segunda-feira, 26 de outubro de 2020

Meu nome é Ébano - Toninho Vaz

 Meu nome é Ébano - Toninho Vaz

"Merece destaque ... o encontro ... com o poeta Manoel de Barros ... Melodia também fazia versos simples na construção, vasculhando o chão. Ambos tinham dicção poética semelhante, com temáticas ingênuas e desconcertantes pela simplicidade ...

Poesia sempre: E algumas folhas de hortelã ... Depois de homenagear em disco os marginais de sua estima, Luiz Melodia continuava militando na causa dos desvalidos e abandonados pela sorte. Mantinha uma forte cumplicidade com os sacaneados pela sisitema - como ele próprio afirmava. Na virada da década (de 1980), Luiz Melodia estava 'mais São Carlos' do que nunca".

E para Euclides Amaral, pesquisador da MPB, entrevistado por Toninho: "Luiz Melodia é um dos formadores da moderna MPB ... Com sua polivalência, perpetuou-se no cancioneiro popular através de suas composições e também de suas interpretações singulares de clássicos ... Outra característica, pouco comentada em sua obra, é o seu trato com a letra e a poesia nas composições. Ainda que o texto poético tenha, na maioria das vezes, cadência e ritmo próprios, com a música colocada (harmonia, melodia e ritmo), é gerado um terceiro produto - a composição em si -, privilégiando e ressaltando os dois principais códigos da MPB: letra e melodia. Depois, é incorporado o arranjo e, por fim, a interpretação, que leva o produto para outro lado, dependendo do timbre e afinação. Ele era profícuo em versos para as próprias melodias e nos que produzia para violonistas ..., assim como quando musicava letras e poesias ... Luiz Melodia foi mestre em gerar esse terceiro produto, quando compunha (como letrista ou melodista) e quando interpretava outros autores, sendo este o seu legado à MPB." 

Transcrito da biografia "Meu nome é Ébano : a vida e obra de Luiz Melodia", de Toninho Vaz. São Paulo : Tordesilhas, 2020.



Toninho Vaz é jornalista, escritor e biógrafo, que além da obra sobre o Melodia, escreveu biografias do poeta Paulo Leminski, do antropólogo, escritor e politico Darcy Ribeiro, do compositor e cantor Zé Rodrix, dentre outras.  

Na obra em foco, Vaz conta a trajetória do menino do morro de São Carlos, bairro do Estácio no Rio de Janeiro, que conquistou o Brasil com seu talento e músicas. O escritor destaca que a originalidade de Melodia está em sua musicalidade, poética e interpretação.  Toninho ressalta que, apesar da pouca escolaridade, Luiz Melodia tinha um talento natural para letras, como em Juventude Transviada: 

"Lava roupa todo dia, que agonia

Na quebrada da soleira, que chovia

Até sonhar de madrugada, uma moça sem mancada

Uma mulher não deve vacilar

Eu entendo a juventude transviada

E o auxílio luxuoso de um pandeiro

Até sonhar de madrugada, uma moça sem mancada

Uma mulher não deve vacilar

Cada cara representa uma mentira

Nascimento, vida e morte, quem diria

Até sonhar de madrugada, uma moça sem mancada

Uma mulher não deve vacilar

Hoje pode transformar, e o que diria a juventude

Um dia você vai chorar, vejo clara as fantasias."

De uma geração surgida nos tempos sombrios da ditadura militar, Melodia foi vítima contumaz da censura oficial, pois a temática social está muito presente em sua obra. Sobre isto o próprio fala em entrevista de 1996 concedida ao repórter Paulo Vieira do jornal Follha de S. Paulo citada no livro: "Nunca fui ligado nisso, mas decidi falar. Até pelo que está acontecendo. Todos estão vendo: desemprego, política falsa, bala perdida... Essa coisa acaba tendo um lugar só, a desgraça". A realidade brasileira parace que não muda nunca.

Ao traçar a personalidade de Melodia, considerado problemático por ser arredio à ideia de celebridade, o autor não foge de temas delicados como o uso de drogas, alcoolistmo, paternidade involuntária, marginalidade, prisões e episódios de racismo ao longo da vida, ceifada precocemente, do músico.

Melodia deixou um legado musical marcante, numa obra que surge no berço do samba, o morro de São Carlos, e recebe influências da jovem guarda, bossa nova, jazz, blues, rock e outros ritmos que ele soube temperar e harmonizar com letras de sintaxe muito particular. 

Boa leitura.

Por F@bio


sexta-feira, 31 de julho de 2020

Essa Gente - Chico Buarque

"31 de janeiro de 2019
Folheio sem ânimo a política, busco o futebol, o cinema, os classificados, mas no caminho dou com um anúncio fúnebre.
...
2 de julho de 2019
...
A Rebekka não apareceu no dia seguinte, nem no outro, nem no outro, e passada uma semana deixei de ir à casa da Maria Clara, alegando urgência de concluir meu romance. Mentira, porque a escrita, que já vinha rateando havia tempo, agora permanecia em ponto morto. À praia não fui nunca mais, sequer descia à calçada, não ia a lugar algum. Comia qualquer besteira na cozinha e voltava para a cama, dormia, dormia, dormia noite e dia, sonhava com o presidente da República, só tinha pensamentos mórbidos. Tomei enjoo de notícias, desliguei para sempre a televisão e cancelei a assinatura do jornal, que continuavam a me entregar com promessa de descontos e brindes. Vagando morto de sono pelo apartamento, às vezes me pegava a examinar o revólver da Maria Clara, o cano curto, a agulha embutida, o tambor carregado, e foi num dia assim tenebroso que a Rebekka me telefonou."


Trecho do romance Essa Gente, de Chico Buarque, pag. 24 e 170. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

Francisco Buarque de Holanda é muito conhecido como compositor e cantor, com uma vasta obra no cancioneiro brasileiro desde os anos 1960 até os dias de hoje. Sensíveis e contundentes suas letras são obra prima da Música Popular Brasileira. Chico nasceu no Rio de Janeiro em 1944, no seio de uma família de intelectuais, filho de Sergio Buarque de Holanda, destacado historiador, jornalista e critico literário. Chico, além das músicas, também escreveu peças, como Gota D'Água (em parceria com Paulo Pontes) e Ópera do Malandro. A partir de 1974 aventurou-se pela ficção, consagrando-se com Budapeste (2003), Leite Derramado (2009) e O irmão alemão (2014). 

Em Essa gente, Chico Buarque é ousado ao ambientar o romance no período super recente, num Rio de Janeiro partido e repartido, nesses tempos de intolerância e sob um governo que defende a ditadura militar e homenageia torturadores. Um governo que promove a liberação de armas e o desmantelamento das políticas trabalhista, ambiental, cultural e educacional que vinham sendo implementadas pelos diversos governos anteriores, inclusive pelos militares.

Narrado sob a forma de um diário, tendo por protagonista um escritor decadente e em crise financeira e afetiva. A cidade a sua volta não se difere do que se passa em sua vida pessoal, também está em colapso financeiro e afetivo, a cidade partida agora não no social, na econômica e na politica, mas também na afetividade e receptividade do carioca. 

