"Do amor e outros demônios
-Um-
Tinham recebido ordem de não passar do Portal dos Mercadores, mas a criada se aventurou até a ponte levadiça do arrabalde de Getsemaní, atraída pela bulha do porto negreiro, onde leiloavam um carregamento de escravos da Guiné. O barco da Companhia Gaditana de Negros era esperado com alarme havia uma semana, por ter ocorrido a bordo uma mortandade inexplicável. Procurando escondê-la, lançaram ao mar os cadáveres sem lastro. A maré montante os fez flutuar, e eles amanheceram na praia desfigurados pelo inchaço e com uma estranha coloração roxo-avermelhada. Fizeram ancorar o navio fora da baía, temendo que se tratasse do surto de alguma peste africana, até que comprovaram ter havido um envenenamento com frios estragados.
À hora em que o cachorro passou pelo mercado já tinham arrematado a carga sobrevivente, desvalorizada pelo seu péssimo estado de saúde, e tratavam de compensar a perda com uma única abissínia, de sete palmos de altura, untada com melaço em vez do óleo comercial de rigor, e de uma beleza tão perturbadora que parecia mentira. Tinha nariz afilado, o crânio acabaçado, os olhos oblíquos, os dentes intactos e o porte equívoco de um gladiador romano. Não a ferraram no barracão, nem anunciaram sua idade e estado de saúde; puseram-na à venda por sua beleza apenas. O preço que o governador pagou por ela, sem regatear, e à vista, foi seu peso em ouro".
Transcrito de "Do amor e outros demônios", romance de Gabriel Garcia Marquez, tradução de Moacir Werneck de Castro, 23ª ed., pág. 14 e 14. Rio de Janeiro : Record, 2014.
Garcia Marquez, inspirado por uma notícia que lhe veio como repórter, compõe uma história de amor, mistério, feitiçaria, exorcismo, religiosidade católica e africana, culminando com um processo de Inquisição. O romance é uma "terna evocação de um passado colonial que, de forma pungente, amplia a solidão de um época e das pessoas". O grande escritor colombiano aqui nos brinda com mais uma obra dramática e intensa, que lemos de uma só pegada cativados pelo suspense e vigor da trama.
Do trecho transcrito, a trágica cena do desembarque e comércio de cativos vindos da África. A ficção de Garcia Marquez parece ainda menos dramática do que foi a realidade de pessoas arrancadas de suas terras, famílias e povos, levadas para um mundo desconhecido, para trabalhar e servir aos senhores escravistas que tomavam pra si as terras do Novo Mundo. Infelizmente há quem defenda que não cabe compensar de alguma forma os descentes daqueles que deram sua força de trabalho e vida para construir novos impérios e foram mantidos a ferro e fogo, excluídos de toda a riqueza que geraram com seu trabalho. Finda a escravidão continuaram excluídos, sem moradia, educação, saúde, direitos, mas com todos os deveres que a sociedade lhes impôs. Essa dívida será sempre impagável, mas as cotas podem remediar um pouquinho a exclusão que lhes foi imposta desde sempre.
Por F@bio
A idéia é, como um navio cargueiro, recolher e reunir escritos da literatura que nos encantaram. Que tal navegar comigo, sugerir, criticar, interagir? Poste seu comentário e torne-se um amigo do Blog.
quarta-feira, 6 de junho de 2018
terça-feira, 15 de maio de 2018
Café - André Diniz e Leonídio Paulo Ferreira
Almanaque do Carnaval de André Diniz
"Café
A marchinha 'Tipo sete', cujo tema era o mercado do café, faz alusão ao principal produto de exportação brasileiro no período colonial, depois da cana-de-açúcar. O café veio parar no Brasil devido a um romance proibido. Reza a história que o militar português Francisco de Mello Palheta, ao chegar em missão na Guiana Francesa, logo se apaixonou pela esposa do governador, a linda marquesinha d'Orvillers. Correspondido, Palheta ganhava de presente sementes e mudas de café, que por proibição das autoridades coloniais francesas não podiam sair da região.
No Brasil, o café tornou-se o principal produto de exportação durante a Regência. Décadas depois, sua venda geraria muitos dividendos. O país passou a ter superavit na balança comercial, ou seja, exportava mais do que importava, ficando com lucro nas transações internacionais. Estados Unidos, Inglaterra, França e Alemanha eram nossos principais compradores.
Sustentando toda a política da República Velha, as fazendas de café espalharam-se pelo Rio de Janeiro e por Minas Gerais, mas foi em São Paulo que esse cultivo teve maior produtividade, sobretudo pela qualidade dos plantio. A riqueza oriunda das milhões de sacas do produto vendidas criaram as condições para o desenvolvimento do capitalismo em terras paulistas."
Transcritos do livro "Almanaque do Carnaval: a história do carnaval, o que ouvir, o que ler, onde curtir", pág. 94. Autor: André Diniz. Rio de Janeiro : Jorge Zahar Ed., 2008.
André Diniz da Silva, nascido em Niterói - RJ, é escritor, pesquisador de música popular brasileira, historiador, professor e político brasileiro. Graduado em história pela Universidade Federal Fluminense (UFF), mestre pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) e doutorando em geografia pela UFF. André Diniz publicou diversos livros e artigos publicados sobre música popular brasileira, tendo proferido palestras sobre música, história e cultura brasileira em praticamente todos os Estados do país. Professor de ensino superior e ensino médio, e militante político-partidário nos movimentos de juventude, no final dos anos 80, André participou da consolidação do Partido dos Trabalhadores na cidade e da reorganização do Diretório Acadêmico do curso de História da UFF. Foi candidato (derrotado) a vereador em Niterói (1992), assessor político, subsecretário municipal de cultura, vereador e líder da bancada petista na câmara, além de presidente da Comissão de Educação e Cultura. Em 2005, tornou-se presidente do diretório municipal do PT de Niterói. Em março de 2007, licenciou-se da Câmara Municipal para assumir a função de Secretário Municipal de Cultura, que exerceu até abril de 2008. Reeleito vereador, assumiu em 2011 a Chefia da Representação dos Estados do Rio de Janeiro e Espírito Santo, no Ministério da Cultura. Em 2013 assumiu a presidência da Fundação de Artes de Niterói, órgão vinculado à Secretaria Municipal de Cultura.
No Almanaque do Carnaval apresenta não só a história da maior festa popular do país, perpassando pelos diversos gêneros musicais relacionados a essa festa, como o samba, a marchinha, o frevo e o axé. Traçando um vasto panorama cultural e da formação do povo brasileiro, apresenta também breves perfis de compositores e intérpretes, detalhando a história de cada gênero musical, canções e casos pitorescos. Tudo isso contextualizado e ilustrado para deleite dos amantes da música e da literatura.
A marchinha "Tipo Sete" a que se refere André Diniz foi composta por Alberto Ribeiro e Antônio Nássara e imortalizada na voz de Francisco Alves. Segue a letra completa que, como era uma marca das marchinhas, tem um duplo sentido, aludindo aos tipos de café e de garotas (pelo aspecto biológico):
"Tipo Sete
O tipo louro
Vale um tesouro
Mas perto do moreno
É café pequeno
Enquanto eu tiver
Olhos pra enxergar
Boca pra gritar
Hei de ter opinião
Não é qualquer mulher
Que consegue dominar
Meu coração
O tipo escuro
Não dá futuro
É capital parado
Que não rende juro
O tipo claro,
É muito raro,
Mas vende muito pouco,
Porque custa caro".
Sobre o café e outras culturas agrícolas, tráfico e globalização, segue o interessante artigo de Leonídio Paulo Ferreira, publicado no Diário de Notícias (www.dn.pt), em 19/09/2012, com o título "Descubra o galã Palheta que deu o café ao Brasil.
Se o Brasil é o maior produtor mundial de café deve-o a Francisco de Melo Palheta. Nascido em Belém do Pará e filho de um português de Serpa, o militar feito diplomata foi em 1727 até Caiena, na Guiana francesa, para resolver uma disputa fronteiriça. Mas se essa era a sua missão oficial, na realidade o que Palheta procurava era grãos de café, tesouro de origem etíope que nas Américas do início do século XVIII poucos possuíam. Galã antes de época, terá seduzido a mulher do governador da colónia francesa, que na despedida lhe ofereceu um ramo de flores com sementes escondidas.
O episódio que imortalizou Palheta é só nota de rodapé num brilhante livro que a Casa das Letras acaba de publicar. Mas confirma ser o génio dos homens, mais o acaso da história, aquilo que explica o planeta onde vivemos, afinal a tese de 1493 - A Descoberta do Novo Mundo Que Cristóvão Colombo Criou, de Charles C. Mann.
