quarta-feira, 6 de junho de 2018

Do amor e outros demônios - Gabriel Garcia Marquez

"Do amor e outros demônios
-Um-

Tinham recebido ordem de não passar do Portal dos Mercadores, mas a criada se aventurou até a ponte levadiça do arrabalde de Getsemaní, atraída pela bulha do porto negreiro, onde leiloavam um carregamento de escravos da Guiné. O barco da Companhia Gaditana de Negros era esperado com alarme havia uma semana, por ter ocorrido a bordo uma mortandade inexplicável. Procurando escondê-la, lançaram ao mar os cadáveres sem lastro. A maré montante os fez flutuar, e eles amanheceram na praia desfigurados pelo inchaço e com uma estranha coloração roxo-avermelhada. Fizeram ancorar o navio fora da baía, temendo que se tratasse do surto de alguma peste africana, até que comprovaram ter havido um envenenamento com frios estragados.
À hora em que o cachorro passou pelo mercado já tinham arrematado a carga sobrevivente, desvalorizada pelo seu péssimo estado de saúde, e tratavam de compensar a perda com uma única abissínia, de sete palmos de altura, untada com melaço em vez do óleo comercial de rigor, e de uma beleza tão perturbadora que parecia mentira. Tinha nariz afilado, o crânio acabaçado, os olhos oblíquos, os dentes intactos e o porte equívoco de um gladiador romano. Não a ferraram no barracão, nem anunciaram sua idade e estado de saúde; puseram-na à venda por sua beleza apenas. O preço que o governador pagou por ela, sem regatear, e à vista, foi seu peso em ouro".


Transcrito de "Do amor e outros demônios", romance de Gabriel Garcia Marquez, tradução de Moacir Werneck de Castro, 23ª ed., pág. 14 e 14. Rio de Janeiro : Record, 2014.

Garcia Marquez, inspirado por uma notícia que lhe veio como repórter, compõe uma história de amor, mistério, feitiçaria, exorcismo,  religiosidade católica e africana, culminando com um processo de Inquisição. O romance é uma "terna evocação de um passado colonial que, de forma pungente, amplia a solidão de um época e das pessoas". O grande escritor colombiano aqui nos brinda com mais uma obra dramática e intensa, que lemos de uma só pegada cativados pelo suspense e vigor da trama.
Do trecho transcrito, a trágica cena do desembarque e comércio de cativos vindos da África. A ficção de Garcia Marquez parece ainda menos dramática do que foi a realidade de pessoas arrancadas de suas terras, famílias e povos, levadas para um mundo desconhecido, para trabalhar e servir aos senhores escravistas que tomavam pra si as terras do Novo Mundo. Infelizmente há quem defenda que não cabe compensar de alguma forma os descentes daqueles que deram sua força de trabalho e vida para construir novos impérios e foram mantidos a ferro e fogo, excluídos de toda a riqueza que geraram com seu trabalho. Finda a escravidão continuaram excluídos, sem moradia, educação, saúde, direitos, mas com todos os deveres que a sociedade lhes impôs. Essa dívida será sempre impagável, mas as cotas podem remediar um pouquinho a exclusão que lhes foi imposta desde sempre.
Por F@bio

terça-feira, 15 de maio de 2018

Café - André Diniz e Leonídio Paulo Ferreira

Almanaque do Carnaval de André Diniz 
"Café
A marchinha 'Tipo sete', cujo tema era o mercado do café, faz alusão ao principal produto de exportação brasileiro no período colonial, depois da cana-de-açúcar. O café veio parar no Brasil devido a um romance proibido. Reza a história que o militar português Francisco de Mello Palheta, ao chegar em missão na Guiana Francesa, logo se apaixonou pela esposa do governador, a linda marquesinha d'Orvillers. Correspondido, Palheta ganhava de presente sementes e mudas de café, que por proibição das autoridades coloniais francesas não podiam sair da região.
No Brasil, o café tornou-se o principal produto de exportação durante a Regência. Décadas depois, sua venda geraria muitos dividendos. O país passou a ter superavit na balança comercial, ou seja, exportava mais do que importava, ficando com lucro nas transações internacionais. Estados Unidos, Inglaterra, França e Alemanha eram nossos principais compradores.
Sustentando toda a política da República Velha, as fazendas de café espalharam-se pelo Rio de Janeiro e por Minas Gerais, mas foi em São Paulo que esse cultivo teve maior produtividade, sobretudo pela qualidade dos plantio. A riqueza oriunda das milhões de sacas do produto vendidas criaram as condições para o desenvolvimento do capitalismo em terras paulistas."





