terça-feira, 11 de fevereiro de 2020

Os sonhos não envelhecem- Marcio Borges

"...andava eu próprio meio deprimido e esmorecido, me prometendo fazer mil coisas mas incapaz de sair do lugar, bebendo demais, sufocado dentro de uma revolta que não tinha como exteriorizar diante da gigantesca muralha do medo, dividido entre duas vontades, dois sentimentos contraditórios de missão e predestinação, duas opções abertas naquele momento à frente do jovem homem de 23 anos que eu era: a luta armada e seu consequente purgatório de clandestinidade e tensão ... ou a luta desarmada e seu consequente purgatório de paranóia, sensação de vazio e tédio que vinha a ser a vida de poeta errante, dirigindo shows aqui e fazendo letras acolá, com noitadas nos bares, sessões de ensaio, conversas tensas, especializadas. Pelo  menos não viessem falar de 'mensagens' ...'qual é a mensagem dessa letra?' Como se um poeta pudesse funcionar como cabograma ou sinal de fumaça."

Trecho de "Os sonhos não envelhecem: histórias do Clube da Esquina", de Marcio Borges (pág. 214/215), 9ª Ed. São Paulo : Geração Editorial, 2019.

Márcio Hilton Fragoso Borges nascido em Belo Horizonte (MG) em 1946 no seio de uma prole numerosa, 11 irmãos, do casal Salomão Magalhães Borges, jornalista autodidata, e Maria Fragoso Borges, professora primária. Márcio é o segundo de uma família bastante musical: o pai tocava violão e a mãe cantava em corais e tocava piano. Na adolescência, conheceu Milton Nascimento, com o qual desenvolveu uma grande amizade e parceria musical. Amante do cinema e da literatura tornou-se escritor e letrista de grande sucesso. Atualmente reside na cidade de Belo Horizonte e dedica-se à direção do Museu Clube da Esquina, do qual é idealizador.

O livro "Os Sonhos Não Envelhecem" tem por subtítulo "Histórias do Clube da Esquina" indicando assim o tema da narrativa, ou seja, a trajetória dos músicos e compositores mineiros que ocuparam o cenário musical brasileiro nas décadas de 70 e 80.
O assim denominado "Clube da Esquina" também poderia se chamar "A Turma do Levy", enorme edifício da região central de Belo Horizonte para onde a família Borges se mudou em 1963. Foi no quarto dos homens (Marilton, Márcio, Lô, Yé, Nico e Telo Borges) que Milton se tornou o 12º irmão e onde teve início a parceria com Márcio.
Como relata o autor o edifício "Levy era um mundo à parte dentro da cidade: dezessete andares e mais de 100 apartamentos...Tinha uma galeria em ângulo que ligava a avenida Amazonas à rua Curitiba. Sabe-se lá por qual