Há muitos portugueses, luso-brasileiros e brasileiros citados ao longo das 600 páginas do livro do jornalista americano. Justíssimo, porque desde a chegada do tabaco à China em 1549, até à febre da borracha na Amazónia do século XIX, passando pela transferência da vila de Mazagão de Marrocos para o Brasil em 1770, as gentes de língua portuguesa competem com as de fala espanhola, inglesa, holandesa e francesa no esforço de globalização que as Descobertas desencadearam.
E não faltam outros episódios surpreendentes no livro de Charles C. Mann, mesmo sem intervenção portuguesa. Como o papel decisivo dos mosquitos (da malária) na derrota dos britânicos na Guerra da Independência Americana ou os fornecedores de ossos para as fábricas de adubo a vasculharem os campos de batalha de Waterloo e de Austerlitz.
Mas voltemos a Palheta, que do seu mérito se sabe tudo (o Brasil colhe por ano três vezes mais café do que o Vietname, segundo país produtor), mas da sua vida pouco, alimentando o mito. Já se escreveu muito sobre a personagem, até existe um documentário luso-brasileiro (claro!) intitulado Sementes de Ouro Negro, mas nunca é de mais homenagear a forma galante como o diplomata serviu a sua causa.
Vasco da Gama usou o terror para se apoderar do comércio das especiarias, ficando com a fama de cortar narizes e orelhas aos indianos. Já o britânico Henry Wickham traiu os brasileiros que o acolheram ao roubar as sementes da seringueira e fazendo assim a árvore-da-borracha expandir-se pelo Sudeste asiático então pertença da coroa inglesa. Mas Palheta (e aqui o mito vale tudo) serviu-se da paixão para benefício económico da sua pátria.
O Brasil é já a sexta potência económica. Produz hoje tudo, de petróleo a aviões, mas a agricultura continua a contar muito para a riqueza nacional. E graças às artes de um luso-brasileiro que viveu há três séculos, hoje esse país com 200 milhões de pessoas é o rei do café. E isso não é uma nota de rodapé. É um marco da globalização."
História, economia, tráfico e trapaça, mito e globalização muito antes do Século XXI. Mas, romance e paixões temperam as narrativas e tornam as histórias muito mais interessantes.
Por F@bio
"Café
A marchinha 'Tipo sete', cujo tema era o mercado do café, faz alusão ao principal produto de exportação brasileiro no período colonial, depois da cana-de-açúcar. O café veio parar no Brasil devido a um romance proibido. Reza a história que o militar português Francisco de Mello Palheta, ao chegar em missão na Guiana Francesa, logo se apaixonou pela esposa do governador, a linda marquesinha d'Orvillers. Correspondido, Palheta ganhava de presente sementes e mudas de café, que por proibição das autoridades coloniais francesas não podiam sair da região.
No Brasil, o café tornou-se o principal produto de exportação durante a Regência. Décadas depois, sua venda geraria muitos dividendos. O país passou a ter superavit na balança comercial, ou seja, exportava mais do que importava, ficando com lucro nas transações internacionais. Estados Unidos, Inglaterra, França e Alemanha eram nossos principais compradores.
Sustentando toda a política da República Velha, as fazendas de café espalharam-se pelo Rio de Janeiro e por Minas Gerais, mas foi em São Paulo que esse cultivo teve maior produtividade, sobretudo pela qualidade dos plantio. A riqueza oriunda das milhões de sacas do produto vendidas criaram as condições para o desenvolvimento do capitalismo em terras paulistas."
Transcritos do livro "Almanaque do Carnaval: a história do carnaval, o que ouvir, o que ler, onde curtir", pág. 94. Autor: André Diniz. Rio de Janeiro : Jorge Zahar Ed., 2008.
André Diniz da Silva, nascido em Niterói - RJ, é escritor, pesquisador de música popular brasileira, historiador, professor e político brasileiro. Graduado em história pela Universidade Federal Fluminense (UFF), mestre pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) e doutorando em geografia pela UFF. André Diniz publicou diversos livros e artigos publicados sobre música popular brasileira, tendo proferido palestras sobre música, história e cultura brasileira em praticamente todos os Estados do país. Professor de ensino superior e ensino médio, e militante político-partidário nos movimentos de juventude, no final dos anos 80, André participou da consolidação do Partido dos Trabalhadores na cidade e da reorganização do Diretório Acadêmico do curso de História da UFF. Foi candidato (derrotado) a vereador em Niterói (1992), assessor político, subsecretário municipal de cultura, vereador e líder da bancada petista na câmara, além de presidente da Comissão de Educação e Cultura. Em 2005, tornou-se presidente do diretório municipal do PT de Niterói. Em março de 2007, licenciou-se da Câmara Municipal para assumir a função de Secretário Municipal de Cultura, que exerceu até abril de 2008. Reeleito vereador, assumiu em 2011 a Chefia da Representação dos Estados do Rio de Janeiro e Espírito Santo, no Ministério da Cultura. Em 2013 assumiu a presidência da Fundação de Artes de Niterói, órgão vinculado à Secretaria Municipal de Cultura.
No Almanaque do Carnaval apresenta não só a história da maior festa popular do país, perpassando pelos diversos gêneros musicais relacionados a essa festa, como o samba, a marchinha, o frevo e o axé. Traçando um vasto panorama cultural e da formação do povo brasileiro, apresenta também breves perfis de compositores e intérpretes, detalhando a história de cada gênero musical, canções e casos pitorescos. Tudo isso contextualizado e ilustrado para deleite dos amantes da música e da literatura.
A marchinha "Tipo Sete" a que se refere André Diniz foi composta por Alberto Ribeiro e Antônio Nássara e imortalizada na voz de Francisco Alves. Segue a letra completa que, como era uma marca das marchinhas, tem um duplo sentido, aludindo aos tipos de café e de garotas (pelo aspecto biológico):
"Tipo Sete
O tipo louro
Vale um tesouro
Mas perto do moreno
É café pequeno
Enquanto eu tiver
Olhos pra enxergar
Boca pra gritar
Hei de ter opinião
Não é qualquer mulher
Que consegue dominar
Meu coração
O tipo escuro
Não dá futuro
É capital parado
Que não rende juro
O tipo claro,
É muito raro,
Mas vende muito pouco,
Porque custa caro".
Sobre o café e outras culturas agrícolas, tráfico e globalização, segue o interessante artigo de Leonídio Paulo Ferreira, publicado no Diário de Notícias (www.dn.pt), em 19/09/2012, com o título "Descubra o galã Palheta que deu o café ao Brasil.
Se o Brasil é o maior produtor mundial de café deve-o a Francisco de Melo Palheta. Nascido em Belém do Pará e filho de um português de Serpa, o militar feito diplomata foi em 1727 até Caiena, na Guiana francesa, para resolver uma disputa fronteiriça. Mas se essa era a sua missão oficial, na realidade o que Palheta procurava era grãos de café, tesouro de origem etíope que nas Américas do início do século XVIII poucos possuíam. Galã antes de época, terá seduzido a mulher do governador da colónia francesa, que na despedida lhe ofereceu um ramo de flores com sementes escondidas.
O episódio que imortalizou Palheta é só nota de rodapé num brilhante livro que a Casa das Letras acaba de publicar. Mas confirma ser o génio dos homens, mais o acaso da história, aquilo que explica o planeta onde vivemos, afinal a tese de 1493 - A Descoberta do Novo Mundo Que Cristóvão Colombo Criou, de Charles C. Mann.
Há muitos portugueses, luso-brasileiros e brasileiros citados ao longo das 600 páginas do livro do jornalista americano. Justíssimo, porque desde a chegada do tabaco à China em 1549, até à febre da borracha na Amazónia do século XIX, passando pela transferência da vila de Mazagão de Marrocos para o Brasil em 1770, as gentes de língua portuguesa competem com as de fala espanhola, inglesa, holandesa e francesa no esforço de globalização que as Descobertas desencadearam.
E não faltam outros episódios surpreendentes no livro de Charles C. Mann, mesmo sem intervenção portuguesa. Como o papel decisivo dos mosquitos (da malária) na derrota dos britânicos na Guerra da Independência Americana ou os fornecedores de ossos para as fábricas de adubo a vasculharem os campos de batalha de Waterloo e de Austerlitz.
