quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

A Essencia do Mercado ou O Caso das Taças de Ovos - Fernando Pessoa

 "Aqui ha anos, antes da Grande Guerra, correu os meios inglêses, como exemplo demonstrativo da insinuação comercial alemã, a noticia do caso curioso das "taças de ovos" (egg-cups) que se vendiam na India.
  O inglês costuma comer os ovos, a que nós chamamos "quentes", não em copos e partidos, mas em pequenas taças de louça, do feitio de meio ovo, e em que o ovo portanto entra até metade; partem a extremidade livre do ovo, e comem-no assim, com uma colher de chá, depois de lhe ter deitado sal e pimenta. Na India, colonia britânica, assim se comiam, e naturalmente ainda se comem, os ovos "quentes". Como é de supôr, eram casas inglêsas as que, por tradição aparentemente inquebravel, exportam para a India as taças para este fim.
  Sucedeu, porêm, que, alguns anos antes da Guerra, as firmas inglêsas exportadoras dêste artigo notaram que a procura dêle na India decrescera quasi até zero. Estranharam o facto, buscaram saber a causa, e não tardou que descobrissem que estavam sendo batidas por casas exportadoras alemãs, que vendiam identico artigo ao mesmo preço.
  Se as casas alemãs houvessem entrado no mercado indio com o artigo a preços mais baixos, sem duvida que os agentes dos exportadores inglêses teriam advertido estes sem demora. Mas, como o preço era igual, e a qualidade igual tambem, não era necessário o aviso; nem houve receio senão quando se verificou que havia razão para mais que receio - isto é, quando se verificou que, nestas condições de duvidosa vantagem para um novo concorrente, o artigo alemão vencera por completo.
  Feita a averiguação curiosa da causa dêste misterio, não tardou que se descobrisse. Os ovos das galinhas indianas eram - e naturalmente ainda são - ligeiramente maiores que os das galinhas da Europa, ou, pelo menos, das da Grã-Bretanha. Os fabricantes inglêses exportavam as taças de tipo unico que produziam para o consumo domestico. Essas taças, evidentemente, serviam de um modo imperfeito aos ovos das galinhas da India. Os alemães notaram isto, e fizeram taças ligeiramente maiores, proprias para receber esses ovos. Não tinham que alterar qualidade (podiam, até, baixá-la), nem que diminuir preço: tinham certa a victoria por o que em linguagem scientifica se chama a adaptação ao meio. Tinham resolvido, na India e para si, o problema de comer o ovo de Colombo."(sic)

Transcrito do livro "Sociologia do Comércio", de Fernando Pessoa, fac símile de 1997 produzido por JCTM Marketing Industrial Ltda. e VCP - Votorantim Celulose e Papel, a partir da edição original da Editorial Cultura de Lisboa, data provável 1951. O trecho consta do capítulo denominado "A Essência do Comércio", cuja nota bibliográfica indica que a primeira publicação se deu na "Revista de Comércio e Contabilidade" nº 1, de 25 de junho de 1926, Lisboa.

O grande escritor português Fernando Pessoa, uma unanimidade como poeta, não goza da mesma reputação nos textos em que se aventurou por refletir sobre política, sociologia e economia, como é o caso de "Interregno (Defeza e Justificação da Ditadura Militar em Portugal)", cuja primeira edição data de 1928. Ainda que em 1935 tenha publicado o “Interregno-II”, no qual Pessoa admitiu o seu engano: “Escrevi no princípio de 1928 um folheto com o mesmo título que o presente (…). Dou hoje esse título por não escrito; escrevo este para o substituir”.

Em Sociologia do Comércio, Pessoa procura analisar os problemas fundamentais do comércio impregnado pela visão liberal que vigorava no final do Século XIX, ainda que afirme que "seremos, quando possa ser, concretos dentro da abstração natural das teorias e das doutrinas". Mas, deve-se reconhecer, em alguns aspectos de seu estudo, o poeta antecipou linhas mestras atuais da teoria do comércio, como estratégias de marketing e técnicas de vendas. No trecho acima transcrito, cita o curioso caso da exportação de taças de ovos para a Índia, do qual retira ensinamentos muito atuais, como de o comerciante ser um prestador de serviços que deve estar atento aos desejos do consumidor. Para tanto, na opinião de Pessoa, o comerciante ou exportador deve atentar para as condições de aceitação do seu produto e o nível da concorrência, conhecer a psicologia do consumidor e sua sensibilidade ao preço, saber a melhor forma de apresentar o seu produto e averiguar as condições especiais, como moda, cultura, política...
Por F@bio 

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