"Falar daqueles três meses em que fiquei detida - incomunicável e sem um único banho de sol ou qualquer outro tipo de exercício - é falar de uma viagem ao inferno: dos suplícios físicos e psíquicos, dos sentimentos de desamparo, solidão, medo, pânico, abandono, desespero; é falar da 'separação entre corpo e mente', como afirmava o psicanalista Helio Pellegrino: 'O corpo implora para que se fale, a mente proíbe que isso ocorra'. A tortura não quer apenas fazer falar, também quer calar. Este foi o esgarçamento que experimentei: a terrível situação que opera através da dor, da humilhação e da degradação, transformando-nos em coisa, em objeto. Resistir a isso, não perder a lucidez e não permitir que o torturador penetre em nossa alma, em nosso espírito, em nosso pensamento e domine o nosso corpo exige um gigantesco esforço.
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Apesar do massacre de toda e qualquer oposição, a vida insiste. Os anos seguintes foram de muita solidariedade, especialmente com meus irmãos e amigos mais próximos. Ocorreu uma grande aproximação. Passamos a morar próximos uns dos outros. Viajávamos de férias juntos e confraternizávamos em datas festivas - um congraçamentos muito forte, com muita união e muita alegria por estarmos juntos e vivos.
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A inquietude e o combate com linhas duras animam a minha existência. Uma experiência de vida marcada por sucessivos abalos em torno da construção de ética-estética da liberdade na invenção de um viver potente. Não me conformo com a mutilação de uma vida pacificada para caber na caixa do mundo já estabelecido. Sinto a faísca da vida que me incendeia nos encontros que experimento com alunos, livros, autores, companheiros, amigos. Porém, durante muitos anos, tinha um sentimento muito forte de que nunca mais veria os amigos exilados ... Sentia um peso muito grande, que se desfez aos poucos ao longo dos anos - com a anistia, ao rever os companheiros-amigos, com os pensadores-intercessores, com os alunos: enfim, com novos e bons encontros que aumentam nossa potência de existir.
Movida pelos bons encontros sigo em busca de mais ar. Afetada pela pandemia do Coronavirus busco refugio na serra de Friburgo, em um pequeno ponto do planeta Terra onde a mata Atlântica resiste e insiste em sua acolhida multicor. Este foi o território que me acolheu e me implusionou em direção à escrita deste texto. Pássaros, flores, sapos, cobras, borboletas, aranhas, vagalumes e insetos variados passam a atravessar meus dias... Que essas memórias possam seguir afetando-desdobrando e seja, também, um pouco do possível, um pouco de ar para outras resistências e invenções de si e de mundos"
Trechos do livro "Fragmentos de memórias malditas: invenções de si e de mundos", de Cecília Coimbra. São Paulo: N-1 Edições, 2021.
Cecília Maria Bouças Coimbra é historiadora formada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e psicológa pela Universidade Gama Filho, mestre pela Universidade Candido Mendes, com doutorado em psicologia na Universidade de São Paulo (USP), pós-doutorado em ciência política também na USP. Professora aposentada de psicologia da Universidade Federal Fluminense (UFF) e uma das fundadoras e atual participante da Diretoria Colegiada do Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro.. É autora também do livro "Guardiães da Ordem, uma viagem pelas práticas psi no Brasil do milagre", publicado pela Editora Oficina do Autor, em 1995 (esgotado e disponível on line).
O livro de memórias do período em que esteve presa sem qualquer processo judicial, se baseia no próprio depoimento da autora às comissões Nacional e Estadual da Verdade, sendo ainda inspirado em sua tese de doutorado. O livro também é um marco dos seus 80 anos, nos quais lutou por ideiais de um mundo mais justo e pelo direito à verdade, à justiça e à dignidade humana. Como ela mesmo diz: falar das memórias "malditas e perigosas dos vencidos" é ainda doloroso e muito difícil, mas cada vez mais "absolutamente necessário".
Cecília fala daquelas memórias "que não contam nos livros oficiais e que o Estado tenta incessantemente fazer desaparecer, ainda hoje insistem em nossos corpos. São histórias que fazem parte de nossas vidas e que continuam a ferro e fogo", e continua: "Sinto necessidade de escrever para liberar a vida. Só consigo seguir em frente no abalo que constantemente tira tudo do lugar novamente. Em uma fina sintonia entre Leibniz e Deleuze: na chegada ao porto eis que sou lançada novamente em alto mar".
Mãe, avó, militante dos direitos humanos, professora universitária, historiadora, cientista política e psicóloga, Cecília Coimbra é uma potência. A fundadora e principal referência do grupo Tortura Nunca Mais fala mais sobre sua vida e o livro na ótima entrevista à Carta Capital (https://www.cartacapital.com.br/sociedade/nao-tenho-mais-ilusao-de-revolucao-minha-afirmacao-e-a-vida-cotidiana/).
Como Cecília também me refugio na serra de Nova Friburgo buscando um pouco mais de ar e acolhida da natureza. Mas resistir é luta cotidiana, sem tréguas, pela liberdade, pela justiça, pela vida. Sobretudo nesses tempos sombrios e de múltiplas pandemias (na saúde, na sociedade, na política...), é ato de sanidade, fé e coragem.
E resistir é preciso. Boa leitura!
Por F@bio