Mas voltemos a Palheta, que do seu mérito se sabe tudo (o Brasil colhe por ano três vezes mais café do que o Vietname, segundo país produtor), mas da sua vida pouco, alimentando o mito. Já se escreveu muito sobre a personagem, até existe um documentário luso-brasileiro (claro!) intitulado Sementes de Ouro Negro, mas nunca é de mais homenagear a forma galante como o diplomata serviu a sua causa.
Vasco da Gama usou o terror para se apoderar do comércio das especiarias, ficando com a fama de cortar narizes e orelhas aos indianos. Já o britânico Henry Wickham traiu os brasileiros que o acolheram ao roubar as sementes da seringueira e fazendo assim a árvore-da-borracha expandir-se pelo Sudeste asiático então pertença da coroa inglesa. Mas Palheta (e aqui o mito vale tudo) serviu-se da paixão para benefício económico da sua pátria.
O Brasil é já a sexta potência económica. Produz hoje tudo, de petróleo a aviões, mas a agricultura continua a contar muito para a riqueza nacional. E graças às artes de um luso-brasileiro que viveu há três séculos, hoje esse país com 200 milhões de pessoas é o rei do café. E isso não é uma nota de rodapé. É um marco da globalização."
História, economia, tráfico e trapaça, mito e globalização muito antes do Século XXI. Mas, romance e paixões temperam as narrativas e tornam as histórias muito mais interessantes.
Por F@bio
segunda-feira, 7 de maio de 2018
A Noite da Espera - Milton Hatoum
"Andamos pelas ruas do Macuco até o canal. As catraias estavam encostadas nas margens, a passagem do canal para o estuário formava um meio círculo escuro, parecia a entrada de um túnel tenebroso. Os vagões de carga estavam inertes na linha do trem; mais longe, os guindastes, empilhadeiras e armazéns eram formas quase indistintas. A ausência de marinheiros e de estivadores e a iluminação fraca no canal e no cais adensavam o silêncio no porto do Macuco, como se o mar tivesse secado na noite natalina. Contornamos a outra margem e, na travessia da pequena ponte sobre o canal, vimos dois corpos deitados numa catraia que oscilava na margem."
Transcrito de A Noite da Espera, de Milton Hatoum (pag. 20/21). 1ª ed. São Paulo : Companhia das Letras, 2017.
O romance do escritor Milton Hatoum é o primeiro volume da série O Lugar Mais Sombrio, em que o protagonista, o jovem Martim, após a separação dos genitores, muda-se para Brasilia com o pai, onde trava novas amizades e cursa arquitetura na UnB. As descobertas amorosas, culturais e políticas ocorrem no ambiente pesado dos anos de chumbo da ditadura militar.
Milton Hatoum nasceu em Manaus, morou em Brasilia e São Paulo onde formou-se em arquitetura pela USP. Trabalhou como jornalista e foi professor de história da Arquitetura. Em 1980 viajou como bolsista para a Espanha, onde morou em Madri e Barcelona. Depois passou três anos em Paris, onde estudou literatura comparada na Sorbonne (Paris III). Professor em universidades dos EUA e autor de quatro romances premiados, sua obra foi traduzida em doze línguas e publicada em catorze países. Atualmente reside em São Paulo e é colunista de importantes jornais de SP e RJ.
Mestre na escrita, neste romance Hatoum transita entre o pessoal e o social, numa Brasilia barrenta e cinzenta, drama muito bem construído com a estrutura semelhante a um diário. Leitura imperdível. Por F@bio
Transcrito de A Noite da Espera, de Milton Hatoum (pag. 20/21). 1ª ed. São Paulo : Companhia das Letras, 2017.
O romance do escritor Milton Hatoum é o primeiro volume da série O Lugar Mais Sombrio, em que o protagonista, o jovem Martim, após a separação dos genitores, muda-se para Brasilia com o pai, onde trava novas amizades e cursa arquitetura na UnB. As descobertas amorosas, culturais e políticas ocorrem no ambiente pesado dos anos de chumbo da ditadura militar.
Milton Hatoum nasceu em Manaus, morou em Brasilia e São Paulo onde formou-se em arquitetura pela USP. Trabalhou como jornalista e foi professor de história da Arquitetura. Em 1980 viajou como bolsista para a Espanha, onde morou em Madri e Barcelona. Depois passou três anos em Paris, onde estudou literatura comparada na Sorbonne (Paris III). Professor em universidades dos EUA e autor de quatro romances premiados, sua obra foi traduzida em doze línguas e publicada em catorze países. Atualmente reside em São Paulo e é colunista de importantes jornais de SP e RJ.
Mestre na escrita, neste romance Hatoum transita entre o pessoal e o social, numa Brasilia barrenta e cinzenta, drama muito bem construído com a estrutura semelhante a um diário. Leitura imperdível. Por F@bio
quinta-feira, 8 de fevereiro de 2018
O Mar - Murilo Mendes
O MAR
de Murilo Mendes
1
Debruço-me sobre o cais de onde não parte navio algum,
Vendo ouvir o mar esvoaçante.
O mar não me dá gana de partir,
O mar me dá gana de ser permanente, definitivo.
Em oposição ao mesmo mar
Que se debate e grita num comício perpétuo.
2
Dobrando a esquina encontro o tigre.
Não sou blindado como os navios para afrontá-lo,
Nem costumo uivar como o vento.
Fico de longe, fazendo-lhe sinais
A que o farol vermelho e verde responde.
Que se passará nos salões da gaivota?
3
O mar do outro mundo, o mar regenerado
Incluirá suaves sirenas
Que nos atrairão para a vida.
O mar inocente e reduzido
Nós lhe traremos flores de coral.
Publicado no livro Poesia Liberdade de 1947. Transcrito de: http://www.avozdapoesia.com.br/obras_ler.php?obra_id=18243
Murilo Monteiro Mendes, nasceu no dia 13 de maio de 1901, em Juiz Fora (MG). Aos 9 anos diz ter tido uma revelação poética ao assistir a passagem do cometa Halley. Inicia os estudos na cidade natal e continua em Niterói (RJ) no Internato do Colégio Salesiano. Em 1917, uma nova revelação: fugiu do colégio para assistir, no Rio de Janeiro, às apresentações do bailarino Nijinski. Muda-se definitivamente para o Rio em 1920. Os anos de 1924 a 1929 foram dedicados à formação cultural e à luta contra a instabilidade profissional. Foi arquivista no Ministério da Fazenda e funcionário do Banco Mercantil. Nesse período publica poemas em revistas modernistas como "Verde" e "Revista de Antropofagia". Seu primeiro livro, "Poemas", é publicado em 1930. É agraciado com o Prêmio Graça Aranha. Em 1934, ingressa num grupo católico formado por artistas e intelectuais e desenvolve temas religiosos. Torna-se inspetor de ensino em 1935. Em 1940, conhece Maria da Saudade Cortesão, com quem se casaria em 1947. Em 1946, torna-se escrivão da 4ª Vara de Família do Distrito Federal (Rio de Janeiro). Em 1953, foi convidado para lecionar literatura brasileira em Lisboa. De 1953 a 1955, percorreu diversos países da Europa, divulgando, em conferências, a cultura brasileira. Muda-se para a Itália em 1957, onde se torna professor de Cultura Brasileira na Universidade de Roma. Foi também professor na Universidade de Pisa. Seus livros são publicados por toda a Europa. Em 1972, recebe o prêmio internacional de poesia Etna-Taormina. Vem ao Brasil pela última vez. Murilo Mendes morre em Estoril, Lisboa, no dia 13 de agosto de 1975. (Fontes: http://www.releituras.com/mmendes_menu.asp e https://www.ebiografia.com/murilo_mendes/)
A calmaria do mar é agitada pelos ventos e astros. Na sua imensidão, um murmurar sem fim. Ondas a vagar, ventos a uivar. Navegar é preciso. Mas não há navios no cais. Permanecer também é preciso. O rochedo no seu embate permanente com as ondas. O mar reduzido, regenerado. Vida a ser festejada com um bouquet de flores de coral.
Por F@bio
de Murilo Mendes
1
Debruço-me sobre o cais de onde não parte navio algum,
Vendo ouvir o mar esvoaçante.
O mar não me dá gana de partir,
O mar me dá gana de ser permanente, definitivo.
Em oposição ao mesmo mar
Que se debate e grita num comício perpétuo.
2
Dobrando a esquina encontro o tigre.
Não sou blindado como os navios para afrontá-lo,
Nem costumo uivar como o vento.
Fico de longe, fazendo-lhe sinais
A que o farol vermelho e verde responde.
Que se passará nos salões da gaivota?
3
O mar do outro mundo, o mar regenerado
Incluirá suaves sirenas
Que nos atrairão para a vida.
