sábado, 2 de abril de 2016

Navios Iluminados - Ranulpho Prata


“Uma manhã luminosa. Azul por toda parte: nas águas, no céu, nos morros. Vinha do mar um vento fresco, que dava gosto a gente sentir no rosto e nas mãos. As bandeiras dos vapores atracados pareciam contentes, agitando-se, muito vivas, nos ares claros.
A turma 65 foi descarregar açúcar pernambucano, de um  Lloyd branco e preto. O ‘periquito’, pequeno guindaste hidráulico começou a trabalhar, empilhando a sacaria no cais. Os homens aproximaram-se, lerdos, como bois para a carga. O saco pegado por dois trabalhadores era colocado na cabeça de um terceiro, que ‘palmilhava’ nos ares, aparando-o com a mão direita espalmada, o braço firme e em arco, de modo que o peso se fizesse sentir gradualmente, e poupo a pouco, e não de sopetão, num desabamento repentino. Bem ajeitado na cabeça, era levado para dentro do armazém, onde cresciam rumas colossais, sendo possível, às vezes, ‘remontar’, subir escadas para ir atirá-los lá em cima.
Fez-se fila de homens carregados.
Severino aproximou-se para receber a sua carga, a primeira, tão ansiosamente desejada e esperada por tanto tempo. Tinha confiança nos seus músculos. Perto da pilha ouviu um dos companheiros dizer para o outro:
- Olha o novato...
De repente, sem que esperasse, quando viu foi o saco despencar sobre a sua cabeça, dando-lhe uma forte dor na nuca, escorregar-lhe pelas costas e cair no chão estourado. Não soubera palmilhá-lo, não tinha prática. Os dois homens riram um riso ruim.
...
Finda a quizilha, Severino perfilou-se, de novo, junto à pilha, para receber outro saco. Tinha o rosto trancado e enviesado para os companheiros, como a preveni-los, um olhar de rancor. E o saco veio desta vez devagar, pousando lento, na sua cabeça, quase docemente. O pescoço como que se achatou, comprimido, as veias saltaram, encordoando-o; entesaram-se lhe os músculos do tórax, criando relevo debaixo da camiseta rala de algodão. E lá saiu de corpo duro, o peso fazendo com que ele bamboleasse os quadris, como mulher. Penetrou no armazém, cuja porta estava esteirada de pó de serragem para evitar escorregos.
...
Quando às quatro e meia as sirenes puseram ponto final no trabalho, o porão do Lloyd estava limpo, a descarga finda...”
 



Transcrito de “Navios Iluminados”, de Ranulpho Prata, pags. 73 a 78. São Paulo: Scritta, 1996.


Ranulpho Prata, 1896 – 1942, sergipano de Lagarto. Autor também dos romances O triunfo, Dentro da Vida, O Lírio na Torrente, do livro de contos A Longa Estrada e do documentário Lampião. Conforme Alessandro Atanes, em Esquinas do Mundo – Ensaio sobre a História e Literatura a partir do Porto de Santos (São Paulo: Dobra Editorial, 2013), Prata formou-se na Faculdade de Medicina da Universidade do Brasil, no Rio de Janeiro em 1919, após ter iniciado os estudos em Salvador. Exerceu a medicina no interior de Minas Gerais e de São Paulo, Aracajú, Rio de Janeiro e em Mirassol (SP). Em 1927 assume uma vaga de médico radiologista na Santa Casa de Santos e posteriormente atende no Hospital Beneficiência Portuguesa e em seu consultório. Com o tempo, clinica em outras instituições, como o Ambulatório Gafrée e Guinle - família proprietária da Companhia Docas de Santos. Prata fixou-se na cidade portuária até sua morte em 1942.

Navios Iluminados é um romance de forte cunho social, no qual Prata revela sua sensibilidade pelo drama vivido pelos emigrantes nordestinos e pelos trabalhadores portuários. Com seu rigor detalhista e descritivo,  o romance nos apresenta um painel da sociedade santista, expondo a dura realidade vivida pelos trabalhadores das docas. No início do Século XX, o Brasil tinha uma economia baseada na monocultura de exportação, o campo e o porto eram os polos dinâmicos. Nos dois ambientes, os trabalhadores enfrentam condições precárias de trabalho, com baixíssima remuneração, péssimas moradias e saúde precária. Mas o autor vai além da denúncia, com abordagem psico social, crítica de costumes e tradições em uma época em que o Brasil dava os primeiros passos rumo à industrialização e urbanização.

