terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Aqui nos Encontramos - John Berger

"No domingo seguinte, eu estava no bairro da Baixa, atravessando a imensa praça do Comércio. A Baixa é o único bairro da cidade velha que é plano e baixo. Rodeado em três dos seus lados pelas famosas colinas, o quarto é o estuário do Tejo, conhecido como mar de Palha, porque suas águas, vistas sob certa luz, têm um reflexo dourado. Durante o século quinze, das suas plataformas de embarque e desembarque, os navegadores de Lisboa, comerciantes e mercadores de escravos partiram para a África, para o Oriente e, mais tarde, para o Brasil. Lisboa era na época a capital mais rica da Europa, negociando tudo que desafiasse o Atlântico: ouro, escravos do Congo, sedas, diamantes, especiarias."


Transcrito de "Lisboa" em "Aqui nos encontramos". Romance e narrativa ficcional de John Berger. Rio de Janeiro: Rocco, 2008.
Foto obtida de www.vertigomagazine.co.uk



Berger é considerado um dos mais importantes romancistas ingleses. De novo temos um texto sobre as epopéias portuguesas e a importância de Lisboa no Séc. XV, como centro de comércio, especialmente de produtos vindos de outros continentes. A riqueza de Portugal advinha do domínio dos mares. Tráfico de escravos e comércio internacional de mercadorias vindas da Ásia, África e Américas. Na linda construção de Berger: "negociando tudo que desafiasse o Atlântico."

sábado, 9 de janeiro de 2010

Mar português - Fernando Pessoa

"Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!
Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu."

 
Em "Fernando Pessoa: Antologia Poética" (pág. 31). Organizada por Álvaro Cardoso Gomes. Poesia. São Paulo: Moderna, 1994.
Retrato de Fernando Pessoa por Almada Ribeiro em 1954 obtido de: http://www.ciencias.com.br/pagina_bedaque/pessoa/FP.htm
Desenho de nau de três mastros obtido de http://www.popa.com.br/docs/cronicas/navios-portugueses.htm

Considerado o maior poeta da língua portuguesa, Fernando Pessoa, nascido em 1888 e que veio a morrer precocemente em 1935, foi uma figura ímpar do modernismo em Portugal. Aliás, Pessoa na verdade não foi um, mas vários, pois adotou os heterônimos de Álvaro Campos, Alberto Caieiro e Ricardo Reis. Em Mar Português, Pessoa destaca o feito épico das navegações e responde a uma pergunta bastante relevante para seu tempo: "tantas perdas teriam valido a pena?" E responde com o seu versejar de poeta: "tudo vale a pena se a alma não é pequena".
O pionerismo ibérico permitiu que fosse dado grande impulso ao comércio exterior no Séc. XVI. Geoffrey Blainey no livro "Uma Breve Histórida do Mundo" (2a. Edição, São Paulo: Editora Fundamento Educacional, 2008) destaca dois aspectos muito relevantes das navegações: primeiro, as navegações alteraram a modalidade de transporte de marcadorias entre o oriente e o ocidente, suplantando a rota da seda ("Durante séculos, uma infinidade de produtos e plantas asiáticas atravessou toda a extensão da Ásia por terra, mas agora tudo fluía pelas rotas do mar"); e, em segundo, ampliaram de forma espetacular as trocas entre os continentes ("Nunca antes na história do mundo haviam sido transferidas tantas plantas valiosas de um continente ao outro").
Blainey (pág. 203) salienta que Portugal e Espanha foram pioneiros porque eram fortes nas navegações, mas depois foram suplantados por Inglaterra, Holanda e França. Diversos produtos agrícolas, minerais, manufaturados e animais foram levados para a Europa e sua valorização estimulou o comércio exterior e o surgimento de empresas especializadas em transporte naval e comércio internacional (as companhias das índias). Milho, batata, pau-brasil, tomate, ouro, cacau, prata, peru, abacaxi, tabaco, gemas vieram das Américas. Porcelana, almíscar, pimenta, cravo foram trazidos da Ásia. Indigo, metais, diamantes da África. Muitos pacotes, caixas, barris, ânforas chegavam aos armazéns europeus e eram considerados tão preciosos quanto o ouro.
Blainey (pág. 210) observa que as"viagens de Colombo, Vasco da Gama e outros navegadores europeus pelos oceanos Atlântico, Índico e Pacífico promoveram uma revolução na agricultura do mundo. Junto com as cargas acondicionadas nos conveses ou trancadas no porão, havia pequenas remessas de sementes e mudas que eram eventualmente transportadas por uma série de acontecimentos premeditados ou casuais para todos os continentes. O café, o algodão, o açúcar e o índigo foram para as Américas para serem cultivados em larga escala, com suas colheitas sendo exportadas para a Europa."
Por
F@bio

