domingo, 26 de outubro de 2014

Ópera do Malandro - Chico Buarque


 

Ópera


 

(JOÃO ALEGRE)

Telegrama
Do Alabama
Pro senhor
Max Overseas
Ai, meu Deus do céu
Me sinto tão feliz

(TERESINHA)

Chegou a confirmação
Da United coisa e tal
Que nos passa a concessão
Para o náilon tropical

(MAX)

Então nós vamos montar
Em São Paulo um fabricão

(TERESINHA)

Depois vamos exportar
Fio de náilon pro Japão

(MAX)

Sei que o náilon tem valor
Mas começa a me enjoar
Tive idéia bem melhor
Nós vamos ramificar

(TERESINHA)

 Já ramifiquei,ha ha
Fiz acordo com a Shell
Coca-Cola, RCA
E vai ser sopa no mel

(CORO)

Que beleza
Que riqueza
Tá chovendo
Da matriz
Ai, meu Deus do céu
Me sinto tão feliz

(MAX)

Que tal juntarmos
Esses capitais
Abrindo um banco
Em Minas Gerais

(TERESINHA)

Que brilhante idéia, meu amor
Que plano original
Com fundos no exterior
Você fundar
Um banco nacional

(CAPANGAS DE MAX)

E eu que já fui
Um pobre marginal
Sem documento
E sem moral
Hei de ser um bom profissional
Vou ser quase um doutor
Contínuo da senhora
E do senhor
Bancário ou contador

(CORO)

Que sucesso
O progresso
Corta o mal
Pela raiz
Ai, meu Deus do céu
Me sinto tão feliz

(CHAVES)

Irmão
Nem começar eu sei
Receio te inibir

(MAX)

Tua vontade é lei
É falar
É mandar
É exigir

(CHAVES)

É que
Num mundo tão cruel
Cheio de inveja e fel
Não lhe fará mal
Ter à mão
Proteção
Policial
Quer os meus préstimos?

(MAX)

Eu acho ótimo

(BARRABÁS)

Serve um acólito?


(MAX)

Também vou te empregar

(LÚCIA)

Eu não
Tenho com quem deixar
Meu filho que já vem

(MAX)

Barrabás é um par
Exemplar
Quer casar

(BARRABÁS)

E adoro neném

(CORO)

Maravilha
Que família
Dois pombinhos
E um petiz
Ai, meu Deus do céu
Me sinto tão feliz

(VITÓRIA)

Só tenho um único
Breve reparo
A tão preclaro
Genro viril
É o esquecimento
Do sacramento
Afinal
Se casou
Só no civil
Oh oh oh
Oh oh oh
Só no civil
Oh oh oh
Oh oh oh
Só no civil

(MAX)

Mas nesse ínterim
Mudei de crença
Já peço a benção
No santo altar

(VITÓRIA)

Que maravilha
Não perco a filha
E um varão
Bonitão
Eu vou ganhar
Ah ah ah
Ah ah ah
Eu vou ganhar
Ah ah ah
Ah ah ah
Eu vou ganhar

(DURAN)

Minha filha eu desejo pedir teu perdão

(TERESINHA)

Oh, meu pai, isso é bom demais!
Finalmente! Até que enfim!

(DURAN)

Não sei como fui pra você tão durão
Tão mandão, tão sem coração
Tão malvado assim

(MAX)

Meu sogro, o senhor não sabe
Quanta alegria
Me dá, ao dizer que já se juntou
Aos nossos

(DURAN)

Só Deus sabe há quanto tempo
Eu tanto queria
Poder apertar esses ossos

(CORO)

Que euforia
Quem diria
Como os grandes
São gentis
Ai, meu Deus do céu
Me sinto tão feliz

(DURAN)

Não quero ser
Nas suas costas um fardo
Porém, talvez
Eu necessite um resguardo

(MAX)

Tua instituição
Tão tradicional
Vai ter um padrão
Moderno
Cristão e ocidental

(FUNCIONÁRIAS DE DURAN)

Vamos participar
Dessa evolução
Vamos todas entrar
Na linha de produção
Vamos abandonar
O sexo artesanal
Vamos todas amar
Em escala industrial