Como muito bem analisa o meu xará e critico literário da Veja, Fábio Altman, na "narrativa de Chico há vasta porção de cinza, é tudo mais sutil, mais lírico, costurado por paixões e suspense policial".

Uma ótima leitura, particularmente nesses tempos isolamento e pandemia (na saúde e na política).
Por F@bio

sexta-feira, 12 de junho de 2020

A menina que roubava livros - Markus Zusak

A menina que roubava livros - Markus Zusak

"UMA VERDADEZINHA
Eu não carrego gadanha nem foice.
Só uso um manto preto com capuz quando faz frio.
E não tenho aquelas feições de caveira que vocês
parecem gostar de me atribuir a distância.
Quer saber a minha verdadeira aparência?
Eu ajudo. Procure um espelho enquanto eu continuo."

Trecho do romance A menina que roubava livros, de Markus Zusak (trad. Vera Ribeiro), pag. 271. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2013.

Markus Zusak é escritor e autor de pelo menos cinco livros. Australiano, nascido em 1973, filho de mãe alemã e pai austríaco, mora em Sidney, Austrália.

A veia mestra do livro é a trajetória da menina adolescente Liesel Meminger contada por uma narradora surpreendente revelada no trecho acima transcrito. Essa, ao perceber que a menina lhe escapa, acaba por afeiçoar-se a ela no lapso de tempo de 1939 a 1943, em plena Segunda Guerra Mundial. Liesel é levada, juntamente com o irmão que falece no caminho, para adoção pela mãe  que por ser comunista é perseguida pelo nazismo e não tem mais como cuidar dos filhos. No enterro do irmão, um coveiro deixa cair um livro que é recolhido pela menina, embora não soubesse ler. Ela é entregue pelas autoridades ao casal pobre que, em princípio, resolve adotar a criança para obter o subsídio governamental.

Cria-se logo uma grande empatia com o pai adotivo que a conforta durante os pesadelos que a assombra. Este, vendo o grande interesse da menina pelo livro, um manual de coveiro, começa a lhe ensinar a ler. O afeto cresce entre os três: a garota adotada e os pais adotivos: um pintor de paredes bonachão, que toca acordeon, e a madrasta grosseira, mas protetora. Ao ver uma montanha de livros incendiados pelos nazistas, ela consegue roubar das chamas mais um livro. E ao ser mandada pela madrasta para entregar e recolher roupa lavada e passada, acaba deparando-se com a biblioteca do prefeito e sua calada esposa, da qual rouba alguns livros sob a vista grossa da mulher do prefeito.

No bairro pobre onde vive, após bater num garoto e jogar futebol, Liesel logo conquista amizades. Mas isto não afasta a presença constante da narradora, em um ambiente lamentavelmente muito semelhante ao atual, de fomento ao ódio e a supremacia ariana, o culto ao mito (Hitler) e à ideologia nazista. Um dia os pais adotivos acolhem um judeu fugitivo e o escondem no porão. Cria-se logo uma amizade entre Liesel e Max, esse jovem judeu que adoece e conta com a solidariedade da garota que lê para ele todas as noites. Quando Max se recupera escreve livros artesanais para ela e acaba tendo que fugir novamente ante ao risco de ser descoberto.

A guerra se intensifica e vira em desfavor da Alemanha que começa a ser fortemente bombardeada. E o bairro pobre não foi poupado, especialmente quando ocorre um ataque surpresa que tudo destrói, não dando tempo das pessoas se refugiarem nos abrigos, exceto Liesel que estava no porão iniciando-se na escrita. A narradora, perplexa diante da violência humana, já não precisa exercer seu ofício, apenas recolhe almas vítimas dos homens e, indignada, diz a menina que roubava livros: "os seres humanos me assombram".

Publicado em 2005, foi um enorme sucesso literário de crítica e vendas. Sua versão cinematográfica igualmente foi um sucesso de crítica e público. Assisti primeiro ao filme, mas isso não prejudicou a leitura, pois o livro é muito bem escrito e contagiante, fazendo com que queiramos lê-lo de uma vez só. Aliás, como está diz o slogan do livro "quando a Morte conta uma história, você deve para para ler".
Boa leitura!
Por F@bio

segunda-feira, 4 de maio de 2020

Baudolino - Umberto Eco

Baudolino - Umberto Eco

"...Quanto a vê-lo ou não, era outra coisa ... o problema da minha vida é que sempre confundi aquilo que via com aquilo que desejava ver..."
"Acontece a muitos..."
"Sim, mas comigo acontecia que mal eu dizia 'vi isto', ou então, 'encontrei essa carta que diz aquilo' (que talvez eu mesmo a tivesse escrito), parecia que os outros não esperassem outra coisa. Sabes, senhor Nicetas, quando se diz uma coisa que se imagina, e os outros dizem que é exatamente assim, acaba-se por acreditar nela, afinal."

Trecho do romance Baudolino, de autoria de Umberto Eco (trad. Marco Lucchesi), pag. 33. Rio de Janeiro: Record, 2001.

Umberto Eco professor, filósofo, escritor, semiólogo, linguista e bibliógrafo italiano, nascido na cidade de Alexandria, no Piemonte, em 1932 e falecido em 2016, aos 64 anos, em Milão.

Na década de 1980 publicou o seu primeiro romance que obteve grande sucesso, “O Nome da Rosa”, adpatado para o cinema em 1986. Outros de seus romances foram "O Pêndulo de Foucault", "A Ilha do Dia Anterior", “O Cemitério de Praga” e “Número Zero”, uma crítica à manipulação jornalistica.

Publicou diversos artigos e ensaios dedicados a temas variados como: a filosofia da linguagem, a estética e a semiótica.

Um pouco antes de falecer, Eco fez uma dura crítica às Redes Sociais que disseminam informações de amplo alcance, dando voz à uma “Legião de imbecis” que outrora falavam apenas em bares sem prejudicar toda uma coletividade.

O romance Baudolino é situado em Constantinopla no ano 1204. Aqui cabe uma nota para dizer que naquele ano, ocorreu o Cerco de Constantinopla ou a Quarta Cruzada. A capital do Império Bizantino está sendo saqueada, perseguição, destruição, mortes e chamas por toda parte.  A destruiu de partes da cidade e sua tomada pelas forças ocidentais e pelos cruzados venezianos. Após a captura, o Império Latino foi fundado e Balduíno de Flandres foi coroado como imperador latino com o nome de Balduíno I de Constantinopla na Basílica de Santa Sofia.

