"Quaresma jantava e almoçava ali mesmo. Não era raro também dormir. As refeições eram-lhes fornecidas por um frege próximo e ele dormia em um quarto daquela edificação imperial. Porque a casa em que se acantonara o destacamento era o pavilhão do Imperador, situado na antiga Quinta da Ponta-do-Caju. Ficavam nela também a estação da estrada-de-ferro do Rio-Douro e uma grande e bulhenta serraria. Quaresma veio até a porta, olhou a praia suja e ficou admirado que o Imperador a quisesse para banhos. A cerração ia-se dissipando inteiramente.
As formas das coisas saiam modeladas do seio daquela massa de névoa pesada; e, satisfeitas, como se o pesadelo tivesse passado. Primeiro, surgiam as partes baixas, lentamente; e por fim, quase repentinamente, as altas.
À direita, havia a Saúde, a Gamboa, os navios de comércio: galeras de três mastros, cargueiros a vapor, altaneiros barcos de vela - que iam saindo da bruma, e, por instantes, aquilo tudo tinha um ar de paisagem holandesa; à esquerda, era o saco da Raposa, o Retiro Saudoso, a Sapucaia horrenda, a ilha do Governador, os Órgãos Azuis, altos de tocar no céu; em frente, a ilha dos Ferreiros, com seus depósitos de carvão; e, alongando a vista pelo mar sossegado, Niterói, cujas montanhas acabavam de recortar-se no céu azul, à luz daquela manhã atrasada".
Transcrito do livro Triste Fim de Polícarpo Quaresma, de Lima Barreto, páginas 80 e 81. São Paulo: Clube do Livro, 1967.
Afonso Henriques de Lima Barreto nasceu no Rio de Janeiro em 13 de maio de 1881. Filho de mulatos, o pai, João Henriques de Lima Barreto, tipógrafo e a mãe, Amália, professora, de saúde frágil, deixa o filho Afonso órfão quando ainda não completara os sete. Com essa idade participou das comemorações da abolição da escravidão, quando da assinatura da lei Áurea pela princesa Isabel. Mas a lei que finalmente aboliu a escravidão não teve o mesmo resultado em abolir o preconceito que marcará fortemente a vida e obra do escritor carioca. Seu pai fez todos os esforços para tornar o primogênito doutor, incentivando-o a cursar a Politécnica e formar-se engenheiro civil. Mas, com a república João Henriques perde o emprego de tipógrafo. Contado com a influência do amigo e protetor senador Afonso Celso, padrinho do filho mais velho, tornou-se administrador da colônia de alienados da Ilha do Governador, para onde se muda com a família. E será esse período morando na colônia que constituirá a grande inspiração da obra de Lima Barreto, de forte teor biográfico. A loucura vizinha acaba instalando-se no seio familiar, com seu pai sendo internado pela primeira vez em 1902. Posteriormente, vitima do alcoolismo, o próprio Lima será internado por mais de uma vez. Com a doença do pai, abandona os estudos e inicia carreira de amanauense (escriturário) no Ministério da Guerra. Também trabalha como jornalista. Em 1909 consegue publicar, em Lisboa, o seu romance Recordações do Escrivão Isaías Caminha. Em 1911 publica no Jornal do Comércio o romance Triste Fim de Policarpo Quaresma na forma de folhetim. Em 1914 é internado pela primeira vez num hospício, o que irá se repetir em 1919. Em 1915, mais uma vez na forma de folhetim, publica o romance Numa e a Ninfa. Em 1922, vitima do alcoolismo e de um colapso, falece no Rio de Janeiro em 1º de novembro. Dois dias depois morre seu pai.
No trecho transcrito, o protagonista do mais notório romance de Lima Barreto, Policarpo Quaresma, inspirado em seu pai, encontra-se na Ponta do Caju, onde hoje situa-se o Terminal de Contêineres do Porto do Rio de Janeiro. Nesse mesmo local fica a Casa de Banhos de Dom João VI, que por recomendação médica se banhava naquela região para tratar de doenças de pele. Segundo o cronista C. J. Dunlop: "O Caju era uma região belíssima, de praias com areias branquinhas e água cristalina, onde não era rara a visão do fundo da Baía, tendo como habitantes comuns os camarões, cavalos-marinhos, sardinhas e até mesmo baleias" (http://www.rioecultura.com.br/coluna_patrimonio/coluna_patrimonio.asp?patrim_cod=61). No trecho citado, escrito cerca de 90 anos após, Lima Barreto já descreve o local como de águas impuras. Hoje o casarão abriga o Museu da Limpeza Urbana e fica distante do mar em razão dos aterros.
O autor descreve a geografia da região, apontando à direita os bairros da Saúde, Gamboa e o porto com seus navios e cargueiros, atualmente uma região redescoberta e remodelada pelas obras do Porto Maravilha. À esquerda aponta regiões que já foram completamente apagadas do mapa, em vista dos aterros (Saco da Raposa, Retiro Saudoso, Sapucaia). Resistiram a Ilha do Governador e a vista da Serra do Órgãos (azul quando a poluição permite). A frente, Niterói. A citada estrada de ferro Rio-Douro inaugurada em 1883 ia do Caju até a Represa Rio d'Ouro (Tinguá) e teve o objetivo inicial de viabilizar a construção de adutoras para abastecimento de água da capital. Parte da ferrovia existe até hoje na ligação com o Porto. Outra parte foi desativada e posteriormente utilizada para a construção da linha 2 do Metrô do Rio de Janeiro.
Lima Barreto é considerado um dos maiores autores do Pré-modernismo brasileiro. Marcante em sua obra a crítica sem concessões, eivada de fina ironia. Avesso aos ornamentos, adornos e rebuscamentos, adota uma linguagem simples, coloquial. Foi um cronista da rua, do povo, do subúrbio carioca. Com seu espírito rebelde e seu inconformismo com a mediocridade reinante, tem sua obra tratada como marginal e esquecida por muitos anos. Grande parte de seus livros só foram publicado postumamente. Atualmente foi redescoberto e biografado. Neste ano, foi o autor homenageado na 15ª Flip, a Festa Literária de Paraty. Lima Barreto tem uma escrita que denuncia a realidade brasileira, de grande importância artística e documental, contundente, irônico e melancólico, escrevendo poesia em forma de prosa.
Por F@bio
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