Apresentação do Livro Escritos de Vitória – PORTO
O Porto sempre esteve presente na minha vida. Especialmente quando adolescente e morador do centro de Vitória. Morava na Beira-Mar e, muitas vezes, percorria os olhos em direção ao Porto. Algumas coisas me intrigavam, a vida dos embarcadiços, as estórias de contrabando, as mensagens escritas nas pedras, os marinheiros do Bar Scandinávia, as prostitutas. Esta é a imagem que conservo do Porto de Vitória.
O apito dos navios ressoando no canal de Vitória... Os navios de guerra... Como gostava de ver os navios de guerra! A formação dos marinheiros, todos de branco no convés. O embarque e desembarque de café, a facilidade com que aqueles homens levantavam e carregavam os sacos de juta impressos com um ramo de café verde. Os novos guindastes, lembro-me bem, acompanhei a montagem deles da escadaria do Palácio.
Uma certa noite, desci do apartamento e deitei-me sobre a balsa que servia para atracar as embarcações da praticagem. Deitado de bruços, olhando rente ao mar, o reflexo das luzes da Beira-Mar, dos prédios, dos navios, dos portos ficou para sempre registrado na minha memória. Esta parte da cidade, para mim, era um grande mistério. Nem tudo que via entendia, mas acreditava que fazia parte da vida do Porto as idas e vindas de diferentes navios e nacionalidades. Houve uma época que eu colecionava maços de cigarros vazios. Só próximo ao Porto se conseguia uma variedade maior de marcas. Às vezes fico imaginando Vitória sem o Porto ou o Porto sem Vitória. O que seria disso? Imagine um elevado ao lado do Porto. O cais virando mão e contramão. Os navios fora do Porto. De repente, quem sabe, um aterro unindo Vitória a Vila Velha. Nossa Senhora!... Isto é delírio.
As ilustrações, os contos, as crônicas, os poemas, presentes nos Escritos de Vitória no futuro poderão ser dos únicos registros do sentimento que o nosso Porto – parte da nossa Memória – inspira em nosso artífices do traço e da palavra. Vale a pena lê-los e entendê-los como cada um vê o seu Porto e como cada um o interpreta.
Fonte: Escritos de Vitória – Uma publicação da Secretaria de Cultura e Turismo da Prefeitura Municipal de Vitória, ES – 1994. Prefeito Municipal, Paulo Hartung. Autor: Jorge Alencar – Secretário Municipal de Cultura e Esporte de Vitória - 1994. Ilustração: Atílio Colnago - Ilustrou nesta publicação a crônica "Kallima" da autora Bernadette Lyra
Obtido de: http://www.morrodomoreno.com.br/materias/porto-escritos-de-vitoria.html
Não li o livro, ainda, mas achei muito legal esse texto de apresentação do Jorge Alencar, muito ilustrativo do porto de Vitória. Lembro que, certa vez, fui gravar uma entrevista para o "Bom dia ES". Optaram por uma externa bem no local onde o autor ficava deitado admirando a movimentação dos navios no porto de Vitória. Nesse dia, por sorte, enquanto gravava a entrevista, no canal ao fundo, um navio manobrava. Era o pano de fundo ideal para a entrevista na qual falava sobre o comércio exterior brasileiro, em geral, e capixaba, em particular.
Por F@bio
A idéia é, como um navio cargueiro, recolher e reunir escritos da literatura que nos encantaram. Que tal navegar comigo, sugerir, criticar, interagir? Poste seu comentário e torne-se um amigo do Blog.
quinta-feira, 1 de maio de 2014
sábado, 19 de abril de 2014
O Amor Nos Tempos do Cólera (2) - Gabriel García Máquez
"A independência do domínio espanhol, e a seguir a abolição da escravatura, precipitaram o estado de decadência honrada em que nasceu e cresceu o doutor Juvenal Urbino. As grandes famílias de outrora afundavam em silêncio dentro de suas fortalezas desguarnecidas. Nos altos e baixos das ruas empedradas que tão eficazes tinham sido em guerras e desembarques de bucaneiros, as ervas se despenhavam dos balcões e abriam gretas mesmo nos muros de cal e cantaria das mansões mais bem conservadas, e o único sinal de vida às duas da tarde eram os lânguidos exercícios de piano na penumbra da sesta. Por dentro, nos frescos dos quartos de dormir saturados de incenso, as mulheres de guardavam do sol como de um contágio indigno, e mesmo nas missas de madrugada tapavam a cara com a mantilha. Seus amores eram lentos e difíceis, perturbados amiúde por presságios sinistros, e a vida lhes parecia interminável. Ao anoitecer, no instante opressivo da passagem para as sombras, subia dos pântanos um turbilhão de pernilongos carniceiros, e uma branda exalação de merda humana, cálida e triste, revolvia no fundo da alma a certeza da morte.