Por F@bio

quarta-feira, 2 de março de 2016

Boa Viagem, Senhor Presidente – Gabriel Garcia Márquez


“...Havia vivido na Martinica todos os dias do exílio, sem outro contato com o exterior que as poucas notícias do jornal oficial, sustentando-se com as aulas de espanhol e latim num liceu oficial e com as traduções que às vezes Aimé Césaire encomendava. O calor era insuportável  em agosto, e ele ficava na rede até o meio-dia, lendo ao arrulho do ventilador no teto do dormitório. Sua mulher cuidava dos pássaros que criava soltos, mesmo nas horas de mais calor, protegendo-se do sol com um chapéu de palha de abas grandes, adornado de morangos artificiais e flores de organdi. Mas quando o calor diminuía era bom tomar a fresca na varanda, ele com a vista fixa no mar até que chegavam as trevas, e ela em sua cadeira de balanço de vime, com o chapéu de aba quebrada e as bijuterias em todos os dedos, vendo passar os navios do mundo. “Esse vai para Puerto Santo”, dizia ela. “Esse quase nem pode andar com a carga de banana-ouro de Puerto Santo”, dizia. Pois achava impossível que passasse um barco que não fosse de sua terra. Ele bancava o surdo, embora no fim ela tenha conseguido esquecer melhor que ele, porque ficou sem memória. Permaneciam assim até que terminavam os crepúsculos fragorosos, e tinham que se refugiar na casa derrotados pelos mosquitos. Num daqueles tantos agostos, enquanto lia o jornal na varanda, o presidente deu um salto de assombro.
- Porra! – disse. – Morri no Estoril!
Sua esposa, levitando no torpor, espantou-se com a notícia. Eram seis linhas na quinta página do jornal que era impresso na virada da esquina, onde publicavam suas traduções ocasionais, e cujo diretor passava para visitá-lo de vez em quando. E agora dizia que tinha morrido no Estoril de Lisboa, balneário e abrigo da decadência europeia, onde nunca havia estado, e talvez o único lugar no mundo onde não teria querido morrer...”

Transcrito do conto “Boa viagem, senhor presidente” em “Doze Contos Peregrinos”, de Gabriel Garcia Márquez (págs. 40 e 41). Tradução de Eric Nepomuceno. Rio do Janeiro: Record, 1992.

Deparei-me com o livro Doze Contos Peregrinos, que ainda não havia lido, na biblioteca do Espaço Tribuna Livre Cultural, em Lumiar - Nova Friburgo (RJ). Lá estava com a minha mulher para passar o reveillon. Frequentamos essa região serrana desde 1981 quando lá acampamos a beira rio, em meio a bananeiras e sapos. Era carnaval e Lumiar só tinha luz no período vespertino, fornecida por um gerador a óleo. Cortada por rios encachoeirados, o lugar é muito bonito e tem um tema musical único, composto por Beto Guedes. O Espaço é um presente do casal Vânia e Luís para Lumiar e região. Dedicado às artes, conta com anfiteatro, biblioteca e café. No local ocorrem as sessões do cineclube Lumiar, acontecem shows, palestras e são encenadas peças teatrais. Fomos para lá com intuito de tomar um café, mas ao passar pela biblioteca, os livros exercem um poder de atração impossível de resistir. Lá estava a primorosa edição de Doze Contos Peregrinos. Pude folhear e pegar emprestado sem qualquer problema, mesmo avisando que não teria como devolver com brevidade. Vânia, de forma tranquila, incentivou-me a levá-lo dizendo que não havia problema, que devolvesse quando voltasse à Lumiar ou  enviasse pelos Correios ou emprestasse para outra pessoa. “O que importa é que o livro seja lido”. E pra que outro fim o autor escreve e o editor edita. Livros são para serem lidos e se a prosa nos encanta, aumenta o prazer de devorar cada palavra. Garcia Márquez, no prólogo, afirma que “o esforço de escrever um conto curto é tão intenso como o de começar um romance. Pois no primeiro parágrafo de um romance é preciso definir tudo: estrutura, tom, estilo, ritmo, longitude e, às vezes, até o caráter de algum personagem. O resto é o prazer de escrever...”. Para o leitor, é prazer de ler.
No conto “Boa viagem, senhor presidente”, Gabo nos traz o caso de um deposto presidente de uma república caribenha, Martinica, que vai se tratar da saúde em Genebra, onde encontra um casal de concidadãos que traçam um plano para se beneficiar da pretensa influência e prestígio do presidente moribundo. Por fim, acabam mesmo se envolvendo afetivamente e ajudando-o a retornar ao seu país, ato que o reanimou, fazendo ressurgir nele o desejo de retornar à vida política.

No livro, Gabo homenageia vários artistas, como Vinicius de Moraes em "Só vim telefonar". No conto em comento, o presidente tem como amigo e provedor Aimé Fernand David Césaire (1913 — 2008). Nascido na Martinica, foi um dos mais importantes poetas surrealistas do mundo e considerado, juntamente com o Presidente senegalês Léopold Sédar Senghor, o ideólogo do conceito de negritude. Além de poeta, Aimé Césaire foi  dramaturgo e ensaísta, com obra marcada pela defesa das raízes africanas.
Por F@bio


sábado, 27 de fevereiro de 2016

Porto - Roldão Rosa

Porto

Roldão Mendes Rosa


"Por que
este amor ao cais
se o que quero
não viaja?

Por que esta espera
no cais?

Por que
este amor aos navios
que apitam e partem
se não quero
partir em nenhum?

Eu descendente de adeuses
vejo lenços que acenam
na paisagem sem lenços.

Ou este porto
pouso de âncoras
timidamente se disfarça
no homem que sou?"


Obtido de: http://www.novomilenio.inf.br/santos/h0335b08.htm


Roldão Mendes Rosa foi escritor, poeta, crítico literário e professor na Faculdade de Comunicação de Santos (Facos) da Unisantos. Nascido em Santos em 25 de fevereiro de 1924, faleceu em 26 de janeiro de 1988. Como informa Alessandro Alberto Atanes Pereira, no site Novo Milênio, uma compilação póstuma da poesia de Roldão foi publicada em 1992 pela editora  Hucitec com o título "Poemas do Não e da Noite", que inclui o poema Porto acima.

Neste blog tenho conseguido postar alguns dos autores que abordaram em sua prosa e poesia a temática da relação entre o morador de cidade de Santos e seu porto como é o caso de Roldão.
Por F@bio