(TODOS)

O sol nasceu
No mar de Copacabana
Pra quem viveu
Só de café e banana
Tem gilete, Kibon
Lanchonete, Neon
Petróleo
Cinemascope, sapólio
Ban-lon
Shampoo, tevê
Cigarros longos e finos
Blindex fumê
Já tem Napalm e Kolinos
Tem cassete e ray-ban
Camionete e sedan
Que sonho
Corcel, Brasília, plutônio
Shazam
Que orgia
Que magia
Reina a paz
No meu país
Ai, meu Deus do céu
Me sinto tão feliz

 

“Ópera do Malandro”, de 1978, é um musical de Chico Buarque de Holanda. Conta-se que ele teve a ideia de escrever uma adaptação para os clássicos “Ópera dos Mendigos”, de John Gay, e “A Ópera dos Três Vinténs”, de Bertolt Brecht e Kurt Weill,  durante conversa com Ruy Guerra, cineasta e parceiro de Chico no musical “Calabar”.

A Ópera do Malandro tem um texto bastante atual. O cafetão Duran, que se passa por um grande comerciante, e sua mulher Vitória, também cafetina, têm a expectativa de casar a filha Teresinha com um homem importante na sociedade, mas ela se envolve com Max Overseas, traficante que vive de golpes e mutretas com o chefe de polícia Chaves. Os outros personagens são Lucia, filha de Chaves, que também foi seduzida por Max, as prostitutas, a travesti Geni, os capangas de Max e o narrador João.

A peça se passa na década de 1940, tendo como pano de fundo a legalidade do jogo, a prostituição e o contrabando, questões que continuam a fazer parte da cena cotidiana da atualidade.

Tive a oportunidade de assistir duas montagens da peça, a primeira da dupla Charles Muller e Claudio Botelho, com Mauro Mendonça, Lucinha Lins, Soraya Ranvele, Alexandre Schumacker e outros. A segunda e mais recente de João Falcão com um elenco quase que exclusivamente masculino, acaba tendo um viés mais cômico. Chama a atenção a genialidade de Chico Buarque, autor de todas as músicas, que se harmonizam e valorizam o texto, inspirado em duas obras de grande reconhecimento. Quem ainda não viu, não deve perder.
Por Fabio.

sexta-feira, 29 de agosto de 2014

Quem Fala? - Fabio M. Faria

"Quem fala?
de Fabio Martins Faria
(...)

Naquela época, o país estava em plena crise do petróleo. Não havia divisas suficientes para pagar os compromissos internacionais. A saída era realizar um controle diário das exportações e importações para saber como evoluía o saldo de dólares.

Certa noite, um novo funcionário estava sozinho na seção, conferindo umas tabelas, no que era reconhecido como um craque.  No meio desse serão, tocou o telefone.

- Alô, boa noite! - atendeu meio sonado o zeloso funcionário.

- É da estatística? - indagou alguém com uma voz imperial.

- Sim, é do setor de estatística – respondeu o funcionário.

- Eu quero saber da balança. Quero aqui agora na minha sala, traz logo!

- Mas eu não sei onde está – retrucou o empregado com sua sinceridade habitual.

- Como? - grunhiu a voz do outro lado

- Não faço ideia onde está.

- Pois então se vira e traga logo aqui pra mim. É urgente! - ordenou com voz colérica.

- Mas tô sozinho aqui e não sei onde está – respondeu com toda calma o aplicado funcionário.

- Você sabe com quem está falando?

Pelo tom ameaçador, percebeu logo que era o “poderoso chefão”, mas como não tinha contato com ele, resolveu arriscar.

- E o senhor sabe quem está falando?

- Não, seu imbecil, quem está falando aí? – berrou o chefão irado.

- Ainda bem...


- Tum...Tum...Tum..."