Pois a vida própria da cidade colonial, que o jovem Juvenal Urbino costumava idealizar em suas melancolias de Paris, era então uma ilusão da memória. Seu comércio tinha sido o mais próspero do Caribe no século XVIII, sobretudo graças ao privilégio ingrato de ser o maior mercado de escravos africanos nas Américas. Era além disso residência habitual dos vice-reis do Novo Reino de Granada, que preferiam governar daqui, frente ao oceano do mundo, e não da capital distante e gelada cujo chuvisco de séculos lhes transtornava o sentido da realidade. Várias vezes por ano se concentravam na baía as frotas de galeões carregados com as riquezas de Potosí, de Quito, de Vera-cruz, e a cidade vivia então aqueles que foram seus anos de glória. Na sexta-feira 8 de junho de 1708 às quatro da tarde, o galeão San José, que acabava de zarpar para Cádiz com um carregamento de pedras e metais preciosos avaliados em quinhentos bilhões de pesos da época, foi afundado por uma esquadra inglesa diante da entrada do porto, e dois longos séculos depois ainda não tinha sido resgatado. Aquela fortuna jacente em fundos de corais, com o cadáver do comandante flutuando adernado no posto de mando, costumava ser evocada pelos historiadores com o emblema da cidade afogada nas recordações.
Do outro lado da baía, no bairro residencial de Mangueira, a casa do doutor Juvenal Urbino se situava em outro tempo. Era grande e fresca. de um andar só, e com um pórtico de colunas dóricas na varanda da frente, da qual se dominava a água parada de miasmas e escombros de naufrágios da baía. O chão estava forrado de pedras axadrezadas, brancas e pretas, da porta de entrada até a cozinha, e isto se atribuíra mais de uma vez à paixão dominante do doutor Urbino, sem lembrar que se tratava de um fraqueza comum aos mestres-de-obra catalães que tinham construído no princípio do século aquele bairro de ricos de fresca data (...)
No entanto, nenhum outro lugar revelava a solenidade meticulosa da biblioteca, que foi o santuário do doutor Urbino antes que a velhice o derrubasse. Ali, em redor da escrivaninha de nogueira do pai, das poltronas de couro almofadado, fez forrar as paredes e até as janelas com estantes envidraçadas, e colocou numa ordem quase demente três mil livros idênticos encadernados em pele de bezerro e com suas iniciais douradas na lombada. Ao contrário dos outros aposentos, que estavam à mercê das comoções e dos maus cheiros provenientes do porto, a biblioteca teve sempre o recolhimento e o odor de uma abadia. Nascidos e criados debaixo da superstição do caribe de abrir portas e janelas para convocar uma fresca que não existia na realidade, o doutor Urbino e sua esposa sentiram a princípio o coração oprimido da clausura. Mas acabaram convencidos das vantagens do método romano contra o calor, que consistia em manter as casas fechadas no torpor de agosto para que não entrasse o sopro ardente da rua, e abri-las de par em par aos ventos da noite. A sua foi desde então a mais fresca no sol bravo da Mangueira, e era uma ventura fazer a sesta na penumbra dos quartos, e sentar à tarde no pórtico para ver passar os cargueiros de Nova Orleans, pesados e cinzentos, e os navios fluviais de roda de madeira com as luzes acesas ao entardecer, que iam purificando com uma esteira de música o monturo estanque da baía..."
Transcrito de "O Amor nos Tempos do Cólera", de Gabriel García Márquez, tradução de Antônio Callado. Página 27 a 30. Rio de Janeiro: Editora Record, 1985.
Acho que podemos dizer que a literatura não seria a mesma sem García Márquez. Ele deu uma enorme contribuição à produção literária latinoamericana e permitiu que esta conquistasse seu espaço num ambiente completamente dominado pelos autores estadunidenses e europeus. O primeiro livro de Márquez que li foi Olhos de Cão Azul. Me encantei de cara com o realismo fantástico e o vigor poético. Depois li Os Funerais de Mamãe Grande e A Incrível e Triste História de Cândida Erêndira e sua Avó Desalmada. Ao ler Cem Anos de Solidão o encantamento se consolidou e pude descobrir que a história das gerações da família Buendía, situada por García Márquez na sua cidade natal, Aracataca, Colômbia, poderia estar situada em qualquer outro país da América Latina. Esse sentimento de latinidade no texto de García Márquez me contagiou. Essa semana o autor fez sua passagem, mas seu legado fica para que possamos ler e reler. Obrigado Gabo, fica em paz!