Voltando ao romance, o historiador bizantino, Nicetas Corniates, está em perigo nas mãos de cruéis saqueadores. Inesperadamente um estranho o salva, era o cristão italiano Baudolino.
Nicetas então torna-se uma espécie de confidente de Baudolino, que lhe conta sua história de vida e que como forma de agradecimento, registrará as memórias de Baudolino. Mas a narrativa e suas peripécias revelam um mentiroso "descarado".
Assim, o romance é desenvolvido como uma narrativa em flashback misturando história e ficção, na forma de fantasia e humor.
Baudolino que se apresenta como filho adotivo do imperador Frederico, o Barba Ruiva, do Santo Império Romano-Germânico, relata uma infinidade de aventuras, tramas, batalhas, acordos, cartas e pergaminhos, reinos e terras distantes, seres fantásticos e relíquias belíssimas, numa profusão de inverdades. Umberto Eco inclui no romance não só o seu imaginário fantástico, como as raízes históricas da Itália contemporânea.
Por F@bio

terça-feira, 11 de fevereiro de 2020

Os sonhos não envelhecem- Marcio Borges

"...andava eu próprio meio deprimido e esmorecido, me prometendo fazer mil coisas mas incapaz de sair do lugar, bebendo demais, sufocado dentro de uma revolta que não tinha como exteriorizar diante da gigantesca muralha do medo, dividido entre duas vontades, dois sentimentos contraditórios de missão e predestinação, duas opções abertas naquele momento à frente do jovem homem de 23 anos que eu era: a luta armada e seu consequente purgatório de clandestinidade e tensão ... ou a luta desarmada e seu consequente purgatório de paranóia, sensação de vazio e tédio que vinha a ser a vida de poeta errante, dirigindo shows aqui e fazendo letras acolá, com noitadas nos bares, sessões de ensaio, conversas tensas, especializadas. Pelo  menos não viessem falar de 'mensagens' ...'qual é a mensagem dessa letra?' Como se um poeta pudesse funcionar como cabograma ou sinal de fumaça."

Trecho de "Os sonhos não envelhecem: histórias do Clube da Esquina", de Marcio Borges (pág. 214/215), 9ª Ed. São Paulo : Geração Editorial, 2019.

Márcio Hilton Fragoso Borges nascido em Belo Horizonte (MG) em 1946 no seio de uma prole numerosa, 11 irmãos, do casal Salomão Magalhães Borges, jornalista autodidata, e Maria Fragoso Borges, professora primária. Márcio é o segundo de uma família bastante musical: o pai tocava violão e a mãe cantava em corais e tocava piano. Na adolescência, conheceu Milton Nascimento, com o qual desenvolveu uma grande amizade e parceria musical. Amante do cinema e da literatura tornou-se escritor e letrista de grande sucesso. Atualmente reside na cidade de Belo Horizonte e dedica-se à direção do Museu Clube da Esquina, do qual é idealizador.

O livro "Os Sonhos Não Envelhecem" tem por subtítulo "Histórias do Clube da Esquina" indicando assim o tema da narrativa, ou seja, a trajetória dos músicos e compositores mineiros que ocuparam o cenário musical brasileiro nas décadas de 70 e 80.
O assim denominado "Clube da Esquina" também poderia se chamar "A Turma do Levy", enorme edifício da região central de Belo Horizonte para onde a família Borges se mudou em 1963. Foi no quarto dos homens (Marilton, Márcio, Lô, Yé, Nico e Telo Borges) que Milton se tornou o 12º irmão e onde teve início a parceria com Márcio.
Como relata o autor o edifício "Levy era um mundo à parte dentro da cidade: dezessete andares e mais de 100 apartamentos...Tinha uma galeria em ângulo que ligava a avenida Amazonas à rua Curitiba. Sabe-se lá por qual predestinação, no Levy moraram à mesma época pessoas que mais cedo ou mais tarde vieram a se destacar na cena da cultura brasileira; gente como o escritor Júlio Gomide, o psicanalista Chaim Samuel Katz, o ator Jonas Bloch e suas duas filhas, a cantora da Jovem Guarda Martinha, 'O Queijinho de Mina', o maestro Wagner Tiso..." e  os irmãos Borges.
Certo dia Marcio e Milton vão assistir ao filme Jules e Jim, de François Truffault, ficam tão conectados que assistem três sessões seguidas. Quando põem os pés na rua já era noite, mas algo "ainda maior do que aquela transformação do dia em noite se transformara dentre de nós dois e no sentido inverso, pois que ia do obscuro para o iluminado" conta Borges. Compõem então a sua primeira música em parceria "Paz do amor que vem".
Narrado quase na forma de uma conversa com o leitor, toca em temas como a política, movimento cineclubista, trabalho, movimento estudantil, a vida em família, a música, as amizades e os sentimentos de milhares de jovens subjugados pela brutalidade e imbecilidade do regime ditatorial que se abate sobre o Brasil em 1964 e que irá perdurar por 21 anos. Nesse contexto, Borges aborda o surgimento de um gênio da música brasileiro e internacional, Milton Nascimento, o personagem central da obra.
Segundo o editor da Geração Editorial, Luiz Fernando Emediato, a obra é comovente, sensível, capaz de fazer vibrar e chorar: “Márcio Borges nos surpreende com um livro extraordinário, misto de romance de geração e memórias de um Brasil conturbado e trágico, mas culturalmente muito rico”.  O próprio Márcio conta que escreveu o livro para "cumprir um impulso, esvaziar meus escaninhos e recontar para mim mesmo, com os olhos do tempo e da distância, uma história que de qualquer forma já está contada nas músicas que compus".
Trata-se de um livro para quem gosta de história, de ler, sonhar e conhecer um pouco mais sobre a história do músicos do Clube da Esquina.
Por F@bio

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2020

Hereges - Leonardo Padura

"...convenceu-se das razões pelas quais, mesmo numa terra de liberdade, muitos ... preferiam viver mascarados entre segredos, em vez de límpidos entre verdades expostas.
...
E embora lhe parecesse doloroso, teve de aceitar que se sentia mais protegido por um homem de outra fé do que por muitos da sua. Mais acolhido por um estranho tolerante do que por um irmão de sangue, contaminado de fanatismo, de intransigência e, não podia qualificar de outro modo, tomado de ódio".

Trecho do livro Hereges, de Leonardo Padura (pag. 255). São Paulo : Boitempo, 2015,


Leonardo Padura é escritor, ensaísta, roteirista e jornalista cubano, pós-graduado em Literatura Hispano-Americana. Obteve reconhecimento internacional com sua série de romances policiais estrelada pelo detetive Mario Conde e pelo romance "O homem que amava os cachorros". Recebeu os prêmios Nacional de Literatura de Cuba em 2012, o X Internacional de Novela Histórica de Zaragoza em 2014 e o Princesa de Astúrias em 2015, ambos da Espanha.

