quarta-feira, 10 de outubro de 2012

O Navio de Espelhos - Mario Cesariny


O navio de espelhos
não navega cavalga

Seu mar é a floresta
que lhe serve de nível

Ao crepúsculo espelha
sol e lua nos flancos

Por isso o tempo gosta
de deitar-se com ele

Os armadores não amam
a sua rota clara

(Vista do movimento
dir-se-ia que pára)

Quando chega à cidade
nenhum cais o abriga

O seu porão traz nada
nada leva à partida

Vozes e ar pesado
é tudo o que transporta

(E no mastro espelhado
uma espécie de porta)

Seus dez mil capitães
têm o mesmo rosto

A mesma cinta escura
o mesmo grau e posto

Quando um se revolta
há dez mil insurrectos

(Como os olhos da mosca
reflectem os objectos)

E quando um deles ala
o corpo sobre os mastros
e escruta o mar do fundo

Toda a nave cavalga
(como no espaço os astros)

Do princípio do mundo
até ao fim do mundo




Mário Cesariny de Vasconcelos (1923 – 2006), português, pintor e poeta, considerado o principal representante do surrealismo em Portugal, sendo de se destacar também o seu trabalho de antologista, compilador e polêmico historiador das atividades surrealistas em seu país. Afirma-se que foi o artista português que de forma mais plena assumiu o surrealismo: "não como método ou escola, mas como forma de insurreição permanente, na arte e na vida". Uma característica peculiar da arte de Cesariny é que nela a pintura e a poesia foram sempre aliadas: muitas de suas obras incluem palavras recortadas, conjugações de textos e imagens, e outras formas experimentais. (obtido de http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1rio_Cesariny e http://cesariny.blogs.sapo.pt/)

 

domingo, 7 de outubro de 2012

Apenas um navio - Lidia Maria de Melo


Apenas um navio

No ano de meia quatro,
no meio do estuário
em frente ao porto de Santos,
o porto de minha infância,
Das barcas e das catraias,
dos navios e rebocadores,
Dos trens e dos armazéns,
onde os botos,
às cinco e meia da tarde,
viraram cambalhotas
enquanto as gaivotas
fisgavam peixes no mar,
avistava-se um navio
velho, preto,
ancorado
próximo à Ilha Barnabé,
que os menos informados
confundiam com um navio comum.
Mas eu e muitas crianças,
que ansiavam
para verem os pais
(confinados),
sabíamos que ele era bem mais
que um navio qualquer
e o culpávamos
pela ausência paterna
nos almoços de domingo,
pela angústia disfarçada nos olhos de nossas mães,
pela melancolia que abraçava
todas nossas brincadeiras,
pela vontade de chorar
sem saber bem o porquê.
Nós já sentíamos tudo
e éramos tão crianças!
Só o que não entendíamos
é que o Raul Soares
era apenas um navio
e não tinha culpa de nada.
Não tinha culpa de ter virado
instrumento repressivo
no ano de meia quatro.



Lídia Maria de Melo. Raul Soares: Um navio tatuado em nós. São Paulo / Santos: Pioneira / Universidade Santa Cecília, 1995. Baixado em 07/10/2012 de: http://www.portogente.com.br/texto.php?cod=69655

Alessandro Atanes tem sido uma boa fonte para o Cargueiro. Poeta e jornalista, com ampla pesquisa sobre a literatura santista. No artigo "Golpe: poesia da exceção", Atanes nos apresenta o poema de Lídia Maria de Melo e informa que  “Apenas um navio” foi escrito em 1982,  na fase final da ditadura. O poema evoca a infância da escritora e "remete a um clima inicial de nostalgia, logo cortado pelo trauma, pela chaga no cais, a presença do navio-presídio Raul Soares no estuário, próximo à Ilha Barnabé... No poema de Lídia não é desolação que presenciamos, e sim a incerteza do Estado de Exceção após o golpe".
Navios foram concebidos como meio de transporte de pessoas e cargas, mas alguns tiveram sina terrível, como os negreiros a transportar escravos e os navios presídios, onde muitos foram confinados, maltratados e mortos. O Raul Soares era um navio misto, de carga e passageiros, de origem alemã que foi incorporado ao Lloyd Brasileiro, utilizado na navegação de cabotagem antes de virar prisão, seu triste fim. (vide “Raul Soares – Tempos de Gloria”, de Humberto de Lima Moraes em http://www.portogente.com.br/texto.php?cod=4824)