Por F@bio
Pois a vida própria da cidade colonial, que o jovem Juvenal Urbino costumava idealizar em suas melancolias de Paris, era então uma ilusão da memória. Seu comércio tinha sido o mais próspero do Caribe no século XVIII, sobretudo graças ao privilégio ingrato de ser o maior mercado de escravos africanos nas Américas. Era além disso residência habitual dos vice-reis do Novo Reino de Granada, que preferiam governar daqui, frente ao oceano do mundo, e não da capital distante e gelada cujo chuvisco de séculos lhes transtornava o sentido da realidade. Várias vezes por ano se concentravam na baía as frotas de galeões carregados com as riquezas de Potosí, de Quito, de Vera-cruz, e a cidade vivia então aqueles que foram seus anos de glória. Na sexta-feira 8 de junho de 1708 às quatro da tarde, o galeão San José, que acabava de zarpar para Cádiz com um carregamento de pedras e metais preciosos avaliados em quinhentos bilhões de pesos da época, foi afundado por uma esquadra inglesa diante da entrada do porto, e dois longos séculos depois ainda não tinha sido resgatado. Aquela fortuna jacente em fundos de corais, com o cadáver do comandante flutuando adernado no posto de mando, costumava ser evocada pelos historiadores com o emblema da cidade afogada nas recordações.
Do outro lado da baía, no bairro residencial de Mangueira, a casa do doutor Juvenal Urbino se situava em outro tempo. Era grande e fresca. de um andar só, e com um pórtico de colunas dóricas na varanda da frente, da qual se dominava a água parada de miasmas e escombros de naufrágios da baía. O chão estava forrado de pedras axadrezadas, brancas e pretas, da porta de entrada até a cozinha, e isto se atribuíra mais de uma vez à paixão dominante do doutor Urbino, sem lembrar que se tratava de um fraqueza comum aos mestres-de-obra catalães que tinham construído no princípio do século aquele bairro de ricos de fresca data (...)
No entanto, nenhum outro lugar revelava a solenidade meticulosa da biblioteca, que foi o santuário do doutor Urbino antes que a velhice o derrubasse. Ali, em redor da escrivaninha de nogueira do pai, das poltronas de couro almofadado, fez forrar as paredes e até as janelas com estantes envidraçadas, e colocou numa ordem quase demente três mil livros idênticos encadernados em pele de bezerro e com suas iniciais douradas na lombada. Ao contrário dos outros aposentos, que estavam à mercê das comoções e dos maus cheiros provenientes do porto, a biblioteca teve sempre o recolhimento e o odor de uma abadia. Nascidos e criados debaixo da superstição do caribe de abrir portas e janelas para convocar uma fresca que não existia na realidade, o doutor Urbino e sua esposa sentiram a princípio o coração oprimido da clausura. Mas acabaram convencidos das vantagens do método romano contra o calor, que consistia em manter as casas fechadas no torpor de agosto para que não entrasse o sopro ardente da rua, e abri-las de par em par aos ventos da noite. A sua foi desde então a mais fresca no sol bravo da Mangueira, e era uma ventura fazer a sesta na penumbra dos quartos, e sentar à tarde no pórtico para ver passar os cargueiros de Nova Orleans, pesados e cinzentos, e os navios fluviais de roda de madeira com as luzes acesas ao entardecer, que iam purificando com uma esteira de música o monturo estanque da baía..."
Transcrito de "O Amor nos Tempos do Cólera", de Gabriel García Márquez, tradução de Antônio Callado. Página 27 a 30. Rio de Janeiro: Editora Record, 1985.
Acho que podemos dizer que a literatura não seria a mesma sem García Márquez. Ele deu uma enorme contribuição à produção literária latinoamericana e permitiu que esta conquistasse seu espaço num ambiente completamente dominado pelos autores estadunidenses e europeus. O primeiro livro de Márquez que li foi Olhos de Cão Azul. Me encantei de cara com o realismo fantástico e o vigor poético. Depois li Os Funerais de Mamãe Grande e A Incrível e Triste História de Cândida Erêndira e sua Avó Desalmada. Ao ler Cem Anos de Solidão o encantamento se consolidou e pude descobrir que a história das gerações da família Buendía, situada por García Márquez na sua cidade natal, Aracataca, Colômbia, poderia estar situada em qualquer outro país da América Latina. Esse sentimento de latinidade no texto de García Márquez me contagiou. Essa semana o autor fez sua passagem, mas seu legado fica para que possamos ler e reler. Obrigado Gabo, fica em paz!