O livro é um romance histórico e policial, divido em três partes e protagonistas: Daniel, Elias e Judith que têm em comum um quadro de Rembrandt e a busca pela liberdade. O ponto de partida é histórico: o caso do navio Saint Louis que em 1939 leva 937 judeus da Europa para ilha caribenha, mas Cuba tinha um governo corrupto e simpático ao nazismo. Após dias atracado em Havana, o desembarque não é autorizado e o comandante segue para os Estados Unidos e Canadá, onde também é rejeitado e tem que retornar a Europa. Daniel, apenas com oito anos, que veio antes para Cuba e está aos cuidados de um tio, viu sua família partir naquele navio direto para morte.
A narrativa em flashback leva o filho de Daniel a Cuba, anos mais tarde, a procurar o detetive Conde para descobrir o paradeiro do quadro de Rembrandt que esteve na posse de sua família desde o século XVII.
A segunda parte, protagonizada por Elias Ambrosius, no século XVII, um jovem judeu que se tornou discípulo de Rembrandt e teve seu rosto como modelo para o  famoso quadro de Jesus de Nazaré e é condenado por heresia.
A terceira parte, envolve a investigação pelo detetive Conde do desaparecimento de Judith Torres, uma jovem rebelde de dezoito anos.
(leia mais em http://www.poesianaalma.com.br/2018/04/resenha-na-contramao-do-que-esta-fora.html)
Padura usa todo o seu talento literário na composição dessa obra histórico-policial sustentando a relação dos três personagens com a heresia, a liberdade e o sentido da vida.
Por F@bio

terça-feira, 4 de fevereiro de 2020

Partir - Paula Parisot

"Ainda que conheça a história, não sei, ainda que diga a verdade, invento. As palavras são ficção, não são as coisas, nem os sentimentos, nem o que dizem ser, posso falar de lugares, fatos, pessoas, lembranças, desejos, posso dizer amei, sofri, mas ao dizer apenas recrio o que vi e vivi, transformando a mim e a minha vida num simulacro".

Trecho do romance Partir, de Paula Parisot (pag. 269). São Paulo: Tordesilhas, 2013


Paula Parisot é escritora e artista nascida no Rio de Janeiro que atualmente vive na cidade de São Paulo. Formada em desenho industrial pela PUC-RJ, foi bolsista da New School University de Nova Iorque, onde cursou Belas Artes. É autora do livro de contos "A dama da solidão", que foi finalista do Prêmio Jabuti, e do romance "Gonzos e parafusos", que inspirou uma performance que durou sete dias e seis noites.

Partir tem como protagonista o narrador, um homem que tem como meta chegar ao Alasca por terra. Saindo do Rio de Janeiro, faz uma peregrinação pela América do Sul (Brasil Região Sul, Uruguai, Argentina, Chile, Bolívia, Perú, Equador, Colômbia, Venezuela e novamente Brasil, agora pelo Norte e Nordeste). Mas o que conta para ele é o caminho, pois o destino é só um destino, nada mais. Nessa viagem depara-se com uma América Latina particular, com personagens inusitados e quase todos marginais. Ao partir deixa para trás um afeto inusual por um pato chamado Jack Kerouc, não por acaso o nome do autor de "On the road". Por certo um andarilho que, além do próprio pai, inspirou a autora.
No livro, a viagem também é contada pelos desenhos que a autora fez com carvão, grafite e nanquim. “Desenhar é como escrever através de símbolos e hieróglifos que não sei decifrar muito bem. Algo que me permite falar diretamente do inconsciente”, Paula explica (Fonte: http://portalcaneca.com.br/2013/09/lancamento-partir-de-paula-parisot-2/)

Além de um história envolvente, há passagens bastante bem humoradas no livro, como o encontro do narrador com o pato e o afeto que se cria entre os dois.
Por F@bio 

domingo, 17 de fevereiro de 2019

O Vermelho e o Negro - Stendhal

"...vejo homens que, sem contemplação para o que minha juventude possa merecer de piedade, hão de querer punir em mim e desencorajar para sempre os jovens que, oriundos de uma classe inferior e de qualquer forma oprimidos pela pobreza, têm a felicidade de conseguir uma boa educação e a audácia de imiscuir-se naquilo que o orgulho da gente rica chama 'sociedade'. Este é meu crime, senhores, e ele será punido com tanto maior severidade quanto, na verdade, eu não ser julgado pelos meus pares. Não vejo no banco dos jurados nenhum camponês enriquecido, mas unicamente burgueses indignados..."

Transcrito de O Vermelho e O Negro, de Stendhal, publicado em 1830.

A ação ocorre na França no período da Restauração antes da Revolução de 1830 e trata das tentativas de um jovem plebeu camponês de subir na vida, por meio do seu talento, trabalho duro, engano e hipocrisia. Inicialmente obtém sucesso, mas acaba sendo traído por suas próprias paixões.

Como estamos vivendo tempos obscuros, cabe recordar que após o Golpe de 1964, no Rio Grande do Sul, o General Justino Alves Bastos ordenou a queima de vários livros que considerava subversivos, dentre eles O Vermelho e o Negro. Tempos de pouca luz e muito sangue. Quem lê esse magnífico romance pode concluir que o mundo não mudou muito desde então.

Por F@bio

terça-feira, 11 de setembro de 2018

O Físico - Noah Gordon

"...
Como sempre, a rua Thames estava repleta de animais de carga e estivadores movimentando mercadorias entre os cavernosos armazéns e a floresta de mastros de navios nos cais.
...
Carretéis de risos misturavam-se a fitas de palavras em línguas estrangeiras. Palavrões eram lançados como bençãos afetuosas.
Passou por escravos esfarrapados carregando lingotes de ferro para os navios ancorados. Cachorros latiam para os pobres homens que se esforçavam sob o peso brutal, pérolas de suor brilhavam nas cabeças raspadas. Aspirou o cheiro de alho dos corpos mal lavados e o cheiro metálico do ferro e depois o odor mais agradável de um carrinho de um homem que vendia pastéis de carne. Sua boca encheu-se de água mas não tinha mais do que uma moeda no bolso e filhos famintos em casa.
...
Maior número de navios partia de Londres para a França do que qualquer outro porto da Inglaterra, portanto Rob foi para a sua cidade natal. Durante a viagem, parava para trabalhar, pois queria começar sua aventura com bastante ouro. Quando chegou a Londres, a temporada das viagens estava no fim. O Tâmisa estava repleto de mastros dos navios ancorados. O rei Canuto, fiel à sua origem [dinamarquesa], havia construído uma frota de navios vikings que percorriam os mares como monstros poderosos. Os ameaçadores navios de guerra estavam rodeados de todo tipo de embarcações: largos knorrs, transformados em barcos de pesca de oceano; as galeras trirreme dos ricos; graneleiros quadrados e lentos; navios mercantes de dois mastros, com velas latinas triangulares, os burros de carga das frotas mercantes dos países do Norte. Nenhuma delas tinha carga ou passageiros, pois as geladas tempestades de vento já tinham começado. Nos terríveis seis meses seguintes, em muitas manhãs os borrifos de água salgada iam ficar congelados no Canal e os marinheiros sabiam que se aventurar lá fora, onde o Mar do Norte se encontrava e misturava com o Atlântico, era morrer afogado nas águas congeladas..."

Transcrito do livro O Físico - A epopeia de um médico medieval, de autoria de Noah Gordon, tradução de Aulyde Soares Rodrigues. Rio de Janeiro: Rocco, 1988.

