sexta-feira, 5 de abril de 2013

Porto - Alexandre Dáskalos




"Havia nos olhos postos o sentido
de não vencerem distancias.
Calados, mudos, de lábios colados no silêncio
os braços cruzados como quem deseja
mas de braços cruzados.

Os navios chegavam ao porto e partiam.
Os carregadores falavam da gente do mar.
A gente do mar dos que ficam em terra.
As mercadorias seguiam.
Os ventos, dispersos na alma do tempo,
traziam as novas das terras longínquas.

Segredavam-se em noites e dias
a todos os homens
em todos os mares
e em todos os portos
num destino comum.

Os navios chegavam ao porto
e partiam..."


Obtido de http://www.lusofoniapoetica.com/artigos/angola/alexandre-daskalos/porto.html

Alexandre Dáskalos (1924-1961), poeta, nascido em Huambo, Angola, estudou em Lisboa onde ser formou em Medicina Veterinária. Participou ativamente do movimento “Vamos Descobrir Angola” e da Geração da Mensagem, colaborou em O Planalto e em Mensagem (Casa dos Estudantes do Império). Muitos dos seus poemas foram musicados e traduzidos para diversas línguas.

O porto é local seguro, mas os navios partem sempre, levando novidades, gentes, coisas, casos, lembranças, sonhos, desafios, aventuras, bagagens, tristezas, desventuras, saudades...
Por F@bio

sexta-feira, 29 de março de 2013

Vista de Delft - Timothy Brook

"Comecemos com Vista de Delft. Esse é um quadro pouco comum na obra de Vermeer. A maioria dos quadros dele mostra o interior de salas decorado de maneira cativante com objetos discretos da vida familiar do artista. Vista de Delft é bem diferente ... É uma vista específica de Delft que se revela de um ponto mais alto logo ao sul da cidade, do outro lado do Kolk, o porto fluvial de Delft, quando se olha para o norte. Diante da superfície triangular da água em primeiro plano, ficam os portões de Schiedam e Roterdã, que flanqueiam a embocadura do Oude Delft, onde se abre no Kolk. Além dos portões, está a cidade propriamente dita. Nossa atenção é atraída para a torre da Igreja Nova, iluminada pelo sol. A torre está visivelmente sem sinos; como se sabe que os sinos começaram a ser montados em maio de 1660, podemos datar a pintura de pouco antes disso. Há outras torres na linha do horizonte. Para a esquerda, vemos a cúpula acima do portão de Schiedam, depois a torre cônica menor da Cervejaria Papagaio (no século XVI, Delft fora um centro de fabricação de cerveja). E, subindo para se mostrar ao lado dela, vemos a ponta da torre da Igreja Velha. Essa é Delft na primavera de 1660."
(...)

"O primeiro lugar onde procuraremos a segunda porta é o porto. O Kolk recebia barcos que viajavam indo e voltando de Delft pelo canal Schie, que corria para o sul até Schiedam e Roterdã, no Reno. Atracada ao cais no primeiro plano, à esquerda, há uma balsa de passageiros. Com formato comprido e estreito para passar com facilidade pelas comportas dos canais, as balsas como essa, puxadas por cavalos, funcionavam com horário fixo e ligavam Delft a cidades pequenas e grandes do sul da Holanda ... Dos outros dois lados do porto, todos os barcos estão ancorados ou fora de serviço. A única indicação de inquietude é o horizonte recortado de prédios e a sombra lançada pelo imenso cúmulo que pende no alto da pintura. Mas o efeito geral é a perfeita tranquilidade de um dia agradável. Há outros barcos atracados no Kolk: pequenos cargueiros abaixo do Portão de Schiedam e outras quatro balsas de passageiros ao lado do Portão de Roterdã. Entretanto, os dois para os quais quero chamar a atenção são as embarcações de fundo largo atracadas uma à outra no lado direito do quadro. Esse trecho do cais diante do Portão de Roterdã era onde ficava o estaleiro de Delft. Essas duas embarcações estão sem os mastros de popa, e os mastros de proa estão em mau estado, o que indica que estão lá para reforma ou conserto. São navios de três mastros construídos para a pesca de arenque no mar do Norte. Eis outra porta para o mundo do século XVII, mas ela exige alguma explicação para se abrir."

Transcrito de "O Chapéu de Vermeer: o século XVII e a aurora do mundo global" de Timothy Brook. Tradução de Maria Beatriz de Medina. Rio de Janeiro: Record, 2012.

O autor, Timothy Brook, é canadense, professor da Universidade de Oxford e reitor do Saint John's College da Universidade de Colúmbia Britânica. É estudioso da China e autor de vários livros sobre o tema. No livro "O Chapéu de Vermeer" ele elabora um interessante ensaio sobre as telas do pintor holandês. Com base nos elementos encontrados nos quadros, Brook delineia as rotas de comércio do século XVII, indicando os primórdios da globalização.