O mar inocente e reduzido
Nós lhe traremos flores de coral.
Publicado no livro Poesia Liberdade de 1947. Transcrito de: http://www.avozdapoesia.com.br/obras_ler.php?obra_id=18243
Murilo Monteiro Mendes, nasceu no dia 13 de maio de 1901, em Juiz Fora (MG). Aos 9 anos diz ter tido uma revelação poética ao assistir a passagem do cometa Halley. Inicia os estudos na cidade natal e continua em Niterói (RJ) no Internato do Colégio Salesiano. Em 1917, uma nova revelação: fugiu do colégio para assistir, no Rio de Janeiro, às apresentações do bailarino Nijinski. Muda-se definitivamente para o Rio em 1920. Os anos de 1924 a 1929 foram dedicados à formação cultural e à luta contra a instabilidade profissional. Foi arquivista no Ministério da Fazenda e funcionário do Banco Mercantil. Nesse período publica poemas em revistas modernistas como "Verde" e "Revista de Antropofagia". Seu primeiro livro, "Poemas", é publicado em 1930. É agraciado com o Prêmio Graça Aranha. Em 1934, ingressa num grupo católico formado por artistas e intelectuais e desenvolve temas religiosos. Torna-se inspetor de ensino em 1935. Em 1940, conhece Maria da Saudade Cortesão, com quem se casaria em 1947. Em 1946, torna-se escrivão da 4ª Vara de Família do Distrito Federal (Rio de Janeiro). Em 1953, foi convidado para lecionar literatura brasileira em Lisboa. De 1953 a 1955, percorreu diversos países da Europa, divulgando, em conferências, a cultura brasileira. Muda-se para a Itália em 1957, onde se torna professor de Cultura Brasileira na Universidade de Roma. Foi também professor na Universidade de Pisa. Seus livros são publicados por toda a Europa. Em 1972, recebe o prêmio internacional de poesia Etna-Taormina. Vem ao Brasil pela última vez. Murilo Mendes morre em Estoril, Lisboa, no dia 13 de agosto de 1975. (Fontes: http://www.releituras.com/mmendes_menu.asp e https://www.ebiografia.com/murilo_mendes/)
A calmaria do mar é agitada pelos ventos e astros. Na sua imensidão, um murmurar sem fim. Ondas a vagar, ventos a uivar. Navegar é preciso. Mas não há navios no cais. Permanecer também é preciso. O rochedo no seu embate permanente com as ondas. O mar reduzido, regenerado. Vida a ser festejada com um bouquet de flores de coral.
Por F@bio
domingo, 19 de novembro de 2017
Varre-Sai – Os Italianos no Noroeste Fluminense - Rosane Aparecida Bartholazzi
Varre-Sai – Os Italianos no Noroeste Fluminense - Rosane Aparecida Bartholazzi
"... o tropeiro foi o elo rudimentar mais
eficiente de um processo que unia a fazenda ao mercado internacional e
transformava um sistema irracional e primitivo num protagonista do comércio
mundial. No noroeste fluminense, os caminhos traçados pelos tropeiros e sua
tropas contribuíram decisivamente para a articulação do comércio entre Minas
Gerais e Rio de Janeiro, alcançando lugar de destaque da economia cafeeira.”
“Por ser
uma região de fronteira e por estar em processo de ocupação, as redes de comunicação
para o transporte de mercadorias eram inexistentes. Dessa forma, os tropeiros
tinham um papel fundamental: a eles era confiado o carregamento da produção.
Eles faziam a mediação entre o interior e o litoral, entre as zonas produtoras
e as litorâneas, constituindo o elemento de ligação da unidade econômica do
país.
...
Nas
regiões fronteiriças, como é o caso do noroeste [fluminense], especialmente
Varre-Sai, a movimentação dos tropeiros era intensa, situação que, segundo a
memória oficial do lugar, justifica a denominação do distrito. O nome Varre-Sai
estaria associado a um rancho ali existente, onde os tropeiros pernoitavam.
Supostamente,
este rancho estaria ligado a algum fazendeiro, pois o pernoite era gratuito.
Por não pagarem, deveriam pelo menos manter o local sempre limpo, varrendo a sujeira feita pelos burros
antes de sair. Dessa forma teria
surgido a denominação popular de ‘Rancho de Varre e Sahe’ e, posteriormente,
Varre-Sai."
Transcrito de "Os Italianos no Noroeste Fluminense: estratégias familiares e mobilidade social
1897 – 1950" (p.135 e 136), de Rosane Aparecida Bartholazzi. Rio de Janeiro :
Garamond, 2013.
Rosane A.
Bartholazzi é natural de Bom Jesus do Itabapoana – RJ. Graduada em Ciências
Sociais pela Fundação São José de Itaperuna – RJ, com Mestrado em História
Social pela Universidade Severino Sombra – RJ e Doutorado em História pela
Universidade Federal Fluminense – UFF, Niterói - RJ. O livro foi fruto da tese
de doutorado que contou com a orientação da brilhante professora Ismênia de
Lima Martins. Nos meus tempos de UFF tive a honra de ser aluno dela, que não
dava aulas mas verdadeiras conferências. Bartholazzi faz um estudo primoroso
sobre a emigração italiana para o noroeste fluminense, especialmente Varre-Sai.
Nasci lá e também tenho ascendência italiana de bisavós do lado materno. Quando pequeno lembro-me de cruzar com algumas tropas remanescentes nas estradas de terra de então.
As tropas de
muares (mulas e burros) foram importantes meios de transporte de cargas
diversas favorecendo que as mercadorias fossem levadas dos portos e regiões
produtoras até os mais distantes rincões do Brasil e vice-versa. O ouro, extraído em Minas
Gerais, e depois o café produzido no Vale do Paraíba do Rio de Janeiro, eram
transportados em tropas de mulas até os portos de Paraty e Rio de Janeiro.
Normalmente a Tropa Cargueira de
muares era constituída por lotes formados por 8 a 12 animais. Burro no
masculino, mula no feminino, estes eram os animais mais resistente para as
tropas cargueiras. Mais forte e
resistente do que os equídeos, tanto para carregar cargas pesadas, como para
vencer grandes distâncias e trabalhar com a mesma eficiência nos terrenos
íngremes e montanhosos. Acomodada em dois cestos ou balaios (ou broaca), um de cada lado,
um muar transporta entre 120 e 150 quilos, motivando a preferência por esse
tipo de animal para o transporte de carga.
Malotagem eram os apetrechos e arreios necessários de cada animal e
acondicionamento da carga
As tropas
percorriam, em média, 20 a 22 quilômetros por dia, com uma parada no meio do
percurso. Nos trajetos mais longos, as tropas eram compostas por 4 ou 8 lotes
de cargueiros, cada lote com 10 muares. Assim, uma grande tropa cargueira
poderia ter até 80 animais, transportando um total de 12 toneladas de
mercadorias. Já a comitiva era formada
por um madrinheiro, que fazia também as funções de cozinheiro, um peão para
cada lote, um arrieiro (um tipo de faz-tudo, que cuidava da saúde dos animais e
da manutenção das tralhas), o capataz e o tropeiro patrão. Quando a tropa tinha cozinheiro e
madrinheiro, este último geralmente era sempre um menino. O madrinheiro ia à frente tocando a égua
madrinha com o seu cincerro e em seguida, também equipada de cincerros, vinha a
besta dianteira. Depois em fila indiana,
as mulas cargueiras e fechando o lote, a mula culatreira, que além da carga,
levava também as tralhas da cozinha.
Além de seu
importante papel na economia, o tropeiro teve importância cultural relevante
como veiculador de ideias e notícias entre as aldeias e comunidades, numa época em que não existiam estradas no Brasil. Em torno dessa
atividade surgiram várias profissões e indústrias.
O tropeiro deveria ser capaz de resolver inúmeros problemas durante a viagem. As longas jornadas exigiam que ele fosse médico, soldado, artesão, caçador, pescador, cozinheiro, veterinário, negociante, mensageiro e agricultor. Tantos ofícios exigiam um arsenal variado de instrumentos e ferramentas.
A profissão
de ferrador também foi criada pelas necessidades desse fenômeno
econômico-social, consistindo ela em pregar as ferraduras nos animais das
tropas e acumulando geralmente a profissão de aveitar ou veterinário.