Por F@bio
terça-feira, 15 de abril de 2014
Tristes Navios que Passam - Emanuel Félix
Tristes Navios que Passam
Para o Daniel Santos,
no outro lado do mar
Tristes navios que passam
na hora da nossa vida
na hora da nossa morte
escuros vasos de guerra
cargueiros tanques paquetes
brancos navios de vela
levam óleo levam ódio
luxo lixo das cidades
levam gente gente gente
deixam ficar nostalgia
tristes navios que passam
na hora da nossa morte
na hora da nossa vida
Félix, Emanuel (1977), A Palavra.O Açoite. Coimbra: Poesia Centelha, p. 31.
Obtido de: http://www.ces.uc.pt/projectos/poesiadaguerracolonial/pages/pt/antologia/poemas/partidas.php
Para o Daniel Santos,
no outro lado do mar
Tristes navios que passam
na hora da nossa vida
na hora da nossa morte
escuros vasos de guerra
cargueiros tanques paquetes
brancos navios de vela
levam óleo levam ódio
luxo lixo das cidades
levam gente gente gente
deixam ficar nostalgia
tristes navios que passam
na hora da nossa morte
na hora da nossa vida
Félix, Emanuel (1977), A Palavra.O Açoite. Coimbra: Poesia Centelha, p. 31.
Obtido de: http://www.ces.uc.pt/projectos/poesiadaguerracolonial/pages/pt/antologia/poemas/partidas.php
O poeta Emanuel Félix Borges da Silva nasceu em 24 de outubro de 1936, em Angra do Heroísmo, nos Açores, Portugal, e faleceu em 14 de fevereiro de 2004. Seu livro de estreia, aos 15 anos, foi O Vendedor de Bichos. Teve uma profícua produção literária que só terminou em 2003 com a coletânea 121 Poemas Escolhidos. É considerado o responsável pela introdução do concretismo poético em Portugal, mas optou pelo surrealismo. Em 1958, com Rogério Silva, fundou e dirigiu a revista Gávea, onde fez crítica literária e de artes plásticas.
A vida que passa qual navios, cruzando nossos horizontes, levam um pouco de nós, a cada instante, a vida que se esvai, qual água a correr nos rios, nos mares, cargueiros a levar nossos anos, nossos pares, levam vida, levam coisas, até nossa alma carregam, fica a tristeza de saber, que um pouco de nós se foi, a cada instante, no vai e vem da ondas, no giro da hélice, na brisa marinha, fica esse amargo na boca, o gosto da tristeza, da nossa vida que vai, carregada pela correnteza, da passagem, nostalgia!
Por F@bio
segunda-feira, 31 de março de 2014
Os Estatutos do Homem - Thiago de Mello
(Ato Institucional Permanente)
A Carlos Heitor Cony
Artigo I.
Fica decretado que agora vale a verdade.
que agora vale a vida,
e que de mãos dadas,
trabalharemos todos pela vida verdadeira.
Artigo II.
Fica decretado que todos os dias da semana,
inclusive as terças-feiras mais cinzentas,
têm direito a converter-se em manhãs de domingo.
Artigo III.
Fica decretado que, a partir deste instante,
haverá girassóis em todas as janelas,
que os girassóis terão direito
a abrir-se dentro da sombra;
e que as janelas devem permanecer, o dia inteiro,
abertas para o verde onde cresce a esperança.
Artigo IV.
Fica decretado que o homem
não precisará nunca mais
duvidar do homem.
Que o homem confiará no homem
como a palmeira confia no vento,
como o vento confia no ar,
como o ar confia no campo azul do céu.
Parágrafo Único:
O homem confiará no homem
como um menino confia em outro menino.
Artigo V.
Fica decretado que os homens
estão livres do jugo da mentira.
Nunca mais será preciso usar
a couraça do silêncio
nem a armadura de palavras.
O homem se sentará à mesa
com seu olhar limpo
porque a verdade passará a ser servida
antes da sobremesa.
Artigo VI.
Fica estabelecida, durante dez séculos,
a prática sonhada pelo profeta Isaías,
e o lobo e o cordeiro pastarão juntos
e a comida de ambos terá o mesmo gosto de aurora.
Artigo VII.
Por decreto irrevogável fica estabelecido
o reinado permanente da justiça e da claridade,
e a alegria será uma bandeira generosa
para sempre desfraldada na alma do povo.
Artigo VIII.
Fica decretado que a maior dor
sempre foi e será sempre
não poder dar-se amor a quem se ama
e saber que é a água
que dá à planta o milagre da flor.
Artigo IX.
Fica permitido que o pão de cada dia
tenha no homem o sinal de seu suor.
Mas que sobretudo tenha sempre
o quente sabor da ternura.
Artigo X.
Fica permitido a qualquer pessoa,
a qualquer hora da vida,
o uso do traje branco.
Artigo XI.
Fica decretado, por definição,
que o homem é um animal que ama
e que por isso é belo.
muito mais belo que a estrela da manhã.
