“Todos conhecem a história da velhinha contrabandista. Todos os dias uma velhinha atravessava a ponte entre dois países, de bicicleta e carregando uma bolsa. E todos os dias era revistada pelos guardas da fronteira, à procura de contrabando. Os guardas tinham certeza que a velhinha era contrabandista, mas revistavam a velhinha, revistavam a sua bolsa, e nunca encontravam nada. Nada. Todos os dias a mesma coisa: nada. Até que um dia um dos guardas decidiu seguir a velhinha, para flagrá-la vendendo muamba, ficar sabendo o que ela contrabandeava e, principalmente, como. E seguiu a velhinha até seu próspero comércio de bicicletas e bolsas.”
Transcrito de A Velhinha Contrabandista em “O Mundo É Bárbaro e o que Nós Temos a Ver Com Isso” (pág. 41). Autor Luis Fernando Veríssimo. Crônica. Rio de Janeiro: Objetiva, 2008.
Caricatura de Veríssmo de autoria de Baptistão (www.baptistao.zip.net).
Veríssimo nos brinda sempre com um humor sutil e inspirado. Cronista dos mais profícuos da atualidade aborda na história da velhinha uma faceta muito crítica do comércio exterior: o descaminho, vulgarmente denominado de contrabando. Contrabando é a entrada ou saída do território aduaneiro de produto proibido, ou que atente contra a saúde ou a moralidade. Já o descaminho é a entrada ou saída de produtos permitidos, mas sem passar pelos trâmites burocráticos e tributários devidos. É o que faz a velhinha nas barbas dos fiscais da alfândega. Importar bicicletas e bolsas não é proibido, o que ela faz é deixar de declarar ao fisco, evadindo o pagamento dos tributos. Essa história hilária da velhinha ilustra um lado triste do comércio exterior, particularmente no nosso País, onde a importação ilegal alcança grande relevo, vide o comércio de produtos piratas e "contrabandeados", inclusive por meio dos chamados sacoleiros.
"O tigre da manhã espreita pelas venezianas.
O vento fareja tudo.
Nos cais, os guindastes - domesticados dinossauros -
erguem a carga do dia."
Transcrito de “Baú de Espantos”. Autor Mário Quintana. Poesia. 4ª Edição. Rio de Janeiro: Globo, 1988.
Fotos de Mario Quintana e do Predio do Antigo Hotel Majestic, hoje Casa de Cultura Mario Quintana obtidas no site da CCMQ.
Aqui Quintana deixa o porto ainda mais alegre, com a imagem dos guindastes do cais transformados em domesticados dinossauros. Quintana criou uma forma própria de fazer poesia. Em “eles passarão, nós passarinho” reconhece-se logo os traços quintanares, quintanenses, quintaneiros, o verbo quintanear. De verso simples, mas encantador, esse grande poeta gaúcho deixou um legado iluminado, mágica mistura de palavras e emoções, que preencheram um hotel inteiro de Porto Alegre, o Majestic, hoje dedicado às artes, em homenagem ao grande poeta foi transformado na Casa de Cultura Mario Quintana. Fica bem no Centro Histórico de Porto Alegre, perto do Porto, e conta com intensa atividade cultural. Uma vez tive a felicidade de participar de um sarau no Café Santo de Casa que fica no 7º Andar com uma bela vista para o Guaíba.
“Os escritórios da C.F.C. estavam desde a fundação diante do cais fluvial, sem nada em comum com o porto dos transatlânticos no lado oposto da baía, nem com o atracadouro do mercado na baía das Ânimas. Era um edifício de madeira com telhado de zinco de duas águas, um único balcão grande com colunas na fachada e várias janelas com telas de arame nos quatro costados, das quais se viam completos os navios no cais, com quadros pendurados na parede. Quando o construíram, os precursores alemães pintaram de vermelho o zinco dos telhados e de branco brilhante os tabiques de madeira, de maneira que o próprio edifício tinha algo de navio fluvial. Mais tarde pintaram-no todo de azul, e pelos tempos em que Florentino Ariza começou a trabalhar na empresa era um galpão poeirento sem cor definida, e nos telhados oxidados havia emendas de folhas de zinco novas sobre as folhas originais. Por trás do edifício, num pátio de caliça cercado de tela de galinheiro, havia dois armazéns amplos de construção mais recente, e no fundo havia um desaguadouro fechado, sujo e fedorento, onde apodreciam os despejos de meio século de navegação fluvial: escombros de navios históricos, desde os primitivos de uma só chaminé, inaugurados por Simão Bolívar, até alguns tão recentes que já tinham ventiladores elétricos nos camarotes. Tinham sido em sua maioria desmantelados para a utilização dos materiais em outros navios, mas muitos estavam em tão bom estado que parecia possível dar-lhes uma mão de pintura e botá-los para navegar, sem espantar as iguanas nem derrubar as árvores de grandes flores amarelas que os faziam mais nostálgicos.”