Transcrito do livro "Casos e Acasos do Comércio Exterior", São Paulo: Aduaneiras, 2014

Recentemente lançamos o livro durante o Encontro Nacional de Comércio Exterior - ENAEX 2014, realizado pela Associação de Comércio Exterior do Brasil (AEB), nos dias 7 e 8 de agosto, no Rio de Janeiro. Sou organizador do livro, juntamente com o Professor Jovelino Pires. Somos 6 autores: Arthur Pimentel, Edson Lupatini, Eduardo Coelho, Fabio M. Faria, Jovelino Pires e Ricardo Dobbin. O livro tem 32 crônicas que relatam casos pitorescos vividos pelos autores nas suas militâncias no comércio internacional. As criativas ilustrações são de Renato Pires. Abrilhanta o livro, o emocionante prefácio de Ricardo Cravo Albin. Participar dessa iniciativa foi muito divertido e estimulante.
Por F@bio

sábado, 14 de junho de 2014

O Conto da Ilha Desconhecida - José Saramago

"(...) 
Andando, andando, o homem chegou ao porto, foi à doca, perguntou pelo capitão, e enquanto ele não chegava deitou-se a adivinhar qual seria, de quantos barcos ali estavam, o que iria ser o seu, grande já se sabia que não, o cartão de visita do rei era muito claro neste ponto, por conseguinte ficavam de fora os paquetes, os cargueiros e os navios de guerra, tão-pouco poderia ser ele tão pequeno que resistisse mal às forças do vento e aos rigores do mar, o rei também havia sido categórico neste ponto, Que navegue bem e seja seguro, foram estas as suas formais palavras, assim implicitamente excluindo os botes, as faluas e os escaleres, os quais, sendo bons navegantes, e seguros, conforme a condição de cada qual, não tinham nascido para sulcar os oceanos, que é onde se encontram as ilhas desconhecidas. Um pouco afastada dali, escondida por trás de uns bidões, a mulher da limpeza correu os olhos pelos barcos atracados, Para o meu gosto, aquele, pensou, porém a sua opinião não contava, nem sequer havia sido ainda contratada, vamos ouvir antes o que dirá o capitão do porto. O capitão veio, leu o cartão, mirou o homem de alto a baixo, e fez a pergunta que o rei se tinha esquecido de fazer, Sabes navegar, tens carta de navegação, ao que o homem respondeu, Aprenderei no mar. O capitão disse, Não to aconselharia, capitão sou eu, e não me atrevo com qualquer barco, Dá-me então um com que possa atrever-me eu, não, um desses não, dá-me antes um barco que eu respeite e que possa respeitar-me a mim, Essa linguagem é de marinheiro, mas tu não és marinheiro, Se tenho a linguagem, é como se o fosse.
(...)"

Transcrito de O Conto da Ilha Desconhecida de José Samarago, foi lançado em 1997 e está disponível em http://contobrasileiro.com.br/


José Saramago, um dos maiores nomes da literatura portuguesa, jornalista, escritor e poeta, nascido em 1922 e falecido em 2010. Ganhador dos Prêmios Nobel e Camões, tem vasta obra de contos e romances, incluindo Ensaio sobre a Cegueira, adaptado para o cinema. Deixou como legado, além de sua obra, a Fundação José Saramago com o objetivo de defesa dos direitos humanos e do meio ambiente, situada na Casa dos Bicos, em Lisboa - Portugal.
Saramago nos presenteia com um texto, que embora curto, é extremamente denso de conteúdo e imagens. Nos faz questionar sobre nossa acomodação com os papéis sociais e o medo do desconhecido. Nos traz uma escrita que rompe com as regras da gramática, mas não com a musicalidade do texto e a magia das palavras. O conto é divertido e filosófico, no sentido de que nos faz pensar sobre a eterna busca do homem sobre si mesmo e o sentido da vida.
No conto, um homem simples demanda ao Rei um barco para navegar até uma ilha desconhecida, que acredita existir, mas que só de fato saberá se o é, quando lá chegar e torna-la então conhecida.
O sonho e a imaginação tornam a aventura possível. A ficção nos permite viajar até lugares inimagináveis, sem necessariamente sair de onde nos encontramos. Essa é a magia dos livros a nos transportar a lugares possíveis e impossíveis. Para sonhar, basta existir!
Por F@bio

domingo, 8 de junho de 2014

Cais - Conceição Rios


"Quando o mar veio esbarrar na vida,
pouca gente ainda estava no cais.