Artigo XII.
Decreta-se que nada será obrigado nem proibido.
tudo será permitido,
inclusive brincar com os rinocerontes
e caminhar pelas tardes
com uma imensa begônia na lapela.
Parágrafo único:
Só uma coisa fica proibida:
amar sem amor.
Artigo XIII.
Fica decretado que o dinheiro
não poderá nunca mais comprar
o sol das manhãs vindouras.
Expulso do grande baú do medo,
o dinheiro se transformará em uma espada fraternal
para defender o direito de cantar
e a festa do dia que chegou.
Artigo Final.
Fica proibido o uso da palavra liberdade.
a qual será suprimida dos dicionários
e do pântano enganoso das bocas.
A partir deste instante
a liberdade será algo vivo e transparente
como um fogo ou um rio,
e a sua morada será sempre
o coração do homem.
Santiago do Chile, abril de 1964
Publicado no livro Faz Escuro Mas Eu Canto: Porque a Manhã Vai Chegar (1965).
In: MELLO, Thiago de. Vento geral, 1951/1981: doze livros de poemas. 2.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 198
Obtido de: http://www.escritas.org/pt/poema/12844/os-estatutos-do-homem
Amadeu Thiago de Mello, nascido em Barreirinha, Amazonas, em 1926, é um dos maiores e mais respeitado poeta brasileiro. Seus versos são um canto de liberdade e de fé na humanidade, no homem solidário e transformador.
Preso durante a ditadura militar brasileira (1964-1985), exilou-se no Chile, onde construiu forte víncluo de amizade com outro poeta maior, Pablo Neruda. No exílio, morou na Argentina, Chile, Portugal, França, Alemanha. Com o fim do regime militar, voltou ao Brasil e à sua cidade natal, Barreirinha, onde vive até hoje.
Seu poema mais conhecido, Os Estatutos do Homem, aqui reproduzido, no qual o poeta enaltece os valores simples da natureza humana e o direito inalienável à liberdade. Abaixo, o próprio poeta declama o poema num encontro pelas liberdades democráticas realizado no Circo Voador, no Rio de Janeiro.
Lembro-me do meu tempo de militância política contra a ditadura, encontrar nos versos de Thiago a inspiração para continuar na luta pela liberdade. Lembro-me, também, de um dia, após retornar do exílio, vê-lo na Universidade Federal Fluminense, em Niterói, indo se juntar aos estudantes e declamar seu poema libertador. Fazia escuro ainda, mas cantávamos juntos pela amanhã de um novo dia, onde o sol iluminaria a todos: "Fica decretado que agora vale a verdade/que agora vale a vida,/e que de mãos dadas,/trabalharemos todos pela vida verdadeira."
Precisava marcar essa data de triste lembrança, onde a liberdade foi extirpada, a voz calada e o medo imposto sobre todos, para que saibam que a democracia que temos hoje foi conquistada com o braço forte dos que foram para as ruas e lutaram pela liberdade!!!
Por F@bio
terça-feira, 25 de março de 2014
O navio das sombras - Érico Veríssimo
"É noite escura e o cais está deserto. Ivo ergue a gola do sobretudo. Sente muito frio, e o silêncio enorme e hostil enche-o de um vago medo. Vai viajar. Mas é estranho… Tudo parece diferente do que ele sempre imaginara. O grande transatlântico se desenha sem contornos certos contra o céu de fuligem. Não se vê um só vulto humano no cais. Adivinha-se, entretanto, na treva, a presença rígida e gelada dos guindastes..."
Obtido de http://www.releituras.com/everissimo_navio.asp. Texto extraído do livro "Contos" (série paradidática), Ed. Globo - Porto Alegre - 1978, pág. 13.
Érico Veríssimo, escritor, nascido em Cruz Alta (RS), em 1905, era descendente, tanto pelo lado paterno como pelo materno, de estancieiros tradicionais. Foi um dos escritores brasileiros mais populares do século XX. Morreu em Porto Alegre em 1975.
A obra literária de Veríssimo é extremamente rica, seja regional como O Tempo e o Vento, uma saga dos pampas, seja universal, como Incidente em Antares. Em O Navio das Sombras, Érico constrói uma metáfora sombria sobre a morte de um suicida. A morte está atracada no cais, na forma de um transatlântico, imerso na escuridão da noite sombria e gelada. Entre a vida e a morte, o jovem moribundo ouve o chamado da mulher amada e vislumbra a luz, mas as trevas já tinham dominado seu corpo. Eh vida breve...
Por F@bio
Obtido de http://www.releituras.com/everissimo_navio.asp. Texto extraído do livro "Contos" (série paradidática), Ed. Globo - Porto Alegre - 1978, pág. 13.
