segunda-feira, 31 de maio de 2010

A Montanha Mágica - Thomas Mann

"A úmida atmosfera da grande cidade marítima, mescla de vida farta e mercantilismo de envergadura mundial, esse que enchera de prazer a vida dos seus antepassados, Hans Castorp respirava-o com profunda aprovação, saboreando-o como uma coisa natural. Com olfato penetrado pelas emanações da água, da hulha e do alcatrão e pelos acres odores de montões de produtos coloniais, via como no cais do porto os enormes guindastes a vapor imitavam a calma, a inteligência e a gigantesca força dos elefantes a serviço do homem, transportando toneladas de sacos, fardos, caixas, barris e tambores, do bojo de transatlânticos ancorados até os armazéns das docas ou os vagões da via férrea. Via os comerciantes, com impermeáveis amarelos, tal qual o dele próprio, afluíam à Bolsa, por volta do meio-dia, onde, como ele sabia, se jogava alto, e facilmente acontecia que alguém se visse obrigado a distribuir convites apressados para um grande banquete, destinado a salvar-lhe o crédito. Via - e era o campo em que mais tarde se concentraram os seus interesses - a multidão que fervilhava nos estaleiros; via os corpos de mamute, de vapores regressados da Ásia ou da África, do dique seco, altos como torres, com as quilhas e as hélices no ar, escorados em pontaletes grossos como árvores, monstruosos na sua paralisia, invadidos por exércitos de operários que pareciam pigmeus, ocupados em raspar, martelar e pintar; via nos picadeiros cobertos erguerem-se, envoltos numa cerração fumosa, os esqueletos de navios em construção, enquanto engenheiros, com os planos de construção e as tabelas de zonchadura na mão, davam ordens aos capatazes..."


Em "A Montanha Mágica", de Thomas Mann, Romance. Págs. 49 e 50. Tradução de Herbert Caro - 2a. Ed. - Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000.

Thomas Mann é considerado um dos maiores romancistas da Alemanha, filho de pai alemão e mãe brasileira. A Montanha Mágica, escrita logo após a Primeira Guerra Mundial, publicada em 1924, retrata uma Europa enferma, a procura de uma unidade, afetada pelo seu próprio progresso mercantilista, tão bem retratado na cena portuária descrita por Mann.
A Europa não consegue curar sua insanidade no pós-guerra. A doença se alastra, a febre aumenta e explode o termômetro. O sanatório geral de enfermos entra em ebulição e desencadeia a Segunda Guerra Mundial, inicialmente, européia. A doença contagia todo o continente e depois o mundo.
Em A Montanha Mágica, Mann faz uma análise dessa contaminação que se espalha pelo Velho Continente, do doente que só ao se deparar com a morte, irá procurar recuperar sua sanidade.
por F@bio 

sexta-feira, 30 de abril de 2010

Ode Marítima - Fernando Pessoa

Ode marítima

"Sozinho, no cais deserto, a esta manhã de Verão,
Olho pró lado da barra, olho pró Indefinido,
Olho e contenta-me ver,
Pequeno, negro e claro, um paquete entrando.
Vem muito longe, nítido, clássico à sua maneira.
Deixa no ar distante atrás de si a orla vã do seu fumo.
Vem entrando, e a manhã entra com ele, e no rio,
Aqui, acolá, acorda a vida marítima,
Erguem-se velas, avançam rebocadores,
Surgem barcos pequenos detrás dos navios que estão no porto.
Há uma vaga brisa.
Mas a minh'alma está com o que vejo menos.
Com o paquete que entra,
Porque ele está com a Distância, com a Manhã,
Com o sentido marítimo desta Hora,
Com a doçura dolorosa que sobe em mim como uma náusea,
Como um começar a enjoar, mas no espírito.

Olho de longe o paquete, com uma grande independência de alma,
E dentro de mim um volante começa a girar, lentamente.

Os paquetes que entram de manhã na barra
Trazem aos meus olhos consigo
O mistério alegre e triste de quem chega e parte.
Trazem memórias de cais afastados e doutros momentos
Doutro modo da mesma humanidade noutros pontos.
Todo o atracar, todo o largar de navio,
É - sinto-o em mim como o meu sangue –
Inconscientemente simbólico, terrivelmente
Ameaçador de significações metafísicas
Que perturbam em mim quem eu fui...