Transcrito de “O Amor nos Tempos do Cólera” (pag. 228). Autor Gabriel Garcia Marquez. Tradução de Antônio Callado. Romance. Rio de Janeiro: Editora Record, 1985.
Caricatura de Garcia Marquez obtida de: http://gm54.files.wordpress.com/2009/04/gabriel-garcia-marquez-caricatura.jpg
Sou um grande apreciador do texto de Garcia Marquez e O Amor nos Tempos do Cólera é para mim um de seus melhores livros. O trecho acima retrata de forma peculiar o cenário de um porto fluvial. A Companhia Fluvial do Caribe transporta mercadorias, animais e passageiros e deu “um impulso novo à navegação a vapor no rio Madalena” (pag.71). Não se trata propriamente de uma empresa de comércio exterior. Mas a cena descrita pelo autor é fiel a um porto nos primórdios do Séc. XX. Armazéns de madeira e telhados de zinco oxidados. Navios ancorados e naus abandonadas. Cais, pátios, tonéis e cercas de madeira. Galpões poeirentos, sujos e malcheirosos. Baía com vários atracadouros. Marinheiros, sacos, barris, trapiches, docas, caixotes, contrabandistas, estivadores, bares, prostíbulos, alfândega, carregadores, barcos, guindastes... A navegação interior encontra a navegação internacional. Como a cabotagem, a abastece e leva suas cargas para distribuir aos rincões continente adentro.
“O navio apitava nas manobras de atracação. De todos os cantos surgiam estivadores que se iam dirigindo para o grande armazém. Pedro Bala os olhou com carinho. Seu pai fora um deles, morrera por defesa deles. Ali iam passando homens brancos, mulatos, negros, muitos negros. Iam encher os porões de um navio de sacos de cacau, fardos de fumo, açúcar, todos os produtos do estado que iam para pátrias longínquas, onde outros homens como aqueles, talvez altos e loiros, descarregariam o navio, deixando vazios os seus porões. Seu pai fora um deles. Só agora o sabia. E por eles fizera discursos trepado em um caixão, brigara, recebera uma bala no dia em que a cavalaria enfrentou os grevistas. Talvez ali mesmo, onde ele se sentava, tivesse caído o sangue de seu pai. Pedro Bala mirou o chão agora asfaltado. Por debaixo do asfalto devia estar o sangue que correra do corpo de seu pai. Por isso, no dia em que quisesse, teria um lugar nas docas, entre aqueles homens, o lugar que fora de seu pai. E teria também que carregar fardos... Vida dura aquela, com fardos de sessenta quilos nas costas. Mas também poderia fazer uma greve assim como seu pai e João de Adão, brigar com policiais, morrer pelo direito deles. Assim vingaria seu pai, ajudaria aqueles homens a lutar pelo seu direito (vagamente Pedro Bala sabia o que era isso). Imaginava-se numa greve, lutando. E sorriam seus olhos como sorriam os seus lábios.”
Transcrito de “Capitães da Areia” (pág. 78). Autor Jorge Amado. Romance. Rio de Janeiro: Record, 95ª. Edição, 1998.
Caricatura de Jorge Amado de autoria de André Koehne obtido de http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Jorge_Amado_caricatura.jpg.
Grande romancista brasileiro, Jorge Amado, retrata com riqueza a vida dos trabalhadores portuários, sua rotina árdua, seus dramas, suas misérias. A cultura das docas é rica em tipos, lendas, crendices, lutas e tragédias. Jorge Amado, rimancista politica e socialmente engajado que foi deputado federal pelo partido comunista brasileiro, procura mostrar o porto pelo ângulo dos trabalhadores, suas tarefas estafantes, suas lutas e reivindicações por melhores condições de trabalho e vida, onde a greve é o momento mais dramático. Um porto de trabalho, movimentação de carga, pessoas, navios e lutas sociais.
Trabalho perto de 30 anos com comércio exterior. Essa trajetória começou no início da década de oitenta e ao trilhar esse caminho, tornei-me um profissional de comércio exterior.
Mas a vida é multifacetada e o gosto pela literatura sempre esteve presente na minha vida: romance, drama, poesia, comédia, biografia, novelas, cordel e por aí vai.
Daí surgiu a idéia de reunir num único lugar essas duas paixões. Nesses quase trinta anos sempre tratei o comércio exterior de uma forma bastante técnica. Agora, vou relaxar e tratar o tema com a linguagem literária. Para tanto vou reunir escritos dos mestres das letras, com passagens por aspectos, cenários, situações, momentos que envolvem o comércio exterior.