Érico Veríssimo, escritor, nascido em Cruz Alta (RS), em 1905, era descendente, tanto pelo lado paterno como pelo materno, de estancieiros tradicionais. Foi um dos escritores brasileiros mais populares do século XX. Morreu em Porto Alegre em 1975.
A obra literária de Veríssimo é extremamente rica, seja regional como O Tempo e o Vento, uma saga dos pampas, seja universal, como Incidente em Antares. Em O Navio das Sombras, Érico constrói uma metáfora sombria sobre a morte de um suicida. A morte está atracada no cais, na forma de um transatlântico, imerso na escuridão da noite sombria e gelada. Entre a vida e a morte, o jovem moribundo ouve o chamado da mulher amada e vislumbra a luz, mas as trevas já tinham dominado seu corpo. Eh vida breve...
Por F@bio
domingo, 2 de fevereiro de 2014
Gabriela, Cravo e Canela 2 - Jorge Amado
"Diversas vezes retardados, terminaram por fim os trabalhos da barra. Um novo canal, profundo e sem desvios, fora estabelecido. Por ele podiam passar sem perigo de encalhe os navios do Lloyd, do Ita, da Bahiana e, sobretudo, podiam entrar no porto de Ilhéus os grandes cargueiros, para ali receber diretamente os sacos de cacau.
Como explicou o engenheiro-chefe, a demora na conclusão das obras deveu-se a inúmeras dificuldades e entraves. Não se referia aos barulhos cercando a chegada dos rebocadores e técnicos, àquela noite de tiros e garrafadas no cabaré, às ameaças de morte iniciais. Aludia às inconstantes areias da barra: com as marés, os ventos, os temporais, moviam-se elas, mudavam o fundo das águas, cobriam e destruíam em poucas horas o trabalho de semanas. Era preciso começar e recomeçar, pacientemente, mudando vinte vezes o traçado do canal, buscando os pontos mais defendidos. Chegaram os técnicos, em determinado momento, a duvidar do sucesso, tomados de desânimo, enquanto a gente mais pessimista da cidade repetia argumentos da campanha eleitoral: a barra de Ilhéus era um problema insolúvel, não tinha jeito.
Partiram os rebocadores e dragas, os engenheiros e técnicos. Uma das dragas ficou permanente no porto, para atender com presteza às movimentadas areias, para manter o novo canal aberto à navegação de maior calado.
Uma grande festas de despedida. cachaçada monumental, iniciando-se no Restaurante do Comércio, terminando no El-Dorado, celebrou o feito dos engenheiros, sua pertinácia, sua capacidade profissional. O Doutor esteve à altura de sua fama no discurso de saudação onde comparou o engenheiro-chefe a Napoleão, mas 'um Napoleão das batalhas da paz e do progresso, vencedor do mar aparentemente indomável, do rio traiçoeiro, das areias inimigas da civilização, dos ventos tenebrosos', podendo contemplar com orgulho, do alto do farol da ilha de Pernambuco, o porto de Ilhéus por ele 'libertado da escravidão da barra, aberto a todas as bandeiras, a todos os navios, pela inteligência e dedicação dos nobres engenheiros e competentes técnicos'.
Deixaram saudades e raparigas. No cais de despedidas, choravam mulheres dos morros, abraçando os marinheiros. Uma delas estava grávida, o homem prometia voltar. O engenheiro-chefe levava preciosa carga da boa Cana de Ilhéus, além de um macaco jupará para recordar-lhe, no Rio, essa terra de dinheiro farto e fácil, de valentias e duro trabalho.
(...)
Quando faltavam apenas quatro dias para o domingo das eleições, por volta das três horas da tarde, o navio sueco, cargueiro de tamanho jamais visto naquelas paragens, apitou majestoso no mar de Ilhéus. O negrinho Tuísca saiu a correr com a notícia e a distribuía de graça nas ruas do centro. A população juntou-se na avenida da praia.
Nem a chegada do bispo foi assim animada. Os foguetes subiam, estouravam no céu. Apitavam dois baianos no porto, os búzios das barcaças e lanchas saudavam o cargueiro. Saveiros e canoas saíram fora da barra, afrontando o mar alto, para comboiar o barco sueco.
Atravessou lentamente a barra, dos seus mastros pendiam bandeiras de todos os países, numa festa de cores. O povo corria pelas ruas, reunia-se no cais. Formigavam as pontes, repletas de gente. Veio a Euterpe 13 de Maio tocando dobrados, Joaquim no bombo a bater. Fechou o comércio suas portas. Feriaram os colégios particulares, o grupo escolar, o ginásio de Enoch. A meninada aplaudia no porto, as moças do colégio de freiras namoravam nas pontes. Buzinavam automóveis, caminhões e marinetes. (...) A cidade de Ilhéus inteira no cais.
