sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

Poema ao Cais e aos Navios - J.G. de Araújo Jorge

"Às vezes gosto de flanar à toa pela beira dos cais,
nas horas de descanso ou pela noite a dentro
quando tudo está em paz...
- nos cais onde há guindastes curvos, pensativos,
e navios parados que descansam, quietos,
e navios que partem, fumegantes, vivos...

(Onde há navios parados que descansam, quietos
sobre o mar,
- deixando nas chaminés suaves restos de fumo
como as volutas azuis de um cigarro
abandonado a se queimar...

Navios dionisíacos que partem num desafio
em cada viagem,
indiferentes aos ventos que cantam nos conveses
e ao choque das procelas,
- navios que lá se vão, dias, semanas e meses,
herdeiros das tradições de arrojo e de coragem
que vem de muito longe no bojo das caravelas!

E guindastes monstruosos de esqueletos de aço
recurvos e humildes diante do mar,
- parecem multidões de escravos, em fila,
e que dormissem de pé
cansados de trabalhar...)
..............
Há uma floresta flutuante ao longo de todo o cais,
floresta de mastros nus, de velas enroladas
no bojo dos veleiros que flutuam em paz
e parecem mortos...
- suas sombras se alongam, em fantásticas sombras
nas águas sujas e oleosas, nas águas tristes dos portos...

Que coisas terão visto os olhos daquele marujo
displicente
a enrolar grossos cabos no convés?
- que sóis terão tostado a sua fronte de cobre?
- que chãos terão pisado os seus enormes pés?

(... esse estranho marujo de enormes pés inchados
e um ar paradoxal
de rudeza e abstração,
é preciso que o declare:
- parece que fugiu de algum painel mural
de Portinari...)

Mania essa que eu tenho de andar atrás dos navios
procurando em suas bandeiras multicores
as suas almas distantes,
- almas que vem e vão, nos olhos dos marinheiros
itinerantes!
- e às vezes ficam conosco, nos olhos nostálgicos
dos imigrantes!

Mania essa que eu tenho de acompanhar os navios
como as gaivotas,
elas no ar, em revoadas que se vão deixando
para trás,
- eu, a imaginar seus destinos e rotas
perambulando sem rumo à beira dos longos cais!

Oh, a inveja que tenho desses rudes marujos
de olhos cismadores
que têm os braços tatuados de lembranças efêmeras
em figuras grotescas e infelizes,
- ob, a inveja dos marinheiros e dos pescadores,
que lá se vão mar além, a alma aberta nas quilhas!
aventureiros e sonhadores
de todos os países!
..............
Navio que vens de longe, de que lugares vens?
Navio que vais pra longe, afinal pra onde vais?
- Leva a mensagem de minha alma a um prisioneiro qualquer
que perambule à toa, tal como eu, a sonhar
à beira de outros cais!

   (Poema de J. G. de Araujo Jorge
extraído do livro Cânticos - 1941)


Obtido em http://www.jgaraujo.com.br/index.html


José Guilherme de Araujo Jorge (1914 - 1987), nasceu no Acre, mas fez carreira no Rio de Janeiro onde militou na política estudantil, no jornalismo, nas letras, no rádio e na política (foi deputado federal pela Guanabara). Conhecido como Poeta do Povo e da Mocidade. No "Poema ao Cais e aos Navios" aborda com grande lirismo o ambiente do cais e da navegação, naus de bandeiras coloridas que vão levando cargas e marujos pelo mundo, liberando seu fumo no ar, rasgando mares, flutuando oceanos, sonhos que a brisa faz perambular pelos portos do mundo, flâmulas flutuantes a procura de um cais. 
por F@bio 

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

Cais - Milton Nascimento

"Cais
Milton Nascimento e Ronaldo Bastos

Para quem quer se soltar invento o cais
Invento mais que a solidão me dá
Invento lua nova a clarear
Invento o amor e sei a dor de me lançar
Eu queria ser feliz
Invento o mar
Invento em mim o sonhador
Para quem quer me seguir eu quero mais
Tenho o caminho do que sempre quis
E um saveiro pronto pra partir
Invento o cais
E sei a vez de me lançar".

Esta canção remete ao cais, ao mar, ao se lançar, portanto não podia faltar no Cargueiro de letras. Criação inspirada de Milton e Ronaldo Bastos. Uma interpretação magistral de Milton, com Tulio Mourão e outros. Veja ainda Milton tocando teclado. Bons tempos do Clube da Esquina e do Festival de Jazz de Montreal. Gravação rara e sensacional, verdadeira obra prima.  Show!
por F@bio

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

O Rio de Janeiro - Laurentino Gomes

"A cidade que acolheu a família real portuguesa, em 1808, ... Era uma espécie de esquina do mundo, na qual praticamente todos os navios que partiam da Europa e dos Estados Unidos paravam antes de seguir para a Ásia, a África e as terras recém-descobertas do Pacífico Sul. Protegidas do vento e das tempestades pelas montanhas, as águas calmas da Baía de Guanabara serviam como abrigo ideal para reparo das embarcações e reabastecimento de água potável, charque, açúcar, cachaça, tabaco e lenha. 'Nenhum porto colonial no mundo está tão bem localizado para o comércio geral quanto o do Rio de Janeiro', ponderou o viajante John Mawe. 'Ele goza, mais do que qualquer outro, de iguais facilidades de intercâmbio com a Europa, a América, a África, as Índias Orientais e as ilhas dos Mares do Sul, e parece ter sido criado pela natureza para constituir o grande elo de união entre o comércio dessas grandes regiões do globo'."