Ah, todo o cais é uma saudade de pedra!
E quando o navio larga do cais
E se repara de repente que se abriu um espaço
Entre o cais e o navio,
Vem-me, não sei porquê, uma angústia recente,
Uma névoa de sentimentos de tristeza
Que brilha ao sol das minhas angústias relvadas
Como a primeira janela onde a madrugada bate,
E me envolve com uma recordação duma outra pessoa
Que fosse misteriosamente minha.
(...)"

.........

Poesias de Álvaro de Campos. Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1944 (imp. 1993). 1ª publ. in Orpheu, nº2. Lisboa: Abr.-Jun. 1915. Obtido em http://www.revista.agulha.nom.br/facam04.html



Fernando Pessoa o grande poeta da língua portuguesa constrói lindas imagens sobre o cais, o cais de Lisboa, braço de rio, onde chegam navios nostálgicos, marinheiros solitários que singram o mar com suas velas, que levam produtos nos porões de seus enormes barcos, deixando seu rastro em cada porto, sentimentos de tristeza, longas jornadas e despedidas demoradas, nostalgia, os que ficam e os que partem, saudades de pedra!
Por F@bio

sábado, 17 de abril de 2010

Jubiabá - Jorge Amado

"...Então é para o grande cais dos transatlânticos que se dirigem. Vão ver os homens que embarcam à noite, misteriosamente, levando sob o braço sobretudos e embrulhos; vão ver os homens que trabalham na descarga dos navios. São negros e parecem formigas que levassem enormes fardos. Andam curvos como se em vez de sacos de cacau carregassem sob as costas o seu próprio destino desgraçado. E os guindastes, como monstros gigantescos que rissem dos homens, levantam fardos incríveis que ficam balançando no ar. E rangem e gritam e andam sobre trilhos, guiados pelos homens de macacão que estão trepados dentro dos cérebros dos guindastes."

 




Do Livro "Jubiabá", de Jorge Amado, (pág. 76). Romance. São Paulo: Livraria Martins Editora, 27a. Edição, 1971. 


O livro foi escrito por Jorge Amado em 1935, ainda na fase juvenil do autor que tinha somente 23 anos. Trata da trajetória de Antonio Balduíno, menino pobre e favelado, cuja mãe enlouquece e é recolhida a um manicômio, onde acaba falecendo. Uma vizinha, com apoio de Jubiabá, pai-de-santo e guia espiritual da comunidade do Morro do Capa Negro, leva o menino para ser criado por uma família de classe média branca. Mas Balduíno foge após intriga que o incrimina de desejar a filha do dono da casa, Lindinalva. Torna-se um moleque de rua, lidera uma gangue, como os Capitães da Areia. Cresce e se torna boêmio, compositor de sambas de sucesso que vende para um intelectual. Vira boxeador e após uma derrota, foge novamente, indo trabalhar nas plantações de fumo. Lá se envolve em briga e foge de novo. Torna-se ator de circo mambembe, volta à vida boêmia, reencontra Lindinalva que se tornara prostituta após a falência e morte do pai. Lindinalva, que nunca saíra de suas fantasias sexuais, morre e faz um pedido para Balduíno, que cuide de seu filho. Balduíno torna-se estivador e líder de uma greve. A militância sindical passa a ser razão de sua vida.  
A idéia central do livro é mostrar o surgimento de um líder sindical, a partir do lento amadurecimento do protagonista, rumo à consciência política. É um romance popular característico do "realismo socialista", com elementos sensuais e apimentados da  cena baiana que Jorge Amado soube muito bem retratar. O livro podia se chamar Balduíno, mas o autor preferiu homenagear a cultura negra e seus símbolos tão presentes na Bahia, a quem chama "cidade religiosa" referindo-se à Salvador. 

 
No trecho transcrito, é descrito o cenário do Porto de Salvador dos anos 30 do século passado. O porto conta com personagens misteriosos, como nas novelas noir, mas também com trabalhadores sofridos que carregam fardos ou o "próprio destino desgraçado". Mas esses estão sendo  substituídos por guindastes gigantescos, que nos dias de hoje pareceriam brinquedos. Esses monstros "rangem e gritam e andam sobre trilhos, guiados pelos homens de macacão que estão trepados dentro dos cérebros dos guindastes", uma descrição a lá Tempos Modernos de Chaplin