Numa cerimônia simbólica, ideia risonha de João Fulgêncio, Mundinho Falcão e Stevenson, exportadores, Amâncio Leal e Ribeirinho, fazendeiros, carregavam um saco de cacau até o extremo da ponte onde o navio ancorara, o primeiro saco de cacau a ser embarcado diretamente de Ilhéus para o estrangeiro..."
Transcrito do livro Gabriela, Cravo e Canela: Crônica de Uma Cidade do Interior, de Jorge Amado (páginas 388, 389 e 396). São Paulo : Companhia das Letras, 2008.
Jorge Amado, em Gabriela deixa de lado seu explícito engajamento político de livro anteriores, libertando-se do realismo socialista. Ao mesmo tempo mantém no romance o cenário histórico-social da região cacaueira do sul da Bahia. Apresenta, lado a lado, o embate político dos coronéis (a lavoura arcaica) e dos exportadores (a nova burguesia comercial) e a história de amor entre o imigrante sírio Nacib e Gabriela, a mulata retirante, flor da terra e sua afirmação de liberdade. Há ainda no romance uma "polifonia das vozes sociais" na análise de José Paulo Paes, que acrescenta que a obra apresenta duas claves que "confluem no empenho modular, por nexos progressivos de consonância, a passagem do individual ao grupal, do econômico ao ético, do histórico ao mítico, do sentimental e do dramático ao cômico e ao picaresco, num amplo, variegado tecido sinfônico cujo poder de convencimento dá a medida do grau de mestria a que pôde chegar a arte de ficção de Jorge Amado". Jorge Amado, como faz em grande parte de sua vasta produção literária, alia a ficção à fatos históricos e em Gabriela coloca como pano de fundo de seu romance a história da cidade de Ilhéus e de seu porto.
Por F@bio
Gabriela, Cravo e Canela - Jorge Amado
"Assim, discutindo sobre os métodos do dr. Enoch e da famosa dona Guilhermina, legendária por sua severidade, foram andando para a ponte. Desembocando das ruas, algumas outras pessoas apareciam na mesma direção, vinham esperar o navio. Apesar da hora matinal reinava já certo movimento no porto. Carregadores conduziam sacos de cacau dos armazéns para o navio da Bahiana. Uma barcaça, as velas despregadas, preparava-se para partir, semelhava enorme pássaro branco. Um toque de búzio elevou-se, vibrou no ar, anunciando a partida próxima.
(...)
A conversa foi interrompida por apitos repetidos, breves e aflitos do navio. Houve um movimento de expectativa na ponte. Até os carregadores pararam para escutar.
- Encalhou!
- Porcaria de barra!
- Continuando assim nem navio da Bahiana vai poder entrar no porto.
- Quanto mais da Costeira e do Lloyd.
- A Costeira já ameaçou suspender a linha.
Barra difícil e perigosa, aquela de Ilhéus, apertada entre o morro do Unhão, na cidade, e o morro de Pernambuco, numa ilha ao lado do Pontal. Canal estreito e pouco profundo, de areia movendo-se continuamente, a cada maré. Era frequente o encalhe de navios, por vezes demoravam um dia a libertar-se. Os grandes paquetes não se atreviam a cruzar a barra assustadora, apesar do magnífico ancoradouro de Ilhéus.
Os apitos continuavam angustiosos, pessoas vindas para esperar o navio começavam a tomar o caminho da rua do Unhão para ver o que passava na barra.
- Vamos até lá?
- Isso é revoltante - dizia Doutor enquanto o grupo caminhava pela rua sem calçamento, contornando o morro. - Ilhéus produz uma grande parte do cacau que se consome no mundo, tem um porto de primeira, e, no entanto, a renda da exportação do cacau fica é na cidade da Bahia. Tudo por causa dessa maldita barra...
Agora que as chuvas tinham cessado, nenhum assunto mais empolgante que aquele para os ilheenses. Sobre a barra e a necessidade de torná-la praticável para os grandes navios, discutia-se todos os dias e em todas as partes. Sugeriam-se medidas, criticava-se o governo, acusava-se a intendência de pouco-caso. Sem que solução fosse dada, ficando as autoridades em promessas e as docas da Bahia recolhendo as taxas de exportação.
(...)
Os apitos do navio cresciam em desespero, eles apressaram o passo, aparecia gente de todos os lados."
Transcrito de "Gabriela, Cravo e Canela : Crônica de uma Cidade do Interior" (páginas 32 e 33), de Jorge Amado. São Paulo : Companhia das Letras, 2008.