Transcrito de "1808: como uma rainha louca, um príncipe medroso e uma corte corrupta enganaram Napoleão e mudaram a história de Portugal e do Brasil" (pág. 153), de Laurentino Gomes. História. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2007.

Imagem "Vista do Rio de Janeiro defronte à Igreja do Mosteiro de São Bento" entre 1820 e 1825, de autoria de Johann Moritz Rugendas obtido de http://pt.wikipedia.org/wiki/Rio_de_Janeiro_(cidade)


Laurentino Gomes, jornalista paranaense, escreve com grande maestria um livro denso e rico de informações sobre a vinda da Família Real Portuguesa para o Brasilo, a parte mais rica do reino. O texto é fluido e retrata com grande riqueza de detalhes o contexto geopolítico da vinda da corte para os trópicos. Mostra que o ato foi ousado e arriscado, ainda que com incentivo e proteção inglesa. A vinda da Família Real propiciou grande transformação da colônia e do Rio de Janeiro em particular.
por F@bio

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Aqui nos Encontramos - John Berger

"No domingo seguinte, eu estava no bairro da Baixa, atravessando a imensa praça do Comércio. A Baixa é o único bairro da cidade velha que é plano e baixo. Rodeado em três dos seus lados pelas famosas colinas, o quarto é o estuário do Tejo, conhecido como mar de Palha, porque suas águas, vistas sob certa luz, têm um reflexo dourado. Durante o século quinze, das suas plataformas de embarque e desembarque, os navegadores de Lisboa, comerciantes e mercadores de escravos partiram para a África, para o Oriente e, mais tarde, para o Brasil. Lisboa era na época a capital mais rica da Europa, negociando tudo que desafiasse o Atlântico: ouro, escravos do Congo, sedas, diamantes, especiarias."


Transcrito de "Lisboa" em "Aqui nos encontramos". Romance e narrativa ficcional de John Berger. Rio de Janeiro: Rocco, 2008.
Foto obtida de www.vertigomagazine.co.uk



Berger é considerado um dos mais importantes romancistas ingleses. De novo temos um texto sobre as epopéias portuguesas e a importância de Lisboa no Séc. XV, como centro de comércio, especialmente de produtos vindos de outros continentes. A riqueza de Portugal advinha do domínio dos mares. Tráfico de escravos e comércio internacional de mercadorias vindas da Ásia, África e Américas. Na linda construção de Berger: "negociando tudo que desafiasse o Atlântico."

sábado, 9 de janeiro de 2010

Mar português - Fernando Pessoa

"Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!
Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu."

 
Em "Fernando Pessoa: Antologia Poética" (pág. 31). Organizada por Álvaro Cardoso Gomes. Poesia. São Paulo: Moderna, 1994.
Retrato de Fernando Pessoa por Almada Ribeiro em 1954 obtido de: http://www.ciencias.com.br/pagina_bedaque/pessoa/FP.htm
Desenho de nau de três mastros obtido de http://www.popa.com.br/docs/cronicas/navios-portugueses.htm