O romance conta a epopeia de um jovem órfão, Rob, que se tornar aprendiz de cirurgião barbeiro que com ele roda pela Inglaterra ensinando o ofício que era um misto de artista, curandeiro e cirurgião. Mas Rob tem um dom quase místico do poder da cura. O dom se torna vocação e a busca por aprimorar os seus conhecimentos na ciência ainda incipiente da medicina na aurora da Idade Média. Obcecado por se contrapor as forças da doença e da morte, Rob abandona o obscurantismo da Europa medieval e ruma para o esplendor do Oriente, onde despontam as descobertas dessa ciência fascinante que teima em desafiar o misticismo e o poder sagrado das religiões.


Noah Gordon é nascido nos Estados Unidos (1926), formado em jornalismo pelo Universidade de Boston (1950) e mestre em literatura e escrita criativa. Seus romances abordam a história da medicina, ética médica e mais recentemente temas relacionados à inquisição e a cultura judaica.
O Físico faz parte de uma trilogia com Xamã e A Escolha da Dra. Cole com os quais foi premiado nos Estados Unidos, Alemanha e Itália.

Situado nos primórdios da era medieval, o romance é rico em detalhes do ambiente humano e geográfico da época. Uma leitura cativante e que nos prende até o fim, em que pese ser uma brochura de quase 600 páginas. Por F@bio

sábado, 25 de agosto de 2018

Tocaia Grande - Jorge Amado

Tocaia Grande
"...
As casas exportadoras, quase todas alemãs e suíças, uma única brasileira - a menor e a  mais ladrona, segundo os maldizentes - travavam uma batalha de manha e de prestígio nas diversas áreas da região cacaueira a fim de ganhar e garantir a freguesia dos fazendeiros. Dos pequenos, facilitando-lhes adiantamentos por conta do cacau a ser entregue, dos grandes oferecendo-lhes comodidades e vantagens. Devido a seu Cícero Moura e, sobretudo, a seu Carlinhos Silva, Koifman & Cia ampliara seus negócios nos limites do rio das Cobras, acaparando boa parte da produção da zona. Com o objetivo de facilitar a vida dos cacauicultores, em especial dos menores, libertando-os da obrigação de entregar o produto na matriz de Ilhéus ou na filial de Itabuna, diminuindo o percurso e a despesa, seu Carlinhos propôs a Kurt Koifman, patrão e ex-parente, o estabelecimento de um depósito em Tocaia Grande, localidade bem situada e de futuro, para ali receber e estocar o cacau..."

Transcrito do romance "Tocaia Grande: a face obscura", de Jorge Amado. Rio de Janeiro: 8ª ed., Record, 1986 (págs. 340/341).
Adicionar legenda


Jorge Amado já na maturidade retoma a temática da região cacaueira, construindo sua narrativa com seu rico tempero: pitadas de sexo, violência, religiosidade, misticismo, lealdade, traição e, sobretudo, denúncia social. O romance trata do desbravamento e conquista de uma das últimas fronteiras do sul da Bahia, luta pela apropriação e derrubada da mata para plantio do cacau no conhecido ciclo do coronelismo. Terras conquistadas pelas mãos de jagunços e trabalhadores serviçais, a base de tramoias e tocaias. A trama envolve a formação de um povoado por pessoas simples e desvalidas que vieram ocupar um trecho esquecido nas margens do rio das Cobras. O nome do lugar - Tocaia Grande - revela sua origem. Tendo como personagem central um jagunço visionário que se torna fazendeiro e capitão, mas que não abandona sua gente. Mas outros personagens principais vão  surgindo ao longo do livro, incluindo muitas mulheres, como Coroca, a velha prostituta que se torna parteira e por fim pistoleira. Amado vai agregando outros personagens formando um amalgama de tipos diversos, como o imigrante árabe, o ex-escravo ferreiro, macumbeiro e ex-amante da madama, os retirantes  nordestinos, o sanfoneiro, as prostitutas, os tropeiros... Neste Brasil desigual e violento, construíram um lugar de paz e harmonia que vivia a margem do mundo oficial até que se torna objeto de cobiça e da "lei" dos poderosos.
Por F@bio

quarta-feira, 6 de junho de 2018

Do amor e outros demônios - Gabriel Garcia Marquez

"Do amor e outros demônios
-Um-

Tinham recebido ordem de não passar do Portal dos Mercadores, mas a criada se aventurou até a ponte levadiça do arrabalde de Getsemaní, atraída pela bulha do porto negreiro, onde leiloavam um carregamento de escravos da Guiné. O barco da Companhia Gaditana de Negros era esperado com alarme havia uma semana, por ter ocorrido a bordo uma mortandade inexplicável. Procurando escondê-la, lançaram ao mar os cadáveres sem lastro. A maré montante os fez flutuar, e eles amanheceram na praia desfigurados pelo inchaço e com uma estranha coloração roxo-avermelhada. Fizeram ancorar o navio fora da baía, temendo que se tratasse do surto de alguma peste africana, até que comprovaram ter havido um envenenamento com frios estragados.
À hora em que o cachorro passou pelo mercado já tinham arrematado a carga sobrevivente, desvalorizada pelo seu péssimo estado de saúde, e tratavam de compensar a perda com uma única abissínia, de sete palmos de altura, untada com melaço em vez do óleo comercial de rigor, e de uma beleza tão perturbadora que parecia mentira. Tinha nariz afilado, o crânio acabaçado, os olhos oblíquos, os dentes intactos e o porte equívoco de um gladiador romano. Não a ferraram no barracão, nem anunciaram sua idade e estado de saúde; puseram-na à venda por sua beleza apenas. O preço que o governador pagou por ela, sem regatear, e à vista, foi seu peso em ouro".


Transcrito de "Do amor e outros demônios", romance de Gabriel Garcia Marquez, tradução de Moacir Werneck de Castro, 23ª ed., pág. 14 e 14. Rio de Janeiro : Record, 2014.

Garcia Marquez, inspirado por uma notícia que lhe veio como repórter, compõe uma história de amor, mistério, feitiçaria, exorcismo,  religiosidade católica e africana, culminando com um processo de Inquisição. O romance é uma "terna evocação de um passado colonial que, de forma pungente, amplia a solidão de um época e das pessoas". O grande escritor colombiano aqui nos brinda com mais uma obra dramática e intensa, que lemos de uma só pegada cativados pelo suspense e vigor da trama.
Do trecho transcrito, a trágica cena do desembarque e comércio de cativos vindos da África. A ficção de Garcia Marquez parece ainda menos dramática do que foi a realidade de pessoas arrancadas de suas terras, famílias e povos, levadas para um mundo desconhecido, para trabalhar e servir aos senhores escravistas que tomavam pra si as terras do Novo Mundo. Infelizmente há quem defenda que não cabe compensar de alguma forma os descentes daqueles que deram sua força de trabalho e vida para construir novos impérios e foram mantidos a ferro e fogo, excluídos de toda a riqueza que geraram com seu trabalho. Finda a escravidão continuaram excluídos, sem moradia, educação, saúde, direitos, mas com todos os deveres que a sociedade lhes impôs. Essa dívida será sempre impagável, mas as cotas podem remediar um pouquinho a exclusão que lhes foi imposta desde sempre.
Por F@bio