Não havia mais por quem chorar os sais.
A espuma virou névoa.
A brisa congelou a relva.
O som do navio fantasma
fazia as casas balançarem.

Não era o balanço do mar.
Não era o vai-e-vem de amar.
Não era onde se queria estar.

Era o único lugar."


Transcrito do livro "Confluência", de Conceição Rios, pág. 25. Rio de Janeiro: Ibis Libris, 2009.

Conceição Rios é carioca, poeta, pedagoga pela PUC-RJ, onde trabalhou com arte-educação em permanente contato com o teatro, a música, o cinema, a publicidade, a televisão e até o circo (voador).

O cais é o porto seguro, onde a vida resiste aos tropeços, temores e terrores. A nau da vida faz sua travessia por águas calmas e tormentosas, mas sempre há um cais para nos abrigar do vai-e-vem cotidiano, dos caminhos interrompidos, dos fracassos sofridos ou dos amores partidos.
Por F@bio

quinta-feira, 1 de maio de 2014

Escritos de Vitória - Porto - Jorge Alencar

Apresentação do Livro Escritos de Vitória – PORTO

O Porto sempre esteve presente na minha vida. Especialmente quando adolescente e morador do centro de Vitória. Morava na Beira-Mar e, muitas vezes, percorria os olhos em direção ao Porto. Algumas coisas me intrigavam, a vida dos embarcadiços, as estórias de contrabando, as mensagens escritas nas pedras, os marinheiros do Bar Scandinávia, as prostitutas. Esta é a imagem que conservo do Porto de Vitória.
O apito dos navios ressoando no canal de Vitória... Os navios de guerra... Como gostava de ver os navios de guerra! A formação dos marinheiros, todos de branco no convés. O embarque e desembarque de café, a facilidade com que aqueles homens levantavam e carregavam os sacos de juta impressos com um ramo de café verde. Os novos guindastes, lembro-me bem, acompanhei a montagem deles da escadaria do Palácio.
Uma certa noite, desci do apartamento e deitei-me sobre a balsa que servia para atracar as embarcações da praticagem. Deitado de bruços, olhando rente ao mar, o reflexo das luzes da Beira-Mar, dos prédios, dos navios, dos portos ficou para sempre registrado na minha memória. Esta parte da cidade, para mim, era um grande mistério. Nem tudo que via entendia, mas acreditava que fazia parte da vida do Porto as idas e vindas de diferentes navios e nacionalidades. Houve uma época que eu colecionava maços de cigarros vazios. Só próximo ao Porto se conseguia uma variedade maior de marcas. Às vezes fico imaginando Vitória sem o Porto ou o Porto sem Vitória. O que seria disso? Imagine um elevado ao lado do Porto. O cais virando mão e contramão. Os navios fora do Porto. De repente, quem sabe, um aterro unindo Vitória a Vila Velha. Nossa Senhora!... Isto é delírio.
As ilustrações, os contos, as crônicas, os poemas, presentes nos Escritos de Vitória no futuro poderão ser dos únicos registros do sentimento que o nosso Porto – parte da nossa Memória – inspira em nosso artífices do traço e da palavra. Vale a pena lê-los e entendê-los como cada um vê o seu Porto e como cada um o interpreta.



Fonte: Escritos de Vitória – Uma publicação da Secretaria de Cultura e Turismo da Prefeitura Municipal de Vitória, ES – 1994. Prefeito Municipal, Paulo Hartung. Autor: Jorge Alencar – Secretário  Municipal de Cultura e Esporte  de Vitória - 1994. Ilustração: Atílio Colnago - Ilustrou nesta publicação a crônica "Kallima" da autora Bernadette Lyra

Obtido de: http://www.morrodomoreno.com.br/materias/porto-escritos-de-vitoria.html