O curioso do texto de Brook é a profunda investigação pictórica sobre os quadros do pintor holandês Johannes Vermeer (1632 - 1675), muito conhecido pela tela "Moça com brinco de pérola" que deu nome ao livro e ao filme que contam a vida do pintor. O livro de 1999 é de Tracy Chevalier e o filme de 2003 é de Peter Webbe, tendo como protagonista a estonteante atriz Scarlett Johansson que interpreta Griet, a garota com brinco de pérola.
A partir dos elementos pintados por Vermeer em suas obras, Brook aponta as origens dos produtos, estrutura e métodos negociais, rotas de navegação, lutas políticas e econômicas,  que evidenciam que, já naquela época, o comércio em escala mundial descortinava a globalização hoje tão em voga.
Por F@bio

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

Confidência - Mia Couto


"Porque a minha mão infatigável
procura o interior e o avesso
da aparência
porque o tempo em que vivo
morre de ser ontem
e é urgente inventar
outra maneira de navegar
outro rumo outro pulsar
para dar esperança aos portos
que aguardam pensativos"

De: Mia Couto, do poema "Confidência".

Obtido de: http://www.elfikurten.com.br/2012/11/mia-couto-o-afinador-de-silencios.html

Antônio Emílio Leite Couto, mais conhecido por Mia Couto, nasceu em 5 de Julho de 1955 na cidade da Beira em Moçambique. É filho de emigrantes portugueses. Jornalista, escritor, poeta, biólogo  e professor da cátedra de ecologia. Em 1992, foi o responsável pela preservação da reserva natural da Ilha de Inhaca. Tem vários livros publicados e é o autor moçambicano mais traduzido. As suas obras foram traduzidas e publicadas em 24 países. Várias das suas obras têm sido adaptadas ao teatro e cinema. Tem recebido vários prêmios nacionais e internacionais, e comparado a Gabriel Garcia Márquez e Guimarães Rosa. Seu romance Terra sonâmbula foi considerado um dos dez melhores livros africanos do século XX. Em 1999, o autor recebeu o prêmio Vergílio Ferreira pelo conjunto de sua obra e, em 2007 o prêmio União Latina de Literaturas Românicas.

Sou um admirador da poesia e prosa de Mia Couto. Aliás, sua prosa é pura poesia. Li alguns de seus romances, cuja riqueza literária é apaixonante. Sua obra nos leva para a África, sua cultura e suas crenças. O imaginário e lendas populares afloram no texto e nos envolvem. Conhecido como o "escritor da terra", seu texto nos transporta para o solo africano, cheio de realismo fantástico, neologismos e histórias fantasmagóricas. Mia Couto nos leva pelas raízes africanas, num ambiente social rico e ao mesmo tempo envolvente, misturando realidade e sonho.
Por F@bio

Mar - Rui Teixeira Motta

Deserto impróprio,
Quantos Lawrence marinheiros
te amam desigualmente
na tua espantosa igualdade.
Felino no requebro fácil
mas pensado ...
feminino no movimento
nos redondos do rosto
mas homem no olhar devolvido.
Composto de todas as cores
com todas te fazes
no contraste bárbaro com a talhada de melancia
com os olhos azuis de um filho sonhado, por nascer
começando no fim ...
Transportando no terreiro azul da pele
horas e tempos outra vez horas
que secam nos tombadilhos dos navios
que embatem em horizontes
que jazem nas madrugadas
surpreendidas pelo vento.
Inseguro ao leme, segues um barco a palmilhar-te as léguas
Ondas brancas, porque não verdes?
porque não fracas?

Transcrito de "A Poesia É para Comer - Iguarias para o Corpo e para o Espírito", seleção de poemas por Ana Vidal; coordenação editorial por Renata Lima. São Paulo: Babel, 2011.

Rui Teixeira Motta, português, advogado, membro do Conselho de Opinião da RTP - Radio e Televisão de Portugal, é autor do livro "A construção e o canto: Poesia". Lisboa: Editorial Notícias, 1993.

Sempre gostei de contemplar o mar, vê-lo em sua amplidão, parecendo indomável e ao mesmo tempo dócil, misterioso e ao mesmo tempo cristalino. O mar infinito fundindo-se com o céu no horizonte. De movimento permanente a embalar e acalentar. Observar o mar para refletir e meditar. Olhar o mar a refletir o céu.  O mar para amar e temer, o mar para domar e tremer, o mar a desafiar e inspirar...
Por F@bio

sábado, 5 de janeiro de 2013

Soneto da Enseada - Ledo Ivo

SONETO DA ENSEADA

Sou sempre o que está além de mim
como a ponte de Brooklyn ao pôr-do-sol.
Sou o peixe buscado pelo anzol
e o caracol imóvel no jardim.

De mim mesmo me parto, qual navio,
e sou tudo o que vive além de mim:
o barulho da noite e o cheiro de jasmim
que corre entre as estrelas como um rio.

Quem atravessa a ponte logo aprende
que a vida é simplesmente a travessia
entre um aquém e um além que são dois nadas.

Na madrugada escura a luz se acende.
Que luz? De que vigília ou de que dia?
De que barco ancorado na enseada?