Transcritos do livro "Almanaque do Carnaval: a história do carnaval, o que ouvir, o que ler, onde curtir", pág. 94.  Autor: André Diniz. Rio de Janeiro : Jorge Zahar Ed., 2008.


André Diniz da Silva, nascido em Niterói - RJ,  é escritor, pesquisador de música popular brasileira, historiador, professor e político brasileiro. Graduado em história pela Universidade Federal Fluminense (UFF), mestre pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) e doutorando em geografia pela UFF. André Diniz publicou diversos livros e artigos publicados sobre música popular brasileira, tendo proferido palestras sobre música, história e cultura brasileira em praticamente todos os Estados do país. Professor de ensino superior e ensino médio, e militante político-partidário nos movimentos de juventude, no final dos anos 80, André participou da consolidação do Partido dos Trabalhadores na cidade e da reorganização do Diretório Acadêmico do curso de História da UFF. Foi candidato (derrotado) a vereador em Niterói (1992), assessor político, subsecretário municipal de cultura, vereador e líder da bancada petista na câmara, além de presidente da Comissão de Educação e Cultura. Em 2005, tornou-se presidente do diretório municipal do PT de Niterói. Em março de 2007, licenciou-se da Câmara Municipal para assumir a função de Secretário Municipal de Cultura, que exerceu até abril de 2008. Reeleito vereador, assumiu em 2011 a Chefia da Representação dos Estados do Rio de Janeiro e Espírito Santo, no Ministério da Cultura. Em 2013 assumiu a presidência da Fundação de Artes de Niterói, órgão vinculado à Secretaria Municipal de Cultura.

No Almanaque do Carnaval apresenta não só a história da maior festa popular do país, perpassando pelos diversos gêneros musicais relacionados a essa festa, como o samba, a marchinha, o frevo e o axé. Traçando um vasto panorama cultural e da formação do povo brasileiro, apresenta também breves perfis de compositores e intérpretes, detalhando a história de cada gênero musical, canções e casos pitorescos. Tudo isso contextualizado e ilustrado para deleite dos amantes da música e da literatura.

A marchinha "Tipo Sete" a que se refere André Diniz foi composta por Alberto Ribeiro e Antônio Nássara e imortalizada na voz de Francisco Alves. Segue a letra completa que, como era uma marca das marchinhas, tem um duplo sentido, aludindo aos tipos de café e de garotas (pelo aspecto biológico):

"Tipo Sete

O tipo louro
Vale um tesouro
Mas perto do moreno
É café pequeno

Enquanto eu tiver
Olhos pra enxergar
Boca pra gritar
Hei de ter opinião
Não é qualquer mulher
Que consegue dominar
Meu coração

O tipo escuro
Não dá futuro
É capital parado
Que não rende juro

O tipo claro,
É muito raro,
Mas vende muito pouco,
Porque custa caro".


Sobre o café e outras culturas agrícolas, tráfico e globalização, segue o interessante artigo de Leonídio Paulo Ferreira, publicado no Diário de Notícias (www.dn.pt), em 19/09/2012, com o título "Descubra o galã Palheta que deu o café ao Brasil.
Se o Brasil é o maior produtor mundial de café deve-o a Francisco de Melo Palheta. Nascido em Belém do Pará e filho de um português de Serpa, o militar feito diplomata foi em 1727 até Caiena, na Guiana francesa, para resolver uma disputa fronteiriça. Mas se essa era a sua missão oficial, na realidade o que Palheta procurava era grãos de café, tesouro de origem etíope que nas Américas do início do século XVIII poucos possuíam. Galã antes de época, terá seduzido a mulher do governador da colónia francesa, que na despedida lhe ofereceu um ramo de flores com sementes escondidas.