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

Equador - Miguel Sousa Tavares

"O Zaire fundeou na baía de Ana Chaves, de frente para a cidade, a cerca de quinhentos metros do molhe que defendia a avenida marginal das águas do Atlântico. Não havia porto nem sequer um cais de amarração na cidade de S.Tomé: carga e passageiros transladavam-se a terra em simples chatas a remos que, quando o mar estava batido, tornavam aquela curta travessia mais aventurosa do que a propria viagem através do vazio do oceano. 
Luís Bernardo estava, como todos os passageiros e tripulantes, encostado à amurada, contemplando a cidade e a agitação humana que se divisava junto à zona de desembarque.
O Zaire havia saudado terra com três apitos estridentes que se deviam ter escutado em toda a ilha, indicação tradicional de “governador a bordo”. De terra, tinham respondido com outros três apitos vindos da Capitania e uma salva de dezessete tiros disparados da fortaleza de S. Sebastião. De repente, parecia que toda a cidade começara a convergir para o molhe.


Transcrito de “Equador” (pág. 121). Autor Miguel Sousa Tavares. Romance. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2004.


A cena descrita por Miguel Sousa Tavares, da rica leva contemporânea de novos romancistas portugueses, é de um porto sem cais, bem no início do Séc. XX, em São Tomé, à época colônia lusitana produtora de cacau, situada na Costa da Guiné, África Ocidental. Um navio misto (meio cargueiro, meio de passageiros) chega à cidade. A chegada do navio vindo da metrópole já era motivo de alvoroço, que ganhou maior relevo por estar entre os passageiros o novo governador da província. Porto era baía, sem cais, sem deque, sem ponte de acesso à nau.
 

sexta-feira, 1 de janeiro de 2010

Mangue - Manuel Bandeira

"Mangue mais Veneza americana do que Recife
Cargueiros atracados nas docas do Canal Grande
O Morro do Pinto morre de espanto
Passam estivadores de torso nu suando facas de ponta
Café baixo
Trapiches alfandegados
Catraias de abacaxis e de bananas
A Light fazendo cruzvaldina com resíduo de coque
Há macumbas no piche
       Eh cagira mia pai
       Eh cagira
E o luar é uma coisa só..."

Primeira estrofe da poesia "Mangue" transcrito de "Melhores Poemas" (pág. 76). Autor: Manuel Bandeira. Seleção: Francisco de Assis Barbosa. Poesia. 14a. Edição. São Paulo: Global, 2001.
Caricatura de Manuel Bandeira de autoria de Carlos Drumond de Andrade.

Bandeira é poeta maior da literatura brasileira que transpôs para as letras a dor da doença que carregou consigo uma vida quase inteira, que não foi breve: 82 anos. Barbosa suspeita que "por extravagante que pareça, foi a morte que deu vida à poesia bandeiriana". Interessante antagonismo: morte e vida. O poema retrata o porto-mangue que, apesar das referências à Veneza e Recife, fica no Rio onde se enconatram o Canal do Mangue, o Morro do Pinto e a Light (companhia de eletricidade). Ao descrever a vida dura do trabalho portuário Bandeira, no seu particular versejar, constroi um texto rico de imagens e beleza poética. Como ele próprio se autodescreveu: "Não faço poesia quando quero e sim quando ela, poesia, quer". Ainda bem que ela quis muito.

quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

Velhinha Contrabandista - Luiz Fernando Veríssimo

“Todos conhecem a história da velhinha contrabandista. Todos os dias uma velhinha atravessava a ponte entre dois países, de bicicleta e carregando uma bolsa. E todos os dias era revistada pelos guardas da fronteira, à procura de contrabando. Os guardas tinham certeza que a velhinha era contrabandista, mas revistavam a velhinha, revistavam a sua bolsa, e nunca encontravam nada. Nada. Todos os dias a mesma coisa: nada. Até que um dia um dos guardas decidiu seguir a velhinha, para flagrá-la vendendo muamba, ficar sabendo o que ela contrabandeava e, principalmente, como. E seguiu a velhinha até seu próspero comércio de bicicletas e bolsas.”


Transcrito de A Velhinha Contrabandista em “O Mundo É Bárbaro e o que Nós Temos a Ver Com Isso” (pág. 41). Autor Luis Fernando Veríssimo. Crônica. Rio de Janeiro: Objetiva, 2008.
Caricatura de Veríssmo de autoria de Baptistão (www.baptistao.zip.net). 