Obtido de: http://www.sonetos.com.br/sonetos.php?n=2724


Ledo Ivo está bem presente neste Blog e não poderia deixar de registrar seu falecimento no último dia 23 de dezembro de 2012, aos 88 anos, de infarto. Morreu na encantadora cidade de Sevilha, Espanha, capital da Andaluzia, onde é tão forte a presença moura. Ledo Ivo é considerado um grande artesão da palavra, um poeta inspirado e de uma "acidez cômica", nas palavras do acadêmico Marcos Villaça, seu colega de ABL. Fez a travessia entre o aquém e o  além de que fala no soneto. Partiu de si mesmo, qual navio a desbravar outros mares, outros aléns...
por F@bio

quarta-feira, 10 de outubro de 2012

O Navio de Espelhos - Mario Cesariny


O navio de espelhos
não navega cavalga

Seu mar é a floresta
que lhe serve de nível

Ao crepúsculo espelha
sol e lua nos flancos

Por isso o tempo gosta
de deitar-se com ele

Os armadores não amam
a sua rota clara

(Vista do movimento
dir-se-ia que pára)

Quando chega à cidade
nenhum cais o abriga

O seu porão traz nada
nada leva à partida

Vozes e ar pesado
é tudo o que transporta

(E no mastro espelhado
uma espécie de porta)

Seus dez mil capitães
têm o mesmo rosto

A mesma cinta escura
o mesmo grau e posto

Quando um se revolta
há dez mil insurrectos

(Como os olhos da mosca
reflectem os objectos)

E quando um deles ala
o corpo sobre os mastros
e escruta o mar do fundo

Toda a nave cavalga
(como no espaço os astros)

Do princípio do mundo
até ao fim do mundo




Mário Cesariny de Vasconcelos (1923 – 2006), português, pintor e poeta, considerado o principal representante do surrealismo em Portugal, sendo de se destacar também o seu trabalho de antologista, compilador e polêmico historiador das atividades surrealistas em seu país. Afirma-se que foi o artista português que de forma mais plena assumiu o surrealismo: "não como método ou escola, mas como forma de insurreição permanente, na arte e na vida". Uma característica peculiar da arte de Cesariny é que nela a pintura e a poesia foram sempre aliadas: muitas de suas obras incluem palavras recortadas, conjugações de textos e imagens, e outras formas experimentais. (obtido de http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1rio_Cesariny e http://cesariny.blogs.sapo.pt/)

 

domingo, 7 de outubro de 2012

Apenas um navio - Lidia Maria de Melo


Apenas um navio

No ano de meia quatro,
no meio do estuário
em frente ao porto de Santos,
o porto de minha infância,
Das barcas e das catraias,
dos navios e rebocadores,
Dos trens e dos armazéns,
onde os botos,
às cinco e meia da tarde,
viraram cambalhotas
enquanto as gaivotas
fisgavam peixes no mar,
avistava-se um navio
velho, preto,
ancorado
próximo à Ilha Barnabé,
que os menos informados
confundiam com um navio comum.
Mas eu e muitas crianças,
que ansiavam
para verem os pais
(confinados),
sabíamos que ele era bem mais
que um navio qualquer
e o culpávamos
pela ausência paterna
nos almoços de domingo,
pela angústia disfarçada nos olhos de nossas mães,
pela melancolia que abraçava
todas nossas brincadeiras,
pela vontade de chorar
sem saber bem o porquê.
Nós já sentíamos tudo
e éramos tão crianças!
Só o que não entendíamos
é que o Raul Soares
era apenas um navio
e não tinha culpa de nada.
Não tinha culpa de ter virado
instrumento repressivo
no ano de meia quatro.



Lídia Maria de Melo. Raul Soares: Um navio tatuado em nós. São Paulo / Santos: Pioneira / Universidade Santa Cecília, 1995. Baixado em 07/10/2012 de: http://www.portogente.com.br/texto.php?cod=69655

Alessandro Atanes tem sido uma boa fonte para o Cargueiro. Poeta e jornalista, com ampla pesquisa sobre a literatura santista. No artigo "Golpe: poesia da exceção", Atanes nos apresenta o poema de Lídia Maria de Melo e informa que  “Apenas um navio” foi escrito em 1982,  na fase final da ditadura. O poema evoca a infância da escritora e "remete a um clima inicial de nostalgia, logo cortado pelo trauma, pela chaga no cais, a presença do navio-presídio Raul Soares no estuário, próximo à Ilha Barnabé... No poema de Lídia não é desolação que presenciamos, e sim a incerteza do Estado de Exceção após o golpe".
Navios foram concebidos como meio de transporte de pessoas e cargas, mas alguns tiveram sina terrível, como os negreiros a transportar escravos e os navios presídios, onde muitos foram confinados, maltratados e mortos. O Raul Soares era um navio misto, de carga e passageiros, de origem alemã que foi incorporado ao Lloyd Brasileiro, utilizado na navegação de cabotagem antes de virar prisão, seu triste fim. (vide “Raul Soares – Tempos de Gloria”, de Humberto de Lima Moraes em http://www.portogente.com.br/texto.php?cod=4824)