terça-feira, 15 de maio de 2018

Café - André Diniz e Leonídio Paulo Ferreira

Almanaque do Carnaval de André Diniz 
"Café
A marchinha 'Tipo sete', cujo tema era o mercado do café, faz alusão ao principal produto de exportação brasileiro no período colonial, depois da cana-de-açúcar. O café veio parar no Brasil devido a um romance proibido. Reza a história que o militar português Francisco de Mello Palheta, ao chegar em missão na Guiana Francesa, logo se apaixonou pela esposa do governador, a linda marquesinha d'Orvillers. Correspondido, Palheta ganhava de presente sementes e mudas de café, que por proibição das autoridades coloniais francesas não podiam sair da região.
No Brasil, o café tornou-se o principal produto de exportação durante a Regência. Décadas depois, sua venda geraria muitos dividendos. O país passou a ter superavit na balança comercial, ou seja, exportava mais do que importava, ficando com lucro nas transações internacionais. Estados Unidos, Inglaterra, França e Alemanha eram nossos principais compradores.
Sustentando toda a política da República Velha, as fazendas de café espalharam-se pelo Rio de Janeiro e por Minas Gerais, mas foi em São Paulo que esse cultivo teve maior produtividade, sobretudo pela qualidade dos plantio. A riqueza oriunda das milhões de sacas do produto vendidas criaram as condições para o desenvolvimento do capitalismo em terras paulistas."





Transcritos do livro "Almanaque do Carnaval: a história do carnaval, o que ouvir, o que ler, onde curtir", pág. 94.  Autor: André Diniz. Rio de Janeiro : Jorge Zahar Ed., 2008.


André Diniz da Silva, nascido em Niterói - RJ,  é escritor, pesquisador de música popular brasileira, historiador, professor e político brasileiro. Graduado em história pela Universidade Federal Fluminense (UFF), mestre pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) e doutorando em geografia pela UFF. André Diniz publicou diversos livros e artigos publicados sobre música popular brasileira, tendo proferido palestras sobre música, história e cultura brasileira em praticamente todos os Estados do país. Professor de ensino superior e ensino médio, e militante político-partidário nos movimentos de juventude, no final dos anos 80, André participou da consolidação do Partido dos Trabalhadores na cidade e da reorganização do Diretório Acadêmico do curso de História da UFF. Foi candidato (derrotado) a vereador em Niterói (1992), assessor político, subsecretário municipal de cultura, vereador e líder da bancada petista na câmara, além de presidente da Comissão de Educação e Cultura. Em 2005, tornou-se presidente do diretório municipal do PT de Niterói. Em março de 2007, licenciou-se da Câmara Municipal para assumir a função de Secretário Municipal de Cultura, que exerceu até abril de 2008. Reeleito vereador, assumiu em 2011 a Chefia da Representação dos Estados do Rio de Janeiro e Espírito Santo, no Ministério da Cultura. Em 2013 assumiu a presidência da Fundação de Artes de Niterói, órgão vinculado à Secretaria Municipal de Cultura.

No Almanaque do Carnaval apresenta não só a história da maior festa popular do país, perpassando pelos diversos gêneros musicais relacionados a essa festa, como o samba, a marchinha, o frevo e o axé. Traçando um vasto panorama cultural e da formação do povo brasileiro, apresenta também breves perfis de compositores e intérpretes, detalhando a história de cada gênero musical, canções e casos pitorescos. Tudo isso contextualizado e ilustrado para deleite dos amantes da música e da literatura.

A marchinha "Tipo Sete" a que se refere André Diniz foi composta por Alberto Ribeiro e Antônio Nássara e imortalizada na voz de Francisco Alves. Segue a letra completa que, como era uma marca das marchinhas, tem um duplo sentido, aludindo aos tipos de café e de garotas (pelo aspecto biológico):

"Tipo Sete

O tipo louro
Vale um tesouro
Mas perto do moreno
É café pequeno

Enquanto eu tiver
Olhos pra enxergar
Boca pra gritar
Hei de ter opinião
Não é qualquer mulher
Que consegue dominar
Meu coração

O tipo escuro
Não dá futuro
É capital parado
Que não rende juro

O tipo claro,
É muito raro,
Mas vende muito pouco,
Porque custa caro".


Sobre o café e outras culturas agrícolas, tráfico e globalização, segue o interessante artigo de Leonídio Paulo Ferreira, publicado no Diário de Notícias (www.dn.pt), em 19/09/2012, com o título "Descubra o galã Palheta que deu o café ao Brasil.
Se o Brasil é o maior produtor mundial de café deve-o a Francisco de Melo Palheta. Nascido em Belém do Pará e filho de um português de Serpa, o militar feito diplomata foi em 1727 até Caiena, na Guiana francesa, para resolver uma disputa fronteiriça. Mas se essa era a sua missão oficial, na realidade o que Palheta procurava era grãos de café, tesouro de origem etíope que nas Américas do início do século XVIII poucos possuíam. Galã antes de época, terá seduzido a mulher do governador da colónia francesa, que na despedida lhe ofereceu um ramo de flores com sementes escondidas.

O episódio que imortalizou Palheta é só nota de rodapé num brilhante livro que a Casa das Letras acaba de publicar. Mas confirma ser o génio dos homens, mais o acaso da história, aquilo que explica o planeta onde vivemos, afinal a tese de 1493 - A Descoberta do Novo Mundo Que Cristóvão Colombo Criou, de Charles C. Mann.

Há muitos portugueses, luso-brasileiros e brasileiros citados ao longo das 600 páginas do livro do jornalista americano. Justíssimo, porque desde a chegada do tabaco à China em 1549, até à febre da borracha na Amazónia do século XIX, passando pela transferência da vila de Mazagão de Marrocos para o Brasil em 1770, as gentes de língua portuguesa competem com as de fala espanhola, inglesa, holandesa e francesa no esforço de globalização que as Descobertas desencadearam.

E não faltam outros episódios surpreendentes no livro de Charles C. Mann, mesmo sem intervenção portuguesa. Como o papel decisivo dos mosquitos (da malária) na derrota dos britânicos na Guerra da Independência Americana ou os fornecedores de ossos para as fábricas de adubo a vasculharem os campos de batalha de Waterloo e de Austerlitz.

Mas voltemos a Palheta, que do seu mérito se sabe tudo (o Brasil colhe por ano três vezes mais café do que o Vietname, segundo país produtor), mas da sua vida pouco, alimentando o mito. Já se escreveu muito sobre a personagem, até existe um documentário luso-brasileiro (claro!) intitulado Sementes de Ouro Negro, mas nunca é de mais homenagear a forma galante como o diplomata serviu a sua causa.