Não li o livro, ainda, mas achei muito legal esse texto de apresentação do Jorge Alencar, muito ilustrativo do porto de Vitória. Lembro que, certa vez, fui gravar uma entrevista para o "Bom dia ES". Optaram por uma externa bem no local onde o autor ficava deitado admirando a movimentação dos navios no porto de Vitória. Nesse dia, por sorte, enquanto gravava a entrevista, no canal ao fundo, um navio manobrava. Era o pano de fundo ideal para a entrevista na qual falava sobre o comércio exterior brasileiro, em geral, e capixaba, em particular.
Por F@bio

sábado, 19 de abril de 2014

O Amor Nos Tempos do Cólera (2) - Gabriel García Máquez

"A independência do domínio espanhol, e a seguir a abolição da escravatura, precipitaram o estado de decadência honrada em que nasceu e cresceu o doutor Juvenal Urbino. As grandes famílias de outrora afundavam em silêncio dentro de suas fortalezas desguarnecidas. Nos altos e baixos das ruas empedradas que tão eficazes tinham sido em guerras e desembarques de bucaneiros, as ervas se despenhavam dos balcões e abriam gretas mesmo nos muros de cal e cantaria das mansões mais bem conservadas, e o único sinal de vida às duas da tarde eram os lânguidos exercícios de piano na penumbra da sesta. Por dentro, nos frescos dos quartos de dormir saturados de incenso, as mulheres de guardavam do sol como de um contágio indigno, e mesmo nas missas de madrugada tapavam a cara com a mantilha. Seus amores eram lentos e difíceis, perturbados amiúde por presságios sinistros, e a vida lhes parecia interminável. Ao anoitecer, no instante opressivo da passagem para as sombras, subia dos pântanos um turbilhão de pernilongos carniceiros, e uma branda exalação de merda humana, cálida e triste, revolvia no fundo da alma a certeza da morte.

Pois a vida própria da cidade colonial, que o jovem Juvenal Urbino costumava idealizar em suas melancolias de Paris, era então uma ilusão da memória. Seu comércio tinha sido o mais próspero do Caribe no século XVIII, sobretudo graças ao privilégio ingrato de ser o maior mercado de escravos africanos nas Américas. Era além disso residência habitual dos vice-reis do Novo Reino de Granada, que preferiam  governar daqui, frente ao oceano do mundo, e não da capital distante e gelada cujo chuvisco de séculos lhes transtornava o sentido da realidade. Várias vezes por ano se concentravam na baía as frotas de galeões carregados com as riquezas de Potosí, de Quito, de Vera-cruz, e a cidade vivia então aqueles que foram seus anos de glória. Na sexta-feira 8 de junho de 1708 às quatro da tarde, o galeão San José, que acabava de zarpar para Cádiz com um carregamento de pedras e metais preciosos avaliados em quinhentos bilhões de pesos da época, foi afundado por uma esquadra inglesa diante da entrada do porto, e dois longos séculos depois ainda não tinha sido resgatado. Aquela fortuna jacente em fundos de corais, com o cadáver do comandante flutuando adernado no posto de mando, costumava ser evocada pelos historiadores com o emblema da cidade afogada nas recordações.

Do outro lado da baía, no bairro residencial de Mangueira, a casa do doutor Juvenal Urbino se situava em outro tempo. Era grande e fresca. de um andar só, e com um pórtico de colunas dóricas na varanda da frente, da qual se dominava a água parada de miasmas e escombros de naufrágios da baía. O chão estava forrado de pedras axadrezadas, brancas e pretas, da porta de entrada até a cozinha, e isto se atribuíra mais de uma vez à paixão dominante do doutor Urbino, sem lembrar que se tratava de um fraqueza comum aos mestres-de-obra catalães que tinham construído no princípio do século aquele bairro de ricos de fresca data (...)

