“Uma
manhã luminosa. Azul por toda parte: nas águas, no céu, nos morros. Vinha do
mar um vento fresco, que dava gosto a gente sentir no rosto e nas mãos. As
bandeiras dos vapores atracados pareciam contentes, agitando-se, muito vivas,
nos ares claros.
A
turma 65 foi descarregar açúcar pernambucano, de um Lloyd branco e preto. O ‘periquito’, pequeno
guindaste hidráulico começou a trabalhar, empilhando a sacaria no cais. Os
homens aproximaram-se, lerdos, como bois para a carga. O saco pegado por dois
trabalhadores era colocado na cabeça de um terceiro, que ‘palmilhava’ nos ares,
aparando-o com a mão direita espalmada, o braço firme e em arco, de modo que o
peso se fizesse sentir gradualmente, e poupo a pouco, e não de sopetão, num
desabamento repentino. Bem ajeitado na cabeça, era levado para dentro do
armazém, onde cresciam rumas colossais, sendo possível, às vezes, ‘remontar’,
subir escadas para ir atirá-los lá em cima.
Fez-se
fila de homens carregados.
Severino
aproximou-se para receber a sua carga, a primeira, tão ansiosamente desejada e
esperada por tanto tempo. Tinha confiança nos seus músculos. Perto da pilha
ouviu um dos companheiros dizer para o outro:
-
Olha o novato...
De
repente, sem que esperasse, quando viu foi o saco despencar sobre a sua cabeça,
dando-lhe uma forte dor na nuca, escorregar-lhe pelas costas e cair no chão
estourado. Não soubera palmilhá-lo, não tinha prática. Os dois homens riram um
riso ruim.
...
Finda
a quizilha, Severino perfilou-se, de novo, junto à pilha, para receber outro
saco. Tinha o rosto trancado e enviesado para os companheiros, como a
preveni-los, um olhar de rancor. E o saco veio desta vez devagar, pousando
lento, na sua cabeça, quase docemente. O pescoço como que se achatou,
comprimido, as veias saltaram, encordoando-o; entesaram-se lhe os músculos do
tórax, criando relevo debaixo da camiseta rala de algodão. E lá saiu de corpo
duro, o peso fazendo com que ele bamboleasse os quadris, como mulher. Penetrou
no armazém, cuja porta estava esteirada de pó de serragem para evitar
escorregos.
...
Quando
às quatro e meia as sirenes puseram ponto final no trabalho, o porão do Lloyd
estava limpo, a descarga finda...”
Transcrito de “Navios Iluminados”, de Ranulpho Prata, pags.
73 a 78. São Paulo: Scritta, 1996.
Ranulpho Prata, 1896 – 1942, sergipano de Lagarto. Autor também dos romances O triunfo, Dentro da Vida, O Lírio na Torrente, do livro de contos A Longa Estrada e do documentário Lampião. Conforme Alessandro Atanes, em Esquinas do Mundo – Ensaio sobre a História e Literatura a partir do Porto de Santos (São Paulo: Dobra Editorial, 2013), Prata formou-se na Faculdade de Medicina da Universidade do Brasil, no Rio de Janeiro em 1919, após ter iniciado os estudos em Salvador. Exerceu a medicina no interior de Minas Gerais e de São Paulo, Aracajú, Rio de Janeiro e em Mirassol (SP). Em 1927 assume uma vaga de médico radiologista na Santa Casa de Santos e posteriormente atende no Hospital Beneficiência Portuguesa e em seu consultório. Com o tempo, clinica em outras instituições, como o Ambulatório Gafrée e Guinle - família proprietária da Companhia Docas de Santos. Prata fixou-se na cidade portuária até sua morte em 1942.
Navios Iluminados é um romance de forte cunho social, no qual Prata revela sua sensibilidade pelo drama vivido pelos emigrantes nordestinos e pelos trabalhadores portuários. Com seu rigor detalhista e descritivo, o romance nos apresenta um painel da sociedade santista, expondo a dura realidade vivida pelos trabalhadores das docas. No início do Século XX, o Brasil tinha uma economia baseada na monocultura de exportação, o campo e o porto eram os polos dinâmicos. Nos dois ambientes, os trabalhadores enfrentam condições precárias de trabalho, com baixíssima remuneração, péssimas moradias e saúde precária. Mas o autor vai além da denúncia, com abordagem psico social, crítica de costumes e tradições em uma época em que o Brasil dava os primeiros passos rumo à industrialização e urbanização.
Por F@bio