Nos primeiros
anos os pousos eram ao relento, normalmente debaixo de uma árvore, com os tropeiros
protegidos por ponches ou cobertores que podiam ser usados como cama
ou coberta. Ligal era uma manta grande de couro cru, utilizada para cobrir a
carga das mulas, protegendo-a do sol, da chuva e da poeira. Mais tarde, com o
aumento e regularidade das tropas cargueiras nos percursos, surgiram os pousos
para tropas, constituídos de ranchos abertos e cobertos de sapé, que
ofereciam alguma proteção aos peões e à carga. O rancheiro e seu rancho ou
alojamento geralmente não cobrava pela hospedagem, cobrando apenas o
milho e o pasto consumidos pelos animais, porque os tropeiros conduziam
cozinhas próprias.
Ao redor
desses pousos surgiram centenas de cidades brasileiras, como é o caso de
Varre-Sai, originalmente São Sebastião do Varre e Sahe. Como informa
Bartholazzi, a tradição oral do lugar relata que ganhou esse nome pelo fato de
ter sido colocado um aviso no pouso solicitando aos tropeiros varrer o local
antes de sair.
A lavoura de
café continua a ser a principal atividade econômica do município de Varre-Sai,
maior produtor de café do Estado do Rio de Janeiro. O italianos que lá chegaram
na virada do século XIX para XX deixaram muitos descendentes e tradições. Por
não contar com produção de uva, os italianos inovaram e produziram o vinho de
jabuticaba, característico do lugar. Essa atividade deu origem ao Festival do
Vinho realizado no último final de semana do mês julho de cada ano.
Por F@bio
Leia mais em:
http://caminhosdastropas-com-br.webnode.com/news/entendimento-sobre-o-tropeirismo/
http://caminhopaulistadastropas.webnode.com.br/sobre-nos/
http://www.tropeirosdasgerais.com.br/historia2.htm
http://www.jumentosemuaresonline.com.br/blog/categoria/artigo/o-tropeiro-2014-08-29-2237570000-tropeiro
http://radionajua.com.br/noticia/irati-de-todos-nos/materias/na-trilha-das-tropas/4882/ (também fonte da foto de comitiva)
http://caminhosdastropas-com-br.webnode.com/news/entendimento-sobre-o-tropeirismo/
http://caminhopaulistadastropas.webnode.com.br/sobre-nos/
http://www.tropeirosdasgerais.com.br/historia2.htm
http://www.jumentosemuaresonline.com.br/blog/categoria/artigo/o-tropeiro-2014-08-29-2237570000-tropeiro
http://radionajua.com.br/noticia/irati-de-todos-nos/materias/na-trilha-das-tropas/4882/ (também fonte da foto de comitiva)
terça-feira, 26 de setembro de 2017
Triste Fim de Policarpo Quaresma - Lima Barreto
"Quaresma jantava e almoçava ali mesmo. Não era raro também dormir. As refeições eram-lhes fornecidas por um frege próximo e ele dormia em um quarto daquela edificação imperial. Porque a casa em que se acantonara o destacamento era o pavilhão do Imperador, situado na antiga Quinta da Ponta-do-Caju. Ficavam nela também a estação da estrada-de-ferro do Rio-Douro e uma grande e bulhenta serraria. Quaresma veio até a porta, olhou a praia suja e ficou admirado que o Imperador a quisesse para banhos. A cerração ia-se dissipando inteiramente.
As formas das coisas saiam modeladas do seio daquela massa de névoa pesada; e, satisfeitas, como se o pesadelo tivesse passado. Primeiro, surgiam as partes baixas, lentamente; e por fim, quase repentinamente, as altas.
À direita, havia a Saúde, a Gamboa, os navios de comércio: galeras de três mastros, cargueiros a vapor, altaneiros barcos de vela - que iam saindo da bruma, e, por instantes, aquilo tudo tinha um ar de paisagem holandesa; à esquerda, era o saco da Raposa, o Retiro Saudoso, a Sapucaia horrenda, a ilha do Governador, os Órgãos Azuis, altos de tocar no céu; em frente, a ilha dos Ferreiros, com seus depósitos de carvão; e, alongando a vista pelo mar sossegado, Niterói, cujas montanhas acabavam de recortar-se no céu azul, à luz daquela manhã atrasada".
Transcrito do livro Triste Fim de Polícarpo Quaresma, de Lima Barreto, páginas 80 e 81. São Paulo: Clube do Livro, 1967.
Afonso Henriques de Lima Barreto nasceu no Rio de Janeiro em 13 de maio de 1881. Filho de mulatos, o pai, João Henriques de Lima Barreto, tipógrafo e a mãe, Amália, professora, de saúde frágil, deixa o filho Afonso órfão quando ainda não completara os sete. Com essa idade participou das comemorações da abolição da escravidão, quando da assinatura da lei Áurea pela princesa Isabel. Mas a lei que finalmente aboliu a escravidão não teve o mesmo resultado em abolir o preconceito que marcará fortemente a vida e obra do escritor carioca. Seu pai fez todos os esforços para tornar o primogênito doutor, incentivando-o a cursar a Politécnica e formar-se engenheiro civil. Mas, com a república João Henriques perde o emprego de tipógrafo. Contado com a influência do amigo e protetor senador Afonso Celso, padrinho do filho mais velho, tornou-se administrador da colônia de alienados da Ilha do Governador, para onde se muda com a família. E será esse período morando na colônia que constituirá a grande inspiração da obra de Lima Barreto, de forte teor biográfico. A loucura vizinha acaba instalando-se no seio familiar, com seu pai sendo internado pela primeira vez em 1902. Posteriormente, vitima do alcoolismo, o próprio Lima será internado por mais de uma vez. Com a doença do pai, abandona os estudos e inicia carreira de amanauense (escriturário) no Ministério da Guerra. Também trabalha como jornalista. Em 1909 consegue publicar, em Lisboa, o seu romance Recordações do Escrivão Isaías Caminha. Em 1911 publica no Jornal do Comércio o romance Triste Fim de Policarpo Quaresma na forma de folhetim. Em 1914 é internado pela primeira vez num hospício, o que irá se repetir em 1919. Em 1915, mais uma vez na forma de folhetim, publica o romance Numa e a Ninfa. Em 1922, vitima do alcoolismo e de um colapso, falece no Rio de Janeiro em 1º de novembro. Dois dias depois morre seu pai.
No trecho transcrito, o protagonista do mais notório romance de Lima Barreto, Policarpo Quaresma, inspirado em seu pai, encontra-se na Ponta do Caju, onde hoje situa-se o Terminal de Contêineres do Porto do Rio de Janeiro. Nesse mesmo local fica a Casa de Banhos de Dom João VI, que por recomendação médica se banhava naquela região para tratar de doenças de pele. Segundo o cronista C. J. Dunlop: "O Caju era uma região belíssima, de praias com areias branquinhas e água cristalina, onde não era rara a visão do fundo da Baía, tendo como habitantes comuns os camarões, cavalos-marinhos, sardinhas e até mesmo baleias" (http://www.rioecultura.com.br/coluna_patrimonio/coluna_patrimonio.asp?patrim_cod=61). No trecho citado, escrito cerca de 90 anos após, Lima Barreto já descreve o local como de águas impuras. Hoje o casarão abriga o Museu da Limpeza Urbana e fica distante do mar em razão dos aterros.
O autor descreve a geografia da região, apontando à direita os bairros da Saúde, Gamboa e o porto com seus navios e cargueiros, atualmente uma região redescoberta e remodelada pelas obras do Porto Maravilha. À esquerda aponta regiões que já foram completamente apagadas do mapa, em vista dos aterros (Saco da Raposa, Retiro Saudoso, Sapucaia). Resistiram a Ilha do Governador e a vista da Serra do Órgãos (azul quando a poluição permite). A frente, Niterói. A citada estrada de ferro Rio-Douro inaugurada em 1883 ia do Caju até a Represa Rio d'Ouro (Tinguá) e teve o objetivo inicial de viabilizar a construção de adutoras para abastecimento de água da capital. Parte da ferrovia existe até hoje na ligação com o Porto. Outra parte foi desativada e posteriormente utilizada para a construção da linha 2 do Metrô do Rio de Janeiro.
Lima Barreto é considerado um dos maiores autores do Pré-modernismo brasileiro. Marcante em sua obra a crítica sem concessões, eivada de fina ironia. Avesso aos ornamentos, adornos e rebuscamentos, adota uma linguagem simples, coloquial. Foi um cronista da rua, do povo, do subúrbio carioca. Com seu espírito rebelde e seu inconformismo com a mediocridade reinante, tem sua obra tratada como marginal e esquecida por muitos anos. Grande parte de seus livros só foram publicado postumamente. Atualmente foi redescoberto e biografado. Neste ano, foi o autor homenageado na 15ª Flip, a Festa Literária de Paraty. Lima Barreto tem uma escrita que denuncia a realidade brasileira, de grande importância artística e documental, contundente, irônico e melancólico, escrevendo poesia em forma de prosa.