Uma grande curiosidade da obra é o bar "Lanterna dos Afogados", reduto dos estivadores e boêmios, que inspirou a música de Herbert Viana (veja comentário na postagem abaixo).
Por F@bio

quarta-feira, 31 de março de 2010

Lanterna dos Afogados - Herbert Vianna

De: Herbert Vianna


"Quando tá escuro
E ninguém te ouve
Quando chega a noite
E você pode chorar


Há uma luz no túnel
Dos desesperados
Há um cais de porto
Pra quem precisa chegar


Eu estou na lanterna dos afogados
Eu estou te esperando
Vê se não vai demorar


Uma noite longa
Pra uma vida curta
Mas já não me importa
Basta poder te ajudar


E são tantas marcas
Que já fazem parte
Do que eu sou agora
Mas ainda sei me virar


Eu tô na lanterna dos afogados
Eu tô te esperando
Vê se não vai demorar


Uma noite longa
Pra uma vida curta
Mas já não me importa
Basta poder te ajudar
Eu tô na lanterna dos afogados
Eu tô te esperando
Vê se não vai demorar"


Letra obtida em http://vagalume.uol.com.br/paralamas-do-sucesso/lanterna-dos-afogados.html

Herbert provavelmente se inspirou no livro Jubiabá de Jorge Amado ("Jubiabá", romance. São Paulo, ed Martins, 27a. Ed., 1971) onde encontramos nas pags. 77 e 85 o seguinte:
"Certa noite no cais os homens pararam de repente o trabalho e correram para a borda onde o mar batia. Havia uma Lua clara e estrelas tão brilhantes que nem se via a luz da lâmpada de um botequim que se chamava 'Lanterna dos Afogados'...
Quando seu Antônio comprou o 'Lanterna dos Afogados' à viuva de um marinheiro que a montara há muitos anos, ela já tinha esse nome e, em cima da porta ostentava aquela tabuleta mal pintada, na qual uma sereia salva um afogado. O marinheiro que montara o botequim desembarcara um dia de um cargueiro e ancorara ali, naquela velha sala negra do sobrado.
Amara uma mulata escura que fazia arroz-doce para os frequeses e fornecia boia aos trabalhadores do cais do porto.
Porque chamara ao botequim de 'Lanterna dos Afogados' ninguém sabia. Sabiam porém que ele naufragara três vezes e que correra o mundo todo..."

Lanterna metafórica de um Herbert genial compositor e músico. Cais do porto dos desesperados e afogados na solidão, no desamor, na vida sem rumo. O botequim é o porto dos solitários, lugar para afogar as mágoas, ponto de encontro, cais. Mas há alguém que pode ajudar, que te espera no cais, seguro porto, ombro amigo, amor sincero. Vida curta, viajem longa, noite comprida, luz no túnel, farol pra quem precisa chegar, alguém pra te escutar, apoiar. Mas ninguém te ouve, dá vontade de chorar, sozinho no mundo, qual cargueiro em pleno mar. Mas a luz tênue do farol aponta o caminho, porisso não vá demorar, pois alguém está te esperando, iluminando o caminho,  candeiro na noite escura, estrela guia. Lanterna. Viva Herbert Paralama Vianna!
por F@bio 

terça-feira, 2 de março de 2010

Cais do porto - Capiba

"Cais do porto,
Eu estou sempre aqui
Seja noite estrelada ou não
Cais do porto,
Quero ver se encontro meu bem
Que daqui certo dia partiu
Não sei se sozinho ou com mais alguém
Cais do porto,
Tenha pena de mim
Já é dia, nem vestígio sequer
Não será, cais do porto, aquela luzinha?
Que lá longe apaga e acende
Fazendo um sinal, quem sabe, pra mim."


Letra obtida do site www.muitamusicacom.br e foto da contra-capa do disco "Viva Capiba" disponível no site http://www.guiapernambuco.com.br/persona/capiba.shtml


Capiba ou Lourenço da Fonseca Barbosa, um grande compositor pernambucando, muita musica, muitos frevos para alegrar nossas vidas, encantar nossos corações e carnavais!
O cais é frequentemente cantado em versos: saudade, um amor que se foi, um barco que partiu, a luz tênue, cascos e bandeiras, estivadores, marujos, malandros, prostitutas.
O cais, o porto, seguro? 
Docas escuras, sujas, guindastes, pó, poeira, fuligem. 
Lugar sinistro, noir, falcão maltês, vapor e vapores, fumo, fumaça...
Ponto de saída e de chegada, 
Âncora de vidas par-tidas!
por F@bio