No entanto, nenhum outro lugar revelava a solenidade meticulosa da biblioteca, que foi o santuário do doutor Urbino antes que a velhice o derrubasse. Ali, em redor da escrivaninha de nogueira do pai,  das poltronas de couro almofadado, fez forrar as paredes e até as janelas com estantes envidraçadas, e colocou numa ordem quase demente três mil livros idênticos encadernados em pele de bezerro e com suas iniciais douradas na lombada. Ao contrário dos outros aposentos, que estavam à mercê das comoções e dos maus cheiros provenientes do porto, a biblioteca teve sempre o recolhimento e o odor de uma abadia. Nascidos e criados debaixo da superstição do caribe de abrir portas e janelas para convocar uma fresca que não existia na realidade, o doutor Urbino e sua esposa sentiram a princípio o coração oprimido da clausura. Mas acabaram convencidos das vantagens do método romano contra o calor, que consistia em manter as casas fechadas no torpor de agosto para que não entrasse o sopro ardente da rua, e abri-las de par em par aos ventos da noite. A sua foi desde então a mais fresca no sol bravo da Mangueira, e era uma ventura fazer a sesta na penumbra dos quartos, e sentar à tarde no pórtico para ver passar os cargueiros de Nova Orleans, pesados e cinzentos, e os navios fluviais de roda de madeira com as luzes acesas ao entardecer, que iam purificando com uma esteira de música o monturo estanque da baía..."

Transcrito de "O Amor nos Tempos do Cólera", de Gabriel García Márquez, tradução de Antônio Callado. Página 27 a 30. Rio de Janeiro: Editora Record, 1985.

Acho que podemos dizer que a literatura não seria a mesma sem García Márquez. Ele deu uma enorme contribuição à produção literária latinoamericana e permitiu que esta conquistasse seu espaço num ambiente completamente dominado pelos autores estadunidenses e europeus. O primeiro livro de Márquez que li foi Olhos de Cão Azul. Me encantei de cara com o realismo fantástico e o vigor poético. Depois li Os Funerais de Mamãe Grande e A Incrível e Triste História de Cândida Erêndira e sua Avó Desalmada. Ao ler Cem Anos de Solidão o encantamento se consolidou e pude descobrir que a história das gerações da família Buendía, situada por García Márquez na sua cidade natal, Aracataca, Colômbia, poderia estar situada em qualquer outro país da América Latina. Esse sentimento de latinidade no texto de García Márquez me contagiou. Essa semana o autor fez sua passagem, mas seu legado fica para que possamos ler e reler. Obrigado Gabo, fica em paz!
Por F@bio

terça-feira, 15 de abril de 2014

Tristes Navios que Passam - Emanuel Félix

Tristes Navios que Passam

            Para o Daniel Santos,
                  no outro lado do mar

Tristes navios que passam
na hora da nossa vida
na hora da nossa morte

escuros vasos de guerra
cargueiros tanques paquetes
brancos navios de vela

levam óleo levam ódio
luxo lixo das cidades
levam gente gente gente

deixam ficar nostalgia

tristes navios que passam
na hora da nossa morte
na hora da nossa vida

Félix, Emanuel (1977), A Palavra.O Açoite. Coimbra: Poesia Centelha, p. 31.

Obtido de: http://www.ces.uc.pt/projectos/poesiadaguerracolonial/pages/pt/antologia/poemas/partidas.php

O poeta Emanuel Félix Borges da Silva nasceu em 24 de outubro de 1936, em Angra do Heroísmo, nos Açores, Portugal, e faleceu em 14 de fevereiro de 2004. Seu livro de estreia, aos 15 anos, foi  O Vendedor de Bichos. Teve uma profícua produção literária que só terminou em 2003 com a coletânea 121 Poemas Escolhidos. É considerado o responsável pela introdução do concretismo poético em Portugal,  mas optou pelo surrealismo. Em 1958, com Rogério Silva, fundou e dirigiu a revista Gávea, onde fez crítica literária e de artes plásticas.

A vida que passa qual navios, cruzando nossos horizontes, levam um pouco de nós, a cada instante, a vida que se esvai, qual água a correr nos rios, nos mares, cargueiros a levar nossos anos, nossos pares, levam vida, levam coisas, até nossa alma carregam, fica a tristeza de saber, que um pouco de nós se foi, a cada instante, no vai e vem da ondas, no giro da hélice, na brisa marinha, fica esse amargo na boca, o gosto da tristeza, da nossa vida que vai, carregada pela correnteza, da passagem, nostalgia!
Por F@bio