Por F@bio
As formas das coisas saiam modeladas do seio daquela massa de névoa pesada; e, satisfeitas, como se o pesadelo tivesse passado. Primeiro, surgiam as partes baixas, lentamente; e por fim, quase repentinamente, as altas.
À direita, havia a Saúde, a Gamboa, os navios de comércio: galeras de três mastros, cargueiros a vapor, altaneiros barcos de vela - que iam saindo da bruma, e, por instantes, aquilo tudo tinha um ar de paisagem holandesa; à esquerda, era o saco da Raposa, o Retiro Saudoso, a Sapucaia horrenda, a ilha do Governador, os Órgãos Azuis, altos de tocar no céu; em frente, a ilha dos Ferreiros, com seus depósitos de carvão; e, alongando a vista pelo mar sossegado, Niterói, cujas montanhas acabavam de recortar-se no céu azul, à luz daquela manhã atrasada".
Transcrito do livro Triste Fim de Polícarpo Quaresma, de Lima Barreto, páginas 80 e 81. São Paulo: Clube do Livro, 1967.
Afonso Henriques de Lima Barreto nasceu no Rio de Janeiro em 13 de maio de 1881. Filho de mulatos, o pai, João Henriques de Lima Barreto, tipógrafo e a mãe, Amália, professora, de saúde frágil, deixa o filho Afonso órfão quando ainda não completara os sete. Com essa idade participou das comemorações da abolição da escravidão, quando da assinatura da lei Áurea pela princesa Isabel. Mas a lei que finalmente aboliu a escravidão não teve o mesmo resultado em abolir o preconceito que marcará fortemente a vida e obra do escritor carioca. Seu pai fez todos os esforços para tornar o primogênito doutor, incentivando-o a cursar a Politécnica e formar-se engenheiro civil. Mas, com a república João Henriques perde o emprego de tipógrafo. Contado com a influência do amigo e protetor senador Afonso Celso, padrinho do filho mais velho, tornou-se administrador da colônia de alienados da Ilha do Governador, para onde se muda com a família. E será esse período morando na colônia que constituirá a grande inspiração da obra de Lima Barreto, de forte teor biográfico. A loucura vizinha acaba instalando-se no seio familiar, com seu pai sendo internado pela primeira vez em 1902. Posteriormente, vitima do alcoolismo, o próprio Lima será internado por mais de uma vez. Com a doença do pai, abandona os estudos e inicia carreira de amanauense (escriturário) no Ministério da Guerra. Também trabalha como jornalista. Em 1909 consegue publicar, em Lisboa, o seu romance Recordações do Escrivão Isaías Caminha. Em 1911 publica no Jornal do Comércio o romance Triste Fim de Policarpo Quaresma na forma de folhetim. Em 1914 é internado pela primeira vez num hospício, o que irá se repetir em 1919. Em 1915, mais uma vez na forma de folhetim, publica o romance Numa e a Ninfa. Em 1922, vitima do alcoolismo e de um colapso, falece no Rio de Janeiro em 1º de novembro. Dois dias depois morre seu pai.
No trecho transcrito, o protagonista do mais notório romance de Lima Barreto, Policarpo Quaresma, inspirado em seu pai, encontra-se na Ponta do Caju, onde hoje situa-se o Terminal de Contêineres do Porto do Rio de Janeiro. Nesse mesmo local fica a Casa de Banhos de Dom João VI, que por recomendação médica se banhava naquela região para tratar de doenças de pele. Segundo o cronista C. J. Dunlop: "O Caju era uma região belíssima, de praias com areias branquinhas e água cristalina, onde não era rara a visão do fundo da Baía, tendo como habitantes comuns os camarões, cavalos-marinhos, sardinhas e até mesmo baleias" (http://www.rioecultura.com.br/coluna_patrimonio/coluna_patrimonio.asp?patrim_cod=61). No trecho citado, escrito cerca de 90 anos após, Lima Barreto já descreve o local como de águas impuras. Hoje o casarão abriga o Museu da Limpeza Urbana e fica distante do mar em razão dos aterros.
O autor descreve a geografia da região, apontando à direita os bairros da Saúde, Gamboa e o porto com seus navios e cargueiros, atualmente uma região redescoberta e remodelada pelas obras do Porto Maravilha. À esquerda aponta regiões que já foram completamente apagadas do mapa, em vista dos aterros (Saco da Raposa, Retiro Saudoso, Sapucaia). Resistiram a Ilha do Governador e a vista da Serra do Órgãos (azul quando a poluição permite). A frente, Niterói. A citada estrada de ferro Rio-Douro inaugurada em 1883 ia do Caju até a Represa Rio d'Ouro (Tinguá) e teve o objetivo inicial de viabilizar a construção de adutoras para abastecimento de água da capital. Parte da ferrovia existe até hoje na ligação com o Porto. Outra parte foi desativada e posteriormente utilizada para a construção da linha 2 do Metrô do Rio de Janeiro.
Lima Barreto é considerado um dos maiores autores do Pré-modernismo brasileiro. Marcante em sua obra a crítica sem concessões, eivada de fina ironia. Avesso aos ornamentos, adornos e rebuscamentos, adota uma linguagem simples, coloquial. Foi um cronista da rua, do povo, do subúrbio carioca. Com seu espírito rebelde e seu inconformismo com a mediocridade reinante, tem sua obra tratada como marginal e esquecida por muitos anos. Grande parte de seus livros só foram publicado postumamente. Atualmente foi redescoberto e biografado. Neste ano, foi o autor homenageado na 15ª Flip, a Festa Literária de Paraty. Lima Barreto tem uma escrita que denuncia a realidade brasileira, de grande importância artística e documental, contundente, irônico e melancólico, escrevendo poesia em forma de prosa.
Por F@bio
quarta-feira, 5 de julho de 2017
Agosto – Rubem Fonseca
Agosto – Rubem Fonseca
“Ao amanhecer daquele dia 1º de agosto de 1954, o comissário de polícia Alberto Mattos, cansado e com dor de estômago, colocou dois comprimidos de antiácido na boca. Enquanto mastigava os comprimidos, folheou o livro de direito civil que estava sobre a mesa. Sempre fora péssimo aluno de direito civil na faculdade. Tinha que estudar muito aquela matéria se quisesse passar no concurso para juiz em novembro...
Bateram na porta.
'Entra', disse o comissário.
O investigador Rosalvo, que trabalhava nos plantões com Mattos, entrou no gabinete. O comissário acreditava que Rosalvo não recebia suborno dos bicheiros nem dos espanhóis que exploravam o latrocínio. Na verdade, porém, Rosalvo era um come-quieto, na gíria policial um tira que se corrompia de maneira dissimulada, sem os colegas saberem...
Às onze horas olhou para o relógio, ansioso para que passassem logo os sessenta minutos que faltavam para encerrar-se o plantão. Mas nesse instante chegou uma RP. A Central recebera a comunicação de um homicídio. Alberto Mattos chamou Rosalvo para acompanhá-lo ao local...
'Como é o nome do morto?
'Paulo Machado Gomes Aguiar.'
'Profissão?'
'Industrial...'
...
'Paulo Machado Gomes Aguiar, disse Rosalvo, consultando um bloco que tinha na mão, ‘brasileiro, branco, nascido aqui no Distrito Federal em 12 de janeiro de 1924. O pai médico, a mãe de prendas domésticas, ambos falecidos. Estudou no Colégio São Joaquim e cursou a Faculdade Nacional de Direito, onde se formou em 1947. Nunca exerceu a advocacia. Casou-se em 1950 com Luciana Borges, filha de um banqueiro. Consta que deu o golpe do baú. Em 1951 fundou a empresa de importação e exportação Cemtex, que em pouco tempo se tornou uma das maiores do país. Tem contatos com altas autoridades do governo. Consta que seria testa de ferro de grupos estrangeiros. Li na Tribuna –‘
‘Deixa as intrigas políticas para o fim. Primeiro os fatos.’
‘As negociatas da Cemtex são fatos. Por exemplo: a empresa conseguiu uma licença de importação da Cexim no valor de cinquenta milhões de dólares. O Banco do Brasil nunca deu tanto dinheiro a ninguém, está na cara que é mais uma safadeza patrocinada por algum figurão de cima. Aguiar era amigo do senador Vitor Freitas, que provavelmente é um dos que mexem os pauzinhos para ele.’