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Rio das Flores - Miguel Sousa Tavares

"-Nós não vamos fazer negócios com Hitler. Acabaram-se as exportações para a Alemanha. Vamos fazer negócio com as nações que entrarem em guerra contra a Alemanha e com as que ficarem de fora. Com a Inglaterra e a França, seguramente.
- Com Portugal...
- Não sei onde é que Portugal ficará: se com a Inglaterra, se com Hitler, se em lado nenhum. Mas se ficar com os nazis, também não faremos negócios com Portugal.
   Aguinaldo olhou-o, impressionado: as coisas iam mudar. Será que para melhor?
- Bem, então, doutor, temos mesmo que pensar, não é?
- O que precisará uma Europa em guerra, Aguinaldo?
- Armas...
- Sim, armas, claro. Mas nem o Brasil as produz nem nós somos traficantes de armas. Esqueça tudo o que não é produzido aqui ou que não é essencial. O café, o açúcar, as frutas tropicais, nada disso é essencial. Se, de facto, houver guerra, como eu creio, a devastação na Europa vai ser tamanha, que as pessoas vão lutar desesperadamente apenas para viver com o essencial. E o que será então o essencial? Remédios e aparelhos clínicos para tratar os feridos, mas isso o Brasil não produz. Navios, comboios etc., é igual. O que resta?
   Aguinaldo coçou a cabeça preocupado: alguma coisa tinha de restar ou a Atlântica desapareceria nos escombros da anunciada guerra européia.
- Resta comida, senhor Aguinaldo!
- Sim, a comida. Imagine a Alemanha, a França, a Inglaterra, todos envolvidos na guerra, com todos os homens mobilizados e, se calhar, também as mulheres. Quem vai tratar da agricultura?
  Aguinaldo assentiu, impressionado com a inteligência do patrão.
- Comida, é claro! Como não pensei nisso!
- O Brasil não produz cereais como o trigo, o arroz, o milho, em quantidades suficientes e preços concorrenciais para podermos exportar. Mas produz outras coisas.
- Produz outras coisas... - Aguinaldo esforçava-se para se lembrar de alguma, antes que Diogo o dissesse, mas não conseguiu.
- Feijão e carne, senhor Aguinaldo! Feijão e carne.
- Feijão e carne! Caramba, feijão e carne!
  O rosto de Aguinaldo Baptista brilhava agora de felicidade. Feijão e carne, quem diria? Bendita guerra européia que aí vinha.
...
   Terminado o pequeno-almoço, descia até à porta do hotel, onde, às oito e trinta em ponto, 'seu' Aguinaldo vinha apanhá-lo para levar aos escritórios da Atlântica no centro, no Chevrolet azul-escuro que ele comprara para o serviço da empresa e que fizera Aguinaldo Baptista acreditar definitivamente que, agora sim, agora a firma estava em fase de investimento e expansão. E estava: Diogo pusera ordem e estratégia em todos os setores do negócio - fornecedores, armazenamento de produtos, fretação de carga em navios, expedição alfandegária, contratos e pagamentos dos clientes no destino, relações com bancos, escrituração e contabilidade. Cada empregado tinha agora tarefas claras estabelecidas e sabia exactamente o que fazer e que resultados se esperavam de si. O negócio de exportação de 'gado de corte', como diziam os brasileiros, era agora a grande aposta de Diogo. Para isso, era absolutamente indispensável que os fornecedores não falhassem - nem no prazo, nem na quantidade, nem no preço, nem na qualidade."

Transcrito de "Rio das Flores" (pág. 342 a 344 e 394 a 395). Romance. Autor: Miguel Sousa Tavares. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