Vasco da Gama usou o terror para se apoderar do comércio das especiarias, ficando com a fama de cortar narizes e orelhas aos indianos. Já o britânico Henry Wickham traiu os brasileiros que o acolheram ao roubar as sementes da seringueira e fazendo assim a árvore-da-borracha expandir-se pelo Sudeste asiático então pertença da coroa inglesa. Mas Palheta (e aqui o mito vale tudo) serviu-se da paixão para benefício económico da sua pátria.

O Brasil é já a sexta potência económica. Produz hoje tudo, de petróleo a aviões, mas a agricultura continua a contar muito para a riqueza nacional. E graças às artes de um luso-brasileiro que viveu há três séculos, hoje esse país com 200 milhões de pessoas é o rei do café. E isso não é uma nota de rodapé. É um marco da globalização."

História, economia, tráfico e trapaça, mito e globalização muito antes do Século XXI. Mas, romance e paixões temperam as narrativas e tornam as histórias muito mais interessantes.
Por F@bio

segunda-feira, 7 de maio de 2018

A Noite da Espera - Milton Hatoum

"Andamos pelas ruas do Macuco até o canal. As catraias estavam encostadas nas margens, a passagem do canal para o estuário formava um meio círculo escuro, parecia a entrada de um túnel tenebroso. Os vagões de carga estavam inertes na linha do trem; mais longe, os guindastes, empilhadeiras e armazéns eram formas quase indistintas. A ausência de marinheiros e de estivadores e a iluminação fraca no canal e no cais adensavam o silêncio no porto do Macuco, como se o mar tivesse secado na noite natalina. Contornamos a outra margem e, na travessia da pequena ponte sobre o canal, vimos dois corpos deitados numa catraia que oscilava na margem."

Transcrito de A Noite da Espera, de Milton Hatoum (pag. 20/21). 1ª ed. São Paulo : Companhia das Letras, 2017.

O romance do escritor Milton Hatoum é o primeiro volume da série O Lugar Mais Sombrio, em que o protagonista, o jovem Martim, após a separação dos genitores, muda-se para Brasilia com o pai, onde trava novas amizades e cursa arquitetura na UnB. As descobertas amorosas, culturais e políticas ocorrem no ambiente pesado dos anos de chumbo da ditadura militar.

Milton Hatoum nasceu em Manaus, morou em Brasilia e São Paulo onde formou-se em arquitetura pela USP. Trabalhou como jornalista e foi professor de história da Arquitetura. Em 1980 viajou como bolsista para a Espanha, onde morou em Madri e Barcelona. Depois passou três anos em Paris, onde estudou literatura comparada na Sorbonne (Paris III).  Professor em universidades dos EUA e autor de quatro romances premiados, sua obra foi traduzida em doze línguas e publicada em catorze países. Atualmente reside em São Paulo e é colunista de importantes jornais de SP e RJ.

Mestre na escrita, neste romance Hatoum transita entre o pessoal e o social, numa Brasilia barrenta e cinzenta, drama muito bem construído com a estrutura semelhante a um diário. Leitura imperdível. Por F@bio

quinta-feira, 8 de fevereiro de 2018

O Mar - Murilo Mendes

O MAR
de Murilo Mendes



Debruço-me sobre o cais de onde não parte navio algum, 
Vendo ouvir o mar esvoaçante. 
O mar não me dá gana de partir, 
O mar me dá gana de ser permanente, definitivo. 
Em oposição ao mesmo mar 
Que se debate e grita num comício perpétuo. 



Dobrando a esquina encontro o tigre. 
Não sou blindado como os navios para afrontá-lo, 
Nem costumo uivar como o vento. 
Fico de longe, fazendo-lhe sinais 
A que o farol vermelho e verde responde. 
Que se passará nos salões da gaivota? 



O mar do outro mundo, o mar regenerado 
Incluirá suaves sirenas 
Que nos atrairão para a vida. 
O mar inocente e reduzido 
Nós lhe traremos flores de coral. 


Publicado no livro Poesia Liberdade de 1947. Transcrito de: http://www.avozdapoesia.com.br/obras_ler.php?obra_id=18243



Murilo Monteiro Mendes, nasceu no dia 13 de maio de 1901, em Juiz Fora (MG). Aos 9 anos diz ter tido uma revelação poética ao assistir a passagem do cometa Halley. Inicia os estudos na cidade natal e continua em Niterói (RJ) no Internato do Colégio Salesiano. Em 1917, uma nova revelação: fugiu do colégio para assistir, no Rio de Janeiro, às apresentações do bailarino Nijinski. Muda-se definitivamente para o Rio em 1920. Os anos de 1924 a 1929 foram dedicados à formação cultural e à luta contra a instabilidade profissional. Foi arquivista no Ministério da Fazenda e funcionário do Banco Mercantil. Nesse período publica poemas em revistas modernistas como "Verde" e "Revista de Antropofagia". Seu primeiro livro, "Poemas", é publicado em 1930. É agraciado com o Prêmio Graça Aranha. Em 1934, ingressa num grupo católico formado por artistas e intelectuais e desenvolve temas religiosos. Torna-se inspetor de ensino em 1935. Em 1940, conhece Maria da Saudade Cortesão, com quem se casaria em 1947. Em 1946, torna-se escrivão da 4ª Vara de Família do Distrito Federal (Rio de Janeiro).  Em 1953, foi convidado para lecionar literatura brasileira em Lisboa. De 1953 a 1955, percorreu diversos países da Europa, divulgando, em conferências, a cultura brasileira. Muda-se para a Itália em 1957, onde se torna professor de Cultura Brasileira na Universidade de Roma. Foi também professor na Universidade de Pisa. Seus livros são publicados por toda a Europa. Em 1972, recebe o prêmio internacional de poesia Etna-Taormina. Vem ao Brasil pela última vez. Murilo Mendes morre em Estoril, Lisboa, no dia 13 de agosto de 1975. (Fontes: http://www.releituras.com/mmendes_menu.asp e https://www.ebiografia.com/murilo_mendes/)

A calmaria do mar é agitada pelos ventos e astros. Na sua imensidão, um murmurar sem fim. Ondas a vagar, ventos a uivar. Navegar é preciso. Mas não há navios no cais. Permanecer também é preciso. O rochedo no seu embate permanente com as ondas. O mar reduzido, regenerado. Vida a ser festejada com um bouquet de flores de coral.
Por F@bio

domingo, 19 de novembro de 2017

Varre-Sai – Os Italianos no Noroeste Fluminense - Rosane Aparecida Bartholazzi

Varre-Sai – Os Italianos no Noroeste Fluminense - Rosane Aparecida Bartholazzi

"... o tropeiro foi o elo rudimentar mais eficiente de um processo que unia a fazenda ao mercado internacional e transformava um sistema irracional e primitivo num protagonista do comércio mundial. No noroeste fluminense, os caminhos traçados pelos tropeiros e sua tropas contribuíram decisivamente para a articulação do comércio entre Minas Gerais e Rio de Janeiro, alcançando lugar de destaque da economia cafeeira.”
“Por ser uma região de fronteira e por estar em processo de ocupação, as redes de comunicação para o transporte de mercadorias eram inexistentes. Dessa forma, os tropeiros tinham um papel fundamental: a eles era confiado o carregamento da produção. Eles faziam a mediação entre o interior e o litoral, entre as zonas produtoras e as litorâneas, constituindo o elemento de ligação da unidade econômica do país.
...
Nas regiões fronteiriças, como é o caso do noroeste [fluminense], especialmente Varre-Sai, a movimentação dos tropeiros era intensa, situação que, segundo a memória oficial do lugar, justifica a denominação do distrito. O nome Varre-Sai estaria associado a um rancho ali existente, onde os tropeiros pernoitavam.
Supostamente, este rancho estaria ligado a algum fazendeiro, pois o pernoite era gratuito. Por não pagarem, deveriam pelo menos manter o local sempre limpo, varrendo a sujeira feita pelos burros antes de sair. Dessa forma teria surgido a denominação popular de ‘Rancho de Varre e Sahe’ e, posteriormente, Varre-Sai."

Transcrito de "Os Italianos no Noroeste Fluminense: estratégias familiares e mobilidade social 1897 – 1950" (p.135 e 136), de Rosane Aparecida Bartholazzi. Rio de Janeiro : Garamond, 2013.

Rosane A. Bartholazzi é natural de Bom Jesus do Itabapoana – RJ. Graduada em Ciências Sociais pela Fundação São José de Itaperuna – RJ, com Mestrado em História Social pela Universidade Severino Sombra – RJ e Doutorado em História pela Universidade Federal Fluminense – UFF, Niterói - RJ. O livro foi fruto da tese de doutorado que contou com a orientação da brilhante professora Ismênia de Lima Martins. Nos meus tempos de UFF tive a honra de ser aluno dela, que não dava aulas mas verdadeiras conferências. Bartholazzi faz um estudo primoroso sobre a emigração italiana para o noroeste fluminense, especialmente Varre-Sai. Nasci lá e também tenho ascendência italiana de bisavós do lado materno. Quando pequeno lembro-me de cruzar com algumas tropas remanescentes nas estradas de terra de então.

As tropas de muares (mulas e burros) foram importantes meios de transporte de cargas diversas favorecendo que as mercadorias fossem levadas dos portos e regiões produtoras até os mais distantes rincões do Brasil e vice-versa. O ouro, extraído em Minas Gerais, e depois o café produzido no Vale do Paraíba do Rio de Janeiro, eram transportados em tropas de mulas até os portos de Paraty e Rio de Janeiro.
Normalmente a Tropa Cargueira de muares era constituída por lotes formados por 8 a 12 animais. Burro no masculino, mula no feminino, estes eram os animais mais resistente para as tropas cargueiras.  Mais forte e resistente do que os equídeos, tanto para carregar cargas pesadas, como para vencer grandes distâncias e trabalhar com a mesma eficiência nos terrenos íngremes e montanhosos. Acomodada em dois cestos ou balaios (ou broaca), um de cada lado, um muar transporta entre 120 e 150 quilos, motivando a preferência por esse tipo de animal para o transporte de carga.  Malotagem eram os apetrechos e arreios necessários de cada animal e acondicionamento da carga

As tropas percorriam, em média, 20 a 22 quilômetros por dia, com uma parada no meio do percurso. Nos trajetos mais longos, as tropas eram compostas por 4 ou 8 lotes de cargueiros, cada lote com 10 muares. Assim, uma grande tropa cargueira poderia ter até 80 animais, transportando um total de 12 toneladas de mercadorias.  Já a comitiva era formada por um madrinheiro, que fazia também as funções de cozinheiro, um peão para cada lote, um arrieiro (um tipo de faz-tudo, que cuidava da saúde dos animais e da manutenção das tralhas), o capataz e o tropeiro patrão.   Quando a tropa tinha cozinheiro e madrinheiro, este último geralmente era sempre um menino.  O madrinheiro ia à frente tocando a égua madrinha com o seu cincerro e em seguida, também equipada de cincerros, vinha a besta dianteira.   Depois em fila indiana, as mulas cargueiras e fechando o lote, a mula culatreira, que além da carga, levava também as tralhas da cozinha.

Além de seu importante papel na economia, o tropeiro teve importância cultural relevante como veiculador de ideias e notícias entre as aldeias e comunidades, numa época em que não existiam estradas no Brasil. Em torno dessa atividade surgiram várias profissões e indústrias.
O tropeiro deveria ser capaz de resolver inúmeros problemas durante a viagem. As longas jornadas exigiam que ele fosse médico, soldado, artesão, caçador, pescador, cozinheiro, veterinário, negociante, mensageiro e agricultor. Tantos ofícios exigiam um arsenal variado de instrumentos e ferramentas.
A profissão de ferrador também foi criada pelas necessidades desse fenômeno econômico-social, consistindo ela em pregar as ferraduras nos animais das tropas e acumulando geralmente a profissão de aveitar ou veterinário.
Nos primeiros anos os pousos eram ao relento, normalmente debaixo de uma árvore, com os tropeiros protegidos por ponches ou cobertores que podiam ser usados como cama ou coberta. Ligal era uma manta grande de couro cru, utilizada para cobrir a carga das mulas, protegendo-a do sol, da chuva e da poeira. Mais tarde, com o aumento e regularidade das tropas cargueiras nos percursos, surgiram os pousos para tropas, constituídos de ranchos abertos e cobertos de sapé, que ofereciam alguma proteção aos peões e à carga. O rancheiro e seu rancho ou alojamento geralmente não cobrava pela hospedagem, cobrando apenas o milho e o pasto consumidos pelos animais, porque os tropeiros conduziam cozinhas próprias.
Ao redor desses pousos surgiram centenas de cidades brasileiras, como é o caso de Varre-Sai, originalmente São Sebastião do Varre e Sahe. Como informa Bartholazzi, a tradição oral do lugar relata que ganhou esse nome pelo fato de ter sido colocado um aviso no pouso solicitando aos tropeiros varrer o local antes de sair.
A lavoura de café continua a ser a principal atividade econômica do município de Varre-Sai, maior produtor de café do Estado do Rio de Janeiro. O italianos que lá chegaram na virada do século XIX para XX deixaram muitos descendentes e tradições. Por não contar com produção de uva, os italianos inovaram e produziram o vinho de jabuticaba, característico do lugar. Essa atividade deu origem ao Festival do Vinho realizado no último final de semana do mês julho de cada ano.
Por F@bio

Leia mais em:
http://caminhosdastropas-com-br.webnode.com/news/entendimento-sobre-o-tropeirismo/
http://caminhopaulistadastropas.webnode.com.br/sobre-nos/
http://www.tropeirosdasgerais.com.br/historia2.htm
http://www.jumentosemuaresonline.com.br/blog/categoria/artigo/o-tropeiro-2014-08-29-2237570000-tropeiro
http://radionajua.com.br/noticia/irati-de-todos-nos/materias/na-trilha-das-tropas/4882/ (também fonte da foto de comitiva)