'Adiante.'
'O Gomes Aguiar tinha uma vida social muito ativa. Andei espiando umas coleções de jornais velhos e vi fotos dele com o Vitor Freitas nas colunas sociais. E também com o primo e outras figuras da alta roda, principalmente o Pedro Lomagno, filho do falecido Lomagno, rei do café.'
...
'Cala a boca, Clemente', disse Vitor, suspirando. 'Afinal, qual é o problema?'
'Qual o problema? Qual o problema? O assassinato de Paulo!, exclamou Claudio. 'O acionista majoritário da Cemtex agora é a Luciana.'
'Aquela harpia ninfomaníaca?, disse Freitas.
'Não diga besteira', disse Lomagno, com uma violência que surpreendeu Freitas. 'Você não conhece a Luciana', acrescentou Lomagno, controlando sua inesperada fúria.
'Talvez não conheça mesmo... Eu apenas estava repetindo...'
'Vamos mudar de assunto', cortou Lomagno, secamente.
'Pedi ao Magalhães para falar com o Gregório, para ver se ele conseguia transferir a licença de importação para a Brasfesa', disse Claudio, olhando timidamente para Lomagno. 'O crioulo não quis conversa. O Magalhães morre de medo dele.'
'O Gregório depois que recebeu a Maria Quitéria ficou ainda mais arrogante. Um absurdo, a maior condecoração do Exército ser dada a esse indivíduo.'
'Você podia falar diretamente com o Souza Dantas', disse Claudio.'Como presidente do Banco do Brasil ele manda na Cexim'.
...
'Mattos falando.'
'Meu nome é Pedro Lomagno.'
'Adiante.'
'Gostaria de conversar com o senhor.'
...
Trinta minutos depois o comissário chegava ao escritório da Lomagno & Cia., na Avenida Graça Aranha...
Uma secretária conduziu o comissário à sala de Pedro Lomagno.
...
‘O senhor sabe como é o Brasil...’
‘Não sei. Me diga.’
‘Se o senhor tivesse uma empresa de importação e exportação saberia’
‘Eu não tenho.’
‘Para se importar ou exportar qualquer coisa é preciso uma licença da Cexim. Isso não é fácil de conseguir. Muitas vezes é necessária a colaboração de um amigo influente. O tenente Gregório ajudou Paulo a conseguir a licença...importante...para a empresa dele, a Cemtex, na qual aliás eu tenho uma participação societária. Para fazer o Brasil crescer os empresários precisam se humilhar pedindo favores.”
Transcrito do livro Agosto, de Rubem Fonseca. Rio de Janeiro: MEDIAfashion, 2008. (páginas 10, 11, 49, 50, 107, 206, 209)
Agosto foi publicado originalmente em 1990 e, em pouco tempo, ganhou traduções no México, Colômbia, Portugal, Itália, Espanha, Holanda, França (2 edições) e Alemanha. Na televisão gerou uma minissérie em 16 capítulos, exibidos a partir de 24 de agosto de 1993. O romance que mistura ficção e realidade, com narrativas de histórias cruzadas e paralelas de um grande número de personagens. Obra envolvente que mantém um clima tenso e de mistério até o final. Fonseca situa o romance, com característica de história policial, nos dias finais da crise política de 1954 que culminou com o suicídio de Getúlio Vargas.
Rubem Fonseca nasceu em Juíz de Fora, Minas Gerais, no dia 11 de maio de 1925. Estudou Direito na Universidade do Brasil, hoje Universidade Federal do Rio de Janeiro. Entrou para a polícia como comissário do Distrito Policial de São Cristóvão do antigo Distrito Federal. Mas trabalhou por pouco tempo nas ruas, pois era um policial de gabinete, cuidava dos serviços de relações públicas da corporação. Em 1953, foi escolhido para fazer um curso de aperfeiçoamento nos Estados Unidos. Durante esse período fez mestrado em Administração na New York University. Regressou ao Brasil em 1954. Em 1958 foi exonerado da polícia. Trabalhou na companhia de eletricidade Light do Rio de Janeiro, quando desenvolvia de forma paralela as atividades de argumentista e roteirista de filmes.
Estreou na literatura com o livro de contos "Os Prisioneiros", em 1963. Retrata em seus livros o mundo violento das cidades. Seu livro de contos "Feliz Ano Novo", publicado em 1975, foi recolhido pela censura no ano seguinte e só foi liberado de forma definitiva em 1989, depois de longa batalha judicial. Com suas narrativas velozes e sofisticadamente cosmopolitas, cheias de violência, erotismo, irreverência, reinventou uma literatura noir.
É considerado um dos maiores ficcionistas em atividades no Brasil, tendo ganho o prêmio Coruja de Ouro, pelo roteiro de "Relatório de um Homem Casado". Recebeu o prêmio Kikito, do festival de Gramado, pelo roteiro de "Stelinha". Recebeu o Prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte, pelo roteiro de "A Grande Arte". Recebeu o Prêmio Jabuti e, em 2003, venceu o Prêmio Camões, o mais prestigiado da língua portuguesa.
A Carteira de Exportação e Importação (Cexim) criada, em 1941, como uma agência federal vinculada ao Banco do Brasil encarregada de exercer o controle das importações e exportações. A partir de 1948, em face da rápida exaustão das reservas em moedas conversíveis, foi decidido estabelecer rígidos controles quantitativos das importações. Os controles se processavam através da emissão de licenças em função de uma ordenação de prioridades, a cargo da Cexim, que assim ficava no centro de um importante jogo de interesses. Surgem fortes pressões, veiculadas pela imprensa, contra a agência, a partir de acusações de corrupção vinculada a "negociações" das licenças de importação. Em 1953 foi promovida uma ampla reforma cambial e extinta a Cexim. Em seu lugar foi criada a Carteira de Comércio Exterior (Cacex) também como agência federal vinculada ao Banco do Brasil. O órgão administrou as importações e exportações e teve papel relevante na implementação da política de substituição de importações. Em 1966 passou a exercer a função de secretaria-executiva do Conselho Nacional de Comércio Exterior. Nos anos 70/80, em razão das crises do petróleo e da dívida externa, teve papel destacado no controle das importações e estímulo às exportações. Foi extinto em 1990 pelo Governo Collor, sendo suas atribuições transferidas para a administração direta, principalmente para a Secretaria de Comércio Exterior do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior.
Rubem Fonseca cria com grande maestria um romance policial tendo por pano de fundo a crise política vivida nos últimos 25 dias do Governo Vargas, presidente eleito democraticamente em 1951. Para não ser vítima de um golpe, articulado por civis e militares, tornou-se vítima de si mesmo e cometeu suicídio, "saindo da vida para entrar na história". Neste cenário de grande ebulição política, Fonseca cria uma instigante ficção policial, a partir do assassinato de um empresário envolto em transação ilícita para a obtenção de vultosa guia de importação que permitiria à empresa Cemtex a trazida do exterior de bens no valor de cinqüenta milhões de dólares. Como se trata de uma obra ficcional não há que se cobrar do autor o fato de a Cexim não mais existir em agosto de 1954. O protagonista Mattos, embora doente e envolto num triangulo amoroso, consegue desvendar o crime e identificar o criminoso. Mas chega a hora em que a caça tem o seu dia de caçador.
Por F@bio
“Ao amanhecer daquele dia 1º de agosto de 1954, o comissário de polícia Alberto Mattos, cansado e com dor de estômago, colocou dois comprimidos de antiácido na boca. Enquanto mastigava os comprimidos, folheou o livro de direito civil que estava sobre a mesa. Sempre fora péssimo aluno de direito civil na faculdade. Tinha que estudar muito aquela matéria se quisesse passar no concurso para juiz em novembro...
Bateram na porta.
'Entra', disse o comissário.
O investigador Rosalvo, que trabalhava nos plantões com Mattos, entrou no gabinete. O comissário acreditava que Rosalvo não recebia suborno dos bicheiros nem dos espanhóis que exploravam o latrocínio. Na verdade, porém, Rosalvo era um come-quieto, na gíria policial um tira que se corrompia de maneira dissimulada, sem os colegas saberem...
Às onze horas olhou para o relógio, ansioso para que passassem logo os sessenta minutos que faltavam para encerrar-se o plantão. Mas nesse instante chegou uma RP. A Central recebera a comunicação de um homicídio. Alberto Mattos chamou Rosalvo para acompanhá-lo ao local...
'Como é o nome do morto?
'Paulo Machado Gomes Aguiar.'
'Profissão?'