Em Rio das Flores, Miguel Sousa Tavares constrói um romance que retrata o interior dum Portugal republicano, no entre-guerras, e o antagonismo das opções políticas e de vida de dois irmãos fazendeiros. Fatos reais misturam-se à saga ficcional de uma família de fazendeiros alentejanos, numa misto de jornalísmo e ficção. Após desentender-se com o irmão e com os rumos políticos adotados pelo regime de Salazar, Diogo muda-se para o Rio de Janeiro, em plena ditadura Vargas, para resgatar a empresa de exportação que havia constituído com um sócio alemão que tivera que retornar à Alemanha nazista. Ao chegar ao Rio, Diogo encanta-se com a cidade e exercíta com sucesso sua habilidade para os negócios, a exemplo do que fizeram os inúmeros portugueses que pra cá vieram. Uma impressionante leva de lusos que emigraram para o Brasil e "que agora procuravam na antiga colónia um futuro negado na pátria exangue que haviam deixado para trás"(pág. 376). Na sequência de Equador, Sousa Tavares conta um pouco da história de Portugal e do Brasil, na qual o comércio exterior aparece mais uma vez e acima apresento um breve recorte. Curioso é perceber que no texto ele inverte a situação presente nas piadas contadas em nosso país, colocando o brasileiro como o parvo ou pouco inteligente. 
por F@bio

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

Poema ao Cais e aos Navios - J.G. de Araújo Jorge

"Às vezes gosto de flanar à toa pela beira dos cais,
nas horas de descanso ou pela noite a dentro
quando tudo está em paz...
- nos cais onde há guindastes curvos, pensativos,
e navios parados que descansam, quietos,
e navios que partem, fumegantes, vivos...

(Onde há navios parados que descansam, quietos
sobre o mar,
- deixando nas chaminés suaves restos de fumo
como as volutas azuis de um cigarro
abandonado a se queimar...

Navios dionisíacos que partem num desafio
em cada viagem,
indiferentes aos ventos que cantam nos conveses
e ao choque das procelas,
- navios que lá se vão, dias, semanas e meses,
herdeiros das tradições de arrojo e de coragem
que vem de muito longe no bojo das caravelas!

E guindastes monstruosos de esqueletos de aço
recurvos e humildes diante do mar,
- parecem multidões de escravos, em fila,
e que dormissem de pé
cansados de trabalhar...)
..............
Há uma floresta flutuante ao longo de todo o cais,
floresta de mastros nus, de velas enroladas
no bojo dos veleiros que flutuam em paz
e parecem mortos...
- suas sombras se alongam, em fantásticas sombras
nas águas sujas e oleosas, nas águas tristes dos portos...

Que coisas terão visto os olhos daquele marujo
displicente
a enrolar grossos cabos no convés?
- que sóis terão tostado a sua fronte de cobre?
- que chãos terão pisado os seus enormes pés?

(... esse estranho marujo de enormes pés inchados
e um ar paradoxal
de rudeza e abstração,
é preciso que o declare:
- parece que fugiu de algum painel mural
de Portinari...)

Mania essa que eu tenho de andar atrás dos navios
procurando em suas bandeiras multicores
as suas almas distantes,
- almas que vem e vão, nos olhos dos marinheiros
itinerantes!
- e às vezes ficam conosco, nos olhos nostálgicos
dos imigrantes!

Mania essa que eu tenho de acompanhar os navios
como as gaivotas,
elas no ar, em revoadas que se vão deixando
para trás,
- eu, a imaginar seus destinos e rotas
perambulando sem rumo à beira dos longos cais!

Oh, a inveja que tenho desses rudes marujos
de olhos cismadores
que têm os braços tatuados de lembranças efêmeras
em figuras grotescas e infelizes,
- ob, a inveja dos marinheiros e dos pescadores,
que lá se vão mar além, a alma aberta nas quilhas!
aventureiros e sonhadores
de todos os países!
..............
Navio que vens de longe, de que lugares vens?
Navio que vais pra longe, afinal pra onde vais?
- Leva a mensagem de minha alma a um prisioneiro qualquer
que perambule à toa, tal como eu, a sonhar
à beira de outros cais!

   (Poema de J. G. de Araujo Jorge
extraído do livro Cânticos - 1941)


Obtido em http://www.jgaraujo.com.br/index.html


José Guilherme de Araujo Jorge (1914 - 1987), nasceu no Acre, mas fez carreira no Rio de Janeiro onde militou na política estudantil, no jornalismo, nas letras, no rádio e na política (foi deputado federal pela Guanabara). Conhecido como Poeta do Povo e da Mocidade. No "Poema ao Cais e aos Navios" aborda com grande lirismo o ambiente do cais e da navegação, naus de bandeiras coloridas que vão levando cargas e marujos pelo mundo, liberando seu fumo no ar, rasgando mares, flutuando oceanos, sonhos que a brisa faz perambular pelos portos do mundo, flâmulas flutuantes a procura de um cais. 
por F@bio