O episódio que imortalizou Palheta é só nota de rodapé num brilhante livro que a Casa das Letras acaba de publicar. Mas confirma ser o génio dos homens, mais o acaso da história, aquilo que explica o planeta onde vivemos, afinal a tese de 1493 - A Descoberta do Novo Mundo Que Cristóvão Colombo Criou, de Charles C. Mann.

Há muitos portugueses, luso-brasileiros e brasileiros citados ao longo das 600 páginas do livro do jornalista americano. Justíssimo, porque desde a chegada do tabaco à China em 1549, até à febre da borracha na Amazónia do século XIX, passando pela transferência da vila de Mazagão de Marrocos para o Brasil em 1770, as gentes de língua portuguesa competem com as de fala espanhola, inglesa, holandesa e francesa no esforço de globalização que as Descobertas desencadearam.

E não faltam outros episódios surpreendentes no livro de Charles C. Mann, mesmo sem intervenção portuguesa. Como o papel decisivo dos mosquitos (da malária) na derrota dos britânicos na Guerra da Independência Americana ou os fornecedores de ossos para as fábricas de adubo a vasculharem os campos de batalha de Waterloo e de Austerlitz.

Mas voltemos a Palheta, que do seu mérito se sabe tudo (o Brasil colhe por ano três vezes mais café do que o Vietname, segundo país produtor), mas da sua vida pouco, alimentando o mito. Já se escreveu muito sobre a personagem, até existe um documentário luso-brasileiro (claro!) intitulado Sementes de Ouro Negro, mas nunca é de mais homenagear a forma galante como o diplomata serviu a sua causa.

Vasco da Gama usou o terror para se apoderar do comércio das especiarias, ficando com a fama de cortar narizes e orelhas aos indianos. Já o britânico Henry Wickham traiu os brasileiros que o acolheram ao roubar as sementes da seringueira e fazendo assim a árvore-da-borracha expandir-se pelo Sudeste asiático então pertença da coroa inglesa. Mas Palheta (e aqui o mito vale tudo) serviu-se da paixão para benefício económico da sua pátria.

O Brasil é já a sexta potência económica. Produz hoje tudo, de petróleo a aviões, mas a agricultura continua a contar muito para a riqueza nacional. E graças às artes de um luso-brasileiro que viveu há três séculos, hoje esse país com 200 milhões de pessoas é o rei do café. E isso não é uma nota de rodapé. É um marco da globalização."

História, economia, tráfico e trapaça, mito e globalização muito antes do Século XXI. Mas, romance e paixões temperam as narrativas e tornam as histórias muito mais interessantes.
Por F@bio

segunda-feira, 7 de maio de 2018

A Noite da Espera - Milton Hatoum

"Andamos pelas ruas do Macuco até o canal. As catraias estavam encostadas nas margens, a passagem do canal para o estuário formava um meio círculo escuro, parecia a entrada de um túnel tenebroso. Os vagões de carga estavam inertes na linha do trem; mais longe, os guindastes, empilhadeiras e armazéns eram formas quase indistintas. A ausência de marinheiros e de estivadores e a iluminação fraca no canal e no cais adensavam o silêncio no porto do Macuco, como se o mar tivesse secado na noite natalina. Contornamos a outra margem e, na travessia da pequena ponte sobre o canal, vimos dois corpos deitados numa catraia que oscilava na margem."

Transcrito de A Noite da Espera, de Milton Hatoum (pag. 20/21). 1ª ed. São Paulo : Companhia das Letras, 2017.

O romance do escritor Milton Hatoum é o primeiro volume da série O Lugar Mais Sombrio, em que o protagonista, o jovem Martim, após a separação dos genitores, muda-se para Brasilia com o pai, onde trava novas amizades e cursa arquitetura na UnB. As descobertas amorosas, culturais e políticas ocorrem no ambiente pesado dos anos de chumbo da ditadura militar.