Veríssimo nos brinda sempre com um humor sutil e inspirado. Cronista dos mais profícuos da atualidade aborda na história da velhinha uma faceta muito crítica do comércio exterior: o descaminho, vulgarmente denominado de contrabando. Contrabando é a entrada ou saída do território aduaneiro de produto proibido, ou que atente contra a saúde ou a moralidade. Já o descaminho é a entrada ou saída de produtos permitidos, mas sem passar pelos trâmites burocráticos e tributários devidos. É o que faz a velhinha nas barbas dos fiscais da alfândega. Importar bicicletas e bolsas não é proibido, o que ela faz é deixar de declarar ao fisco, evadindo o pagamento dos tributos. Essa história hilária da velhinha ilustra um lado triste do comércio exterior, particularmente no nosso País, onde a importação ilegal alcança grande relevo, vide o comércio de produtos piratas e "contrabandeados", inclusive por meio dos chamados sacoleiros.

terça-feira, 29 de dezembro de 2009

Matinal - Mário Quintana

"O tigre da manhã espreita pelas venezianas.
O vento fareja tudo.
Nos cais, os guindastes - domesticados dinossauros -
erguem a carga do dia."


Transcrito de “Baú de Espantos”. Autor Mário Quintana. Poesia. 4ª Edição. Rio de Janeiro: Globo, 1988.
Fotos de Mario Quintana e do Predio do Antigo Hotel Majestic, hoje Casa de Cultura Mario Quintana obtidas no site da CCMQ.


Aqui Quintana deixa o porto ainda mais alegre, com a imagem dos guindastes do cais transformados em domesticados dinossauros. Quintana criou uma forma própria de fazer poesia. Em “eles passarão, nós passarinho” reconhece-se logo os traços quintanares, quintanenses, quintaneiros, o verbo quintanear. De verso simples, mas encantador, esse grande poeta gaúcho deixou um legado iluminado, mágica mistura de palavras e emoções, que preencheram um hotel inteiro de Porto Alegre, o Majestic, hoje dedicado às artes, em homenagem ao grande poeta foi transformado na Casa de Cultura Mario Quintana. Fica bem no Centro Histórico de Porto Alegre, perto do Porto, e conta com intensa atividade cultural. Uma vez tive a felicidade de participar de um sarau no Café Santo de Casa que fica no 7º Andar com uma bela vista para o Guaíba.

segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

Tempos do Cólera - Gabriel Garcia Marquez

“Os escritórios da C.F.C. estavam desde a fundação diante do cais fluvial, sem nada em comum com o porto dos transatlânticos no lado oposto da baía, nem com o atracadouro do mercado na baía das Ânimas. Era um edifício de madeira com telhado de zinco de duas águas, um único balcão grande com colunas na fachada e várias janelas com telas de arame nos quatro costados, das quais se viam completos os navios no cais, com quadros pendurados na parede. Quando o construíram, os precursores alemães pintaram de vermelho o zinco dos telhados e de branco brilhante os tabiques de madeira, de maneira que o próprio edifício tinha algo de navio fluvial. Mais tarde pintaram-no todo de azul, e pelos tempos em que Florentino Ariza começou a trabalhar na empresa era um galpão poeirento sem cor definida, e nos telhados oxidados havia emendas de folhas de zinco novas sobre as folhas originais. Por trás do edifício, num pátio de caliça cercado de tela de galinheiro, havia dois armazéns amplos de construção mais recente, e no fundo havia um desaguadouro fechado, sujo e fedorento, onde apodreciam os despejos de meio século de navegação fluvial: escombros de navios históricos, desde os primitivos de uma só chaminé, inaugurados por Simão Bolívar, até alguns tão recentes que já tinham ventiladores elétricos nos camarotes. Tinham sido em sua maioria desmantelados para a utilização dos materiais em outros navios, mas muitos estavam em tão bom estado que parecia possível dar-lhes uma mão de pintura e botá-los para navegar, sem espantar as iguanas nem derrubar as árvores de grandes flores amarelas que os faziam mais nostálgicos.”


Transcrito de “O Amor nos Tempos do Cólera” (pag. 228). Autor Gabriel Garcia Marquez. Tradução de Antônio Callado. Romance. Rio de Janeiro: Editora Record, 1985.
Caricatura de Garcia Marquez obtida de: http://gm54.files.wordpress.com/2009/04/gabriel-garcia-marquez-caricatura.jpg


Sou um grande apreciador do texto de Garcia Marquez e O Amor nos Tempos do Cólera é para mim um de seus melhores livros. O trecho acima retrata de forma peculiar o cenário de um porto fluvial. A Companhia Fluvial do Caribe transporta mercadorias, animais e passageiros e deu “um impulso novo à navegação a vapor no rio Madalena” (pag.71). Não se trata propriamente de uma empresa de comércio exterior. Mas a cena descrita pelo autor é fiel a um porto nos primórdios do Séc. XX. Armazéns de madeira e telhados de zinco oxidados. Navios ancorados e naus abandonadas. Cais, pátios, tonéis e cercas de madeira. Galpões poeirentos, sujos e malcheirosos. Baía com vários atracadouros. Marinheiros, sacos, barris, trapiches, docas, caixotes, contrabandistas, estivadores, bares, prostíbulos, alfândega, carregadores, barcos, guindastes... A navegação interior encontra a navegação internacional. Como a cabotagem, a abastece e leva suas cargas para distribuir aos rincões continente adentro.