'Industrial...'
...
'Paulo Machado Gomes Aguiar, disse Rosalvo, consultando um bloco que tinha na mão, ‘brasileiro, branco, nascido aqui no Distrito Federal em 12 de janeiro de 1924. O pai médico, a mãe de prendas domésticas, ambos falecidos. Estudou no Colégio São Joaquim e cursou a Faculdade Nacional de Direito, onde se formou em 1947. Nunca exerceu a advocacia. Casou-se em 1950 com Luciana Borges, filha de um banqueiro. Consta que deu o golpe do baú. Em 1951 fundou a empresa de importação e exportação Cemtex, que em pouco tempo se tornou uma das maiores do país. Tem contatos com altas autoridades do governo. Consta que seria testa de ferro de grupos estrangeiros. Li na Tribuna –‘
‘Deixa as intrigas políticas para o fim. Primeiro os fatos.’
‘As negociatas da Cemtex são fatos. Por exemplo: a empresa conseguiu uma licença de importação da Cexim no valor de cinquenta milhões de dólares. O Banco do Brasil nunca deu tanto dinheiro a ninguém, está na cara que é mais uma safadeza patrocinada por algum figurão de cima. Aguiar era amigo do senador Vitor Freitas, que provavelmente é um dos que mexem os pauzinhos para ele.’
'Adiante.'
'O Gomes Aguiar tinha uma vida social muito ativa. Andei espiando umas coleções de jornais velhos e vi fotos dele com o Vitor Freitas nas colunas sociais. E também com o primo e outras figuras da alta roda, principalmente o Pedro Lomagno, filho do falecido Lomagno, rei do café.'
...
'Cala a boca, Clemente', disse Vitor, suspirando. 'Afinal, qual é o problema?'
'Qual o problema? Qual o problema? O assassinato de Paulo!, exclamou Claudio. 'O acionista majoritário da Cemtex agora é a Luciana.'
'Aquela harpia ninfomaníaca?, disse Freitas.
'Não diga besteira', disse Lomagno, com uma violência que surpreendeu Freitas. 'Você não conhece a Luciana', acrescentou Lomagno, controlando sua inesperada fúria.
'Talvez não conheça mesmo... Eu apenas estava repetindo...'
'Vamos mudar de assunto', cortou Lomagno, secamente.
'Pedi ao Magalhães para falar com o Gregório, para ver se ele conseguia transferir a licença de importação para a Brasfesa', disse Claudio, olhando timidamente para Lomagno. 'O crioulo não quis conversa. O Magalhães morre de medo dele.'
'O Gregório depois que recebeu a Maria Quitéria ficou ainda mais arrogante. Um absurdo, a maior condecoração do Exército ser dada a esse indivíduo.'
'Você podia falar diretamente com o Souza Dantas', disse Claudio.'Como presidente do Banco do Brasil ele manda na Cexim'.
...
'Mattos falando.'
'Meu nome é Pedro Lomagno.'
'Adiante.'
'Gostaria de conversar com o senhor.'
...
Trinta minutos depois o comissário chegava ao escritório da Lomagno & Cia., na Avenida Graça Aranha...
Uma secretária conduziu o comissário à sala de Pedro Lomagno.
...
‘O senhor sabe como é o Brasil...’
‘Não sei. Me diga.’
‘Se o senhor tivesse uma empresa de importação e exportação saberia’
‘Eu não tenho.’
‘Para se importar ou exportar qualquer coisa é preciso uma licença da Cexim. Isso não é fácil de conseguir. Muitas vezes é necessária a colaboração de um amigo influente. O tenente Gregório ajudou Paulo a conseguir a licença...importante...para a empresa dele, a Cemtex, na qual aliás eu tenho uma participação societária. Para fazer o Brasil crescer os empresários precisam se humilhar pedindo favores.”
Transcrito do livro Agosto, de Rubem Fonseca. Rio de Janeiro: MEDIAfashion, 2008. (páginas 10, 11, 49, 50, 107, 206, 209)
Agosto foi publicado originalmente em 1990 e, em pouco tempo, ganhou traduções no México, Colômbia, Portugal, Itália, Espanha, Holanda, França (2 edições) e Alemanha. Na televisão gerou uma minissérie em 16 capítulos, exibidos a partir de 24 de agosto de 1993. O romance que mistura ficção e realidade, com narrativas de histórias cruzadas e paralelas de um grande número de personagens. Obra envolvente que mantém um clima tenso e de mistério até o final. Fonseca situa o romance, com característica de história policial, nos dias finais da crise política de 1954 que culminou com o suicídio de Getúlio Vargas.
Rubem Fonseca nasceu em Juíz de Fora, Minas Gerais, no dia 11 de maio de 1925. Estudou Direito na Universidade do Brasil, hoje Universidade Federal do Rio de Janeiro. Entrou para a polícia como comissário do Distrito Policial de São Cristóvão do antigo Distrito Federal. Mas trabalhou por pouco tempo nas ruas, pois era um policial de gabinete, cuidava dos serviços de relações públicas da corporação. Em 1953, foi escolhido para fazer um curso de aperfeiçoamento nos Estados Unidos. Durante esse período fez mestrado em Administração na New York University. Regressou ao Brasil em 1954. Em 1958 foi exonerado da polícia. Trabalhou na companhia de eletricidade Light do Rio de Janeiro, quando desenvolvia de forma paralela as atividades de argumentista e roteirista de filmes.
Estreou na literatura com o livro de contos "Os Prisioneiros", em 1963. Retrata em seus livros o mundo violento das cidades. Seu livro de contos "Feliz Ano Novo", publicado em 1975, foi recolhido pela censura no ano seguinte e só foi liberado de forma definitiva em 1989, depois de longa batalha judicial. Com suas narrativas velozes e sofisticadamente cosmopolitas, cheias de violência, erotismo, irreverência, reinventou uma literatura noir.
É considerado um dos maiores ficcionistas em atividades no Brasil, tendo ganho o prêmio Coruja de Ouro, pelo roteiro de "Relatório de um Homem Casado". Recebeu o prêmio Kikito, do festival de Gramado, pelo roteiro de "Stelinha". Recebeu o Prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte, pelo roteiro de "A Grande Arte". Recebeu o Prêmio Jabuti e, em 2003, venceu o Prêmio Camões, o mais prestigiado da língua portuguesa.
A Carteira de Exportação e Importação (Cexim) criada, em 1941, como uma agência federal vinculada ao Banco do Brasil encarregada de exercer o controle das importações e exportações. A partir de 1948, em face da rápida exaustão das reservas em moedas conversíveis, foi decidido estabelecer rígidos controles quantitativos das importações. Os controles se processavam através da emissão de licenças em função de uma ordenação de prioridades, a cargo da Cexim, que assim ficava no centro de um importante jogo de interesses. Surgem fortes pressões, veiculadas pela imprensa, contra a agência, a partir de acusações de corrupção vinculada a "negociações" das licenças de importação. Em 1953 foi promovida uma ampla reforma cambial e extinta a Cexim. Em seu lugar foi criada a Carteira de Comércio Exterior (Cacex) também como agência federal vinculada ao Banco do Brasil. O órgão administrou as importações e exportações e teve papel relevante na implementação da política de substituição de importações. Em 1966 passou a exercer a função de secretaria-executiva do Conselho Nacional de Comércio Exterior. Nos anos 70/80, em razão das crises do petróleo e da dívida externa, teve papel destacado no controle das importações e estímulo às exportações. Foi extinto em 1990 pelo Governo Collor, sendo suas atribuições transferidas para a administração direta, principalmente para a Secretaria de Comércio Exterior do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior.
Rubem Fonseca cria com grande maestria um romance policial tendo por pano de fundo a crise política vivida nos últimos 25 dias do Governo Vargas, presidente eleito democraticamente em 1951. Para não ser vítima de um golpe, articulado por civis e militares, tornou-se vítima de si mesmo e cometeu suicídio, "saindo da vida para entrar na história". Neste cenário de grande ebulição política, Fonseca cria uma instigante ficção policial, a partir do assassinato de um empresário envolto em transação ilícita para a obtenção de vultosa guia de importação que permitiria à empresa Cemtex a trazida do exterior de bens no valor de cinqüenta milhões de dólares. Como se trata de uma obra ficcional não há que se cobrar do autor o fato de a Cexim não mais existir em agosto de 1954. O protagonista Mattos, embora doente e envolto num triangulo amoroso, consegue desvendar o crime e identificar o criminoso. Mas chega a hora em que a caça tem o seu dia de caçador.
Por F@bio
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