"O verão tinha começado. Anoitecia mais tarde, e o dia se espichava em horas quentes e preguiçosas. Guillem e Roser passavam tanto tempo juntos que chegaram a conhecer-se a fundo. Por mais que lessem juntos ou conversassem, sobrevinham longos silêncios, nos quais predominava uma sensação de intimidade. Depois de jantar, Roser deitava-se na cama que agora dividia com Carme e dormia até as três da madrugada. Nessa hora ia à padaria preparar o pão que, racionado, seria distribuido ao amanhecer.
As notícias do rádio, dos jornais e dos alto-falantes nas ruas eram otimistas. Pelo ar retumbavam as canções dos milicianos e os discursos inflamados da Passionária, melhor morrer de pé que viver de joelhos. Não se admitia nenhum avanço do inimigo: era chamado de retirada estratégica. Tampouco se mencionavam o recionamento e a escassez de quase tudo, de alimentos a remédios. Victor Dalmau apresentava à família uma versão mais realista que a dos alto-falantes. Conseguia julgar a situação da guerra pelos trens de feridos e pelo número de mortos que aumentavam tragicamente...
...
Aquele dia de verão, 4 de agosto de 1939, em Bordeaux, ficaria para sempre na memoría de Victor Dalmau, Roser Bruguera e outros dois mil e tantos espanhóis que partiam para aquele país comprido da América do Sul, agarrado às montanhas para não cair no mar, sobre o qual nada sabiam. Neruda haveria de defini-lo como 'largo pétalo de mar y vino y nieve...' com uma 'cinta de espuma blanca y negra', ma isso não teria esclarecido os desterrados sobre seu destino. No mapa, o Chile era estreito e remoto. A praça de Bordeaux já fervilhava de gente: multidão imensa que crescia a cada minuto, meio sufocada de calor, debaixo de um céu azulíssimo. Iam chegando trens, caminhões e outros veículos cheios de gente, a maioria saída diretamente dos campos de concentração, faminta, fraca, sem ter tido a oportunidade de se lavar. Como os homens tinham ficado separados das mulheres e dos filhos durante meses, os encontros dos casais e das famílias eram um delírio de drama e emoção...
...
Pablo Neruda, vestido de branco da cabeça aos pés, com sua esposa Delia del Carril, também vestida de branco da cabeça aos pés e com um chapelão de abas largas, dirigia os trâmites de identificação, saúde e seleção como um semideus, ajudado por cônsules, secretários e amigos instalados em longas mesas. A autorização ficava pronta com a assinatura dele em tinta verde e um carimbo do Serviço de Evacuação de Refugiados Espanhóis. Neruda resolveu o problema dos vistos com um visto coletivo. Os espanhóis se posicionavam em grupos, batia-se uma foto, que era revelada às pressas, depois alguém cortava os rostos da foto e os grudava na autorização. Voluntários caridosos distribuíam lanches e utensilios de asseio para cada pessoa...
Era o dia da partida, e ao poeta ainda faltava bastante dinheiro para pagar aquele translado maciço, que o governo do Chile se recusou a custear porque era impossível justificá-lo perante uma opinião pública hostil e dividida. Então, inesperadamente, apresentou-se no cais um pequeno grupo de pessoas muito sérias, dispostas a pagar a metade de cada passagem. Roser viu de longe, pôs o menino nos braços de Victor, saiu da fila e correu para cumprimentá-las. No grupo estavam os quacres que os haviam acolhido. Vinham em nome de sua comunidade cumprir o dever que se haviam imposto desde suas origens, no século XVII, de servir à humanidade e promover a paz..."
Trechos do romance "Longa pétala de mar", de Isabel Allende, tradução de Ivone Benedetti. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2020.
Isabel Allende nasceu em 1942 no Peru. É filha de Tomás Allende, funcionário diplomático chileno e primo-irmão de Salvador Allende, ex-presidente do Chile, e de Francisca Llona. Passou a infância no Chile e morou em vários lugares na adolescencia e juventude. Depois do golpe militar de 1973 no Chile, que derrubou o governo democrático de seu tio, exilou-se na Venezuela e, desde 1987, vive na California, nos Estados Unidos. Iniciou a carreira literária no jornalismo até publicar seu primeiro romance, A casa dos espíritos, um grande sucesso da literatura latino-americana. Depois publicou diversos outros também com sucesso. Alcançou enorme reconhecimento recebendo diversos prêmios internacionais.
O livro é um romance histórico que nos envolve. Começa com o drama vivido pelos republicanos na Guerra Civil espanhola, segue na derrota e fuga desesperada para a França, prossegue na escapada plena de esperanças para o Chile, uma longa pétala de mar, pelas mãos do poeta Pablo Neruda.
Isabel Allende, nesta obra, mistura personagens fictícios e reais e confirma sua enorme capacidade de contadora de incríveis histórias. Como está na contracapa, trata-se de "uma viagem pela história do século XX, de mãos dadas com alguns personagens inesquecíveis que descobriram que numa única vida cabem muitas outras, e às vezes o difícil não é fugir, mas voltar".
Isabel cita a cada capítulo em trecho de poesias de Neruda, como no IX:
Todos os seres
terão direito
à terra e à vida
e assim será o pão de amanhã...
(Pablo Neruda, Ode ao pão)
Como todo romance envolvente, ao chegar ao final ficamos com aquele gostinho de quero mais.
Uma ótima leitura!
Por F@bio