Jorge Amado (1912 - 2001), baiano de Itabuna, foi dos mais importantes romancistas brasileiros do século XX. Dos escritores brasileiros é dos mais difundidos e publicados no mundo. Suas obras foram traduzidas para dezenas de idiomas e adaptadas para teatro, cinema e televisão, como é o caso de Gabriela, com duas versões de novela, estrelada por Sônia Braga e Juliana Paes, e cinema, mais uma vez com Sônia Braga e com o ator italiano Marcello Mastroianni no papel de Nacib.
Uma das tramas do livro é a questão do porto de Ilhéus, encravado dentro da barra, frequentemente assoreada, que tornava um suplicio para os navios nele atracarem e praticamente impedia a exportação do cacau diretamente da região produtora, fazendo com que tivesse que ser levado para o porto de Salvador, onde era embarcado nos grandes cargueiros da época, e só daí seguiam para os principais mercados, na Europa e Estados Unidos.
Essa questão só foi resolvida com a construção, nos anos 70, do Porto do Malhado, mas já mencionada no livro, cuja história remonta ao ano de 1925. Contudo, a lavoura e indústria do cacau, que fez a riqueza da região até os 80, entrou em declínio com a contaminação das plantações pela doença conhecida como vassoura de bruxa. Vamos voltar ao assunto numa próxima postagem.
Por F@bio
(...)
A conversa foi interrompida por apitos repetidos, breves e aflitos do navio. Houve um movimento de expectativa na ponte. Até os carregadores pararam para escutar.
- Encalhou!
- Porcaria de barra!
- Continuando assim nem navio da Bahiana vai poder entrar no porto.
- Quanto mais da Costeira e do Lloyd.
- A Costeira já ameaçou suspender a linha.
Barra difícil e perigosa, aquela de Ilhéus, apertada entre o morro do Unhão, na cidade, e o morro de Pernambuco, numa ilha ao lado do Pontal. Canal estreito e pouco profundo, de areia movendo-se continuamente, a cada maré. Era frequente o encalhe de navios, por vezes demoravam um dia a libertar-se. Os grandes paquetes não se atreviam a cruzar a barra assustadora, apesar do magnífico ancoradouro de Ilhéus.
Os apitos continuavam angustiosos, pessoas vindas para esperar o navio começavam a tomar o caminho da rua do Unhão para ver o que passava na barra.
- Vamos até lá?
- Isso é revoltante - dizia Doutor enquanto o grupo caminhava pela rua sem calçamento, contornando o morro. - Ilhéus produz uma grande parte do cacau que se consome no mundo, tem um porto de primeira, e, no entanto, a renda da exportação do cacau fica é na cidade da Bahia. Tudo por causa dessa maldita barra...
Agora que as chuvas tinham cessado, nenhum assunto mais empolgante que aquele para os ilheenses. Sobre a barra e a necessidade de torná-la praticável para os grandes navios, discutia-se todos os dias e em todas as partes. Sugeriam-se medidas, criticava-se o governo, acusava-se a intendência de pouco-caso. Sem que solução fosse dada, ficando as autoridades em promessas e as docas da Bahia recolhendo as taxas de exportação.
(...)
Os apitos do navio cresciam em desespero, eles apressaram o passo, aparecia gente de todos os lados."
Transcrito de "Gabriela, Cravo e Canela : Crônica de uma Cidade do Interior" (páginas 32 e 33), de Jorge Amado. São Paulo : Companhia das Letras, 2008.
Jorge Amado (1912 - 2001), baiano de Itabuna, foi dos mais importantes romancistas brasileiros do século XX. Dos escritores brasileiros é dos mais difundidos e publicados no mundo. Suas obras foram traduzidas para dezenas de idiomas e adaptadas para teatro, cinema e televisão, como é o caso de Gabriela, com duas versões de novela, estrelada por Sônia Braga e Juliana Paes, e cinema, mais uma vez com Sônia Braga e com o ator italiano Marcello Mastroianni no papel de Nacib.
Uma das tramas do livro é a questão do porto de Ilhéus, encravado dentro da barra, frequentemente assoreada, que tornava um suplicio para os navios nele atracarem e praticamente impedia a exportação do cacau diretamente da região produtora, fazendo com que tivesse que ser levado para o porto de Salvador, onde era embarcado nos grandes cargueiros da época, e só daí seguiam para os principais mercados, na Europa e Estados Unidos.
Essa questão só foi resolvida com a construção, nos anos 70, do Porto do Malhado, mas já mencionada no livro, cuja história remonta ao ano de 1925. Contudo, a lavoura e indústria do cacau, que fez a riqueza da região até os 80, entrou em declínio com a contaminação das plantações pela doença conhecida como vassoura de bruxa. Vamos voltar ao assunto numa próxima postagem.
Por F@bio
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