Considerado o maior poeta da língua portuguesa, Fernando Pessoa, nascido em 1888 e que veio a morrer precocemente em 1935, foi uma figura ímpar do modernismo em Portugal. Aliás, Pessoa na verdade não foi um, mas vários, pois adotou os heterônimos de Álvaro Campos, Alberto Caieiro e Ricardo Reis. Em Mar Português, Pessoa destaca o feito épico das navegações e responde a uma pergunta bastante relevante para seu tempo: "tantas perdas teriam valido a pena?" E responde com o seu versejar de poeta: "tudo vale a pena se a alma não é pequena".
O pionerismo ibérico permitiu que fosse dado grande impulso ao comércio exterior no Séc. XVI. Geoffrey Blainey no livro "Uma Breve Histórida do Mundo" (2a. Edição, São Paulo: Editora Fundamento Educacional, 2008) destaca dois aspectos muito relevantes das navegações: primeiro, as navegações alteraram a modalidade de transporte de marcadorias entre o oriente e o ocidente, suplantando a rota da seda ("Durante séculos, uma infinidade de produtos e plantas asiáticas atravessou toda a extensão da Ásia por terra, mas agora tudo fluía pelas rotas do mar"); e, em segundo, ampliaram de forma espetacular as trocas entre os continentes ("Nunca antes na história do mundo haviam sido transferidas tantas plantas valiosas de um continente ao outro").
Blainey (pág. 203) salienta que Portugal e Espanha foram pioneiros porque eram fortes nas navegações, mas depois foram suplantados por Inglaterra, Holanda e França. Diversos produtos agrícolas, minerais, manufaturados e animais foram levados para a Europa e sua valorização estimulou o comércio exterior e o surgimento de empresas especializadas em transporte naval e comércio internacional (as companhias das índias). Milho, batata, pau-brasil, tomate, ouro, cacau, prata, peru, abacaxi, tabaco, gemas vieram das Américas. Porcelana, almíscar, pimenta, cravo foram trazidos da Ásia. Indigo, metais, diamantes da África. Muitos pacotes, caixas, barris, ânforas chegavam aos armazéns europeus e eram considerados tão preciosos quanto o ouro.
Blainey (pág. 210) observa que as"viagens de Colombo, Vasco da Gama e outros navegadores europeus pelos oceanos Atlântico, Índico e Pacífico promoveram uma revolução na agricultura do mundo. Junto com as cargas acondicionadas nos conveses ou trancadas no porão, havia pequenas remessas de sementes e mudas que eram eventualmente transportadas por uma série de acontecimentos premeditados ou casuais para todos os continentes. O café, o algodão, o açúcar e o índigo foram para as Américas para serem cultivados em larga escala, com suas colheitas sendo exportadas para a Europa."
Por
F@bio

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

Equador - Miguel Sousa Tavares

"O Zaire fundeou na baía de Ana Chaves, de frente para a cidade, a cerca de quinhentos metros do molhe que defendia a avenida marginal das águas do Atlântico. Não havia porto nem sequer um cais de amarração na cidade de S.Tomé: carga e passageiros transladavam-se a terra em simples chatas a remos que, quando o mar estava batido, tornavam aquela curta travessia mais aventurosa do que a propria viagem através do vazio do oceano. 
Luís Bernardo estava, como todos os passageiros e tripulantes, encostado à amurada, contemplando a cidade e a agitação humana que se divisava junto à zona de desembarque.
O Zaire havia saudado terra com três apitos estridentes que se deviam ter escutado em toda a ilha, indicação tradicional de “governador a bordo”. De terra, tinham respondido com outros três apitos vindos da Capitania e uma salva de dezessete tiros disparados da fortaleza de S. Sebastião. De repente, parecia que toda a cidade começara a convergir para o molhe.


Transcrito de “Equador” (pág. 121). Autor Miguel Sousa Tavares. Romance. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2004.


A cena descrita por Miguel Sousa Tavares, da rica leva contemporânea de novos romancistas portugueses, é de um porto sem cais, bem no início do Séc. XX, em São Tomé, à época colônia lusitana produtora de cacau, situada na Costa da Guiné, África Ocidental. Um navio misto (meio cargueiro, meio de passageiros) chega à cidade. A chegada do navio vindo da metrópole já era motivo de alvoroço, que ganhou maior relevo por estar entre os passageiros o novo governador da província. Porto era baía, sem cais, sem deque, sem ponte de acesso à nau.
 

sexta-feira, 1 de janeiro de 2010

Mangue - Manuel Bandeira

"Mangue mais Veneza americana do que Recife
Cargueiros atracados nas docas do Canal Grande
O Morro do Pinto morre de espanto
Passam estivadores de torso nu suando facas de ponta
Café baixo
Trapiches alfandegados
Catraias de abacaxis e de bananas
A Light fazendo cruzvaldina com resíduo de coque
Há macumbas no piche
       Eh cagira mia pai
       Eh cagira
E o luar é uma coisa só..."

Primeira estrofe da poesia "Mangue" transcrito de "Melhores Poemas" (pág. 76). Autor: Manuel Bandeira. Seleção: Francisco de Assis Barbosa. Poesia. 14a. Edição. São Paulo: Global, 2001.
Caricatura de Manuel Bandeira de autoria de Carlos Drumond de Andrade.

Bandeira é poeta maior da literatura brasileira que transpôs para as letras a dor da doença que carregou consigo uma vida quase inteira, que não foi breve: 82 anos. Barbosa suspeita que "por extravagante que pareça, foi a morte que deu vida à poesia bandeiriana". Interessante antagonismo: morte e vida. O poema retrata o porto-mangue que, apesar das referências à Veneza e Recife, fica no Rio onde se enconatram o Canal do Mangue, o Morro do Pinto e a Light (companhia de eletricidade). Ao descrever a vida dura do trabalho portuário Bandeira, no seu particular versejar, constroi um texto rico de imagens e beleza poética. Como ele próprio se autodescreveu: "Não faço poesia quando quero e sim quando ela, poesia, quer". Ainda bem que ela quis muito.