Milton Hatoum nasceu em Manaus, morou em Brasilia e São Paulo onde formou-se em arquitetura pela USP. Trabalhou como jornalista e foi professor de história da Arquitetura. Em 1980 viajou como bolsista para a Espanha, onde morou em Madri e Barcelona. Depois passou três anos em Paris, onde estudou literatura comparada na Sorbonne (Paris III).  Professor em universidades dos EUA e autor de quatro romances premiados, sua obra foi traduzida em doze línguas e publicada em catorze países. Atualmente reside em São Paulo e é colunista de importantes jornais de SP e RJ.

Mestre na escrita, neste romance Hatoum transita entre o pessoal e o social, numa Brasilia barrenta e cinzenta, drama muito bem construído com a estrutura semelhante a um diário. Leitura imperdível. Por F@bio

quinta-feira, 8 de fevereiro de 2018

O Mar - Murilo Mendes

O MAR
de Murilo Mendes



Debruço-me sobre o cais de onde não parte navio algum, 
Vendo ouvir o mar esvoaçante. 
O mar não me dá gana de partir, 
O mar me dá gana de ser permanente, definitivo. 
Em oposição ao mesmo mar 
Que se debate e grita num comício perpétuo. 



Dobrando a esquina encontro o tigre. 
Não sou blindado como os navios para afrontá-lo, 
Nem costumo uivar como o vento. 
Fico de longe, fazendo-lhe sinais 
A que o farol vermelho e verde responde. 
Que se passará nos salões da gaivota? 



O mar do outro mundo, o mar regenerado 
Incluirá suaves sirenas 
Que nos atrairão para a vida. 
O mar inocente e reduzido 
Nós lhe traremos flores de coral. 


Publicado no livro Poesia Liberdade de 1947. Transcrito de: http://www.avozdapoesia.com.br/obras_ler.php?obra_id=18243



Murilo Monteiro Mendes, nasceu no dia 13 de maio de 1901, em Juiz Fora (MG). Aos 9 anos diz ter tido uma revelação poética ao assistir a passagem do cometa Halley. Inicia os estudos na cidade natal e continua em Niterói (RJ) no Internato do Colégio Salesiano. Em 1917, uma nova revelação: fugiu do colégio para assistir, no Rio de Janeiro, às apresentações do bailarino Nijinski. Muda-se definitivamente para o Rio em 1920. Os anos de 1924 a 1929 foram dedicados à formação cultural e à luta contra a instabilidade profissional. Foi arquivista no Ministério da Fazenda e funcionário do Banco Mercantil. Nesse período publica poemas em revistas modernistas como "Verde" e "Revista de Antropofagia". Seu primeiro livro, "Poemas", é publicado em 1930. É agraciado com o Prêmio Graça Aranha. Em 1934, ingressa num grupo católico formado por artistas e intelectuais e desenvolve temas religiosos. Torna-se inspetor de ensino em 1935. Em 1940, conhece Maria da Saudade Cortesão, com quem se casaria em 1947. Em 1946, torna-se escrivão da 4ª Vara de Família do Distrito Federal (Rio de Janeiro).  Em 1953, foi convidado para lecionar literatura brasileira em Lisboa. De 1953 a 1955, percorreu diversos países da Europa, divulgando, em conferências, a cultura brasileira. Muda-se para a Itália em 1957, onde se torna professor de Cultura Brasileira na Universidade de Roma. Foi também professor na Universidade de Pisa. Seus livros são publicados por toda a Europa. Em 1972, recebe o prêmio internacional de poesia Etna-Taormina. Vem ao Brasil pela última vez. Murilo Mendes morre em Estoril, Lisboa, no dia 13 de agosto de 1975. (Fontes: http://www.releituras.com/mmendes_menu.asp e https://www.ebiografia.com/murilo_mendes/)

A calmaria do mar é agitada pelos ventos e astros. Na sua imensidão, um murmurar sem fim. Ondas a vagar, ventos a uivar. Navegar é preciso. Mas não há navios no cais. Permanecer também é preciso. O rochedo no seu embate permanente com as ondas. O mar reduzido, regenerado. Vida a ser festejada com um bouquet de flores de coral.
Por F@bio