica decretado que todos os dias da semana,
inclusive as terças-feiras mais cinzentas,
têm direito a converter-se em manhãs de domingo.

Artigo III.
Fica decretado que, a partir deste instante,
haverá girassóis em todas as janelas,
que os girassóis terão direito
a abrir-se dentro da sombra;
e que as janelas devem permanecer, o dia inteiro,
abertas para o verde onde cresce a esperança.

Artigo IV.
Fica decretado que o homem
não precisará nunca mais
duvidar do homem.
Que o homem confiará no homem
como a palmeira confia no vento,
como o vento confia no ar,
como o ar confia no campo azul do céu.

Parágrafo Único:
O homem confiará no homem
como um menino confia em outro menino.

Artigo V.
Fica decretado que os homens
estão livres do jugo da mentira.
Nunca mais será preciso usar
a couraça do silêncio
nem a armadura de palavras.
O homem se sentará à mesa
com seu olhar limpo
porque a verdade passará a ser servida
antes da sobremesa.

Artigo VI.
Fica estabelecida, durante dez séculos,
a prática sonhada pelo profeta Isaías,
e o lobo e o cordeiro pastarão juntos
e a comida de ambos terá o mesmo gosto de aurora.

Artigo VII.
Por decreto irrevogável fica estabelecido
o reinado permanente da justiça e da claridade,
e a alegria será uma bandeira generosa
para sempre desfraldada na alma do povo.

Artigo VIII.
Fica decretado que a maior dor
sempre foi e será sempre
não poder dar-se amor a quem se ama
e saber que é a água
que dá à planta o milagre da flor.

Artigo IX.
Fica permitido que o pão de cada dia
tenha no homem o sinal de seu suor.
Mas que sobretudo tenha sempre
o quente sabor da ternura.

Artigo X.
Fica permitido a qualquer pessoa,
a qualquer hora da vida,
o uso do traje branco.

Artigo XI.
Fica decretado, por definição,
que o homem é um animal que ama
e que por isso é belo.
muito mais belo que a estrela da manhã.

Artigo XII.
Decreta-se que nada será obrigado nem proibido.
tudo será permitido,
inclusive brincar com os rinocerontes
e caminhar pelas tardes
com uma imensa begônia na lapela.

Parágrafo único:
Só uma coisa fica proibida:
amar sem amor.

Artigo XIII.
Fica decretado que o dinheiro
não poderá nunca mais comprar
o sol das manhãs vindouras.
Expulso do grande baú do medo,
o dinheiro se transformará em uma espada fraternal
para defender o direito de cantar
e a festa do dia que chegou.

Artigo Final.
Fica proibido o uso da palavra liberdade.
a qual será suprimida dos dicionários
e do pântano enganoso das bocas.
A partir deste instante
a liberdade será algo vivo e transparente
como um fogo ou um rio,
e a sua morada será sempre
o coração do homem.


Santiago do Chile, abril de 1964

Publicado no livro Faz Escuro Mas Eu Canto: Porque a Manhã Vai Chegar (1965).

In: MELLO, Thiago de. Vento geral, 1951/1981: doze livros de poemas. 2.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 198

Obtido de: http://www.escritas.org/pt/poema/12844/os-estatutos-do-homem

Amadeu Thiago de Mello, nascido em Barreirinha, Amazonas, em 1926, é um dos maiores e mais respeitado poeta brasileiro. Seus versos são um canto de liberdade e de fé na humanidade, no homem solidário e transformador.
Preso durante a ditadura militar brasileira (1964-1985), exilou-se no Chile, onde construiu forte víncluo de amizade com outro poeta maior, Pablo Neruda. No exílio, morou na Argentina, Chile, Portugal, França, Alemanha. Com o fim do regime militar, voltou ao Brasil e à sua cidade natal, Barreirinha, onde vive até hoje.
Seu poema mais conhecido, Os Estatutos do Homem, aqui reproduzido, no qual o poeta enaltece os valores simples da natureza humana e o direito inalienável à liberdade. Abaixo, o próprio poeta declama o poema num encontro pelas liberdades democráticas realizado no Circo Voador, no Rio de Janeiro.
Lembro-me do meu tempo de militância política contra a ditadura, encontrar nos versos de Thiago a inspiração para continuar na luta pela liberdade. Lembro-me, também, de um dia, após retornar do exílio, vê-lo na Universidade Federal Fluminense, em Niterói, indo se juntar aos estudantes e declamar seu poema libertador. Fazia escuro ainda, mas cantávamos juntos pela amanhã de um novo dia, onde o sol iluminaria a todos: "Fica decretado que agora vale a verdade/que agora vale a vida,/e que de mãos dadas,/trabalharemos todos pela vida verdadeira."
Precisava marcar essa data de triste lembrança, onde a liberdade foi extirpada, a voz calada e o medo imposto sobre todos, para que saibam que a democracia que temos hoje foi conquistada com o braço forte dos que foram para as ruas e lutaram pela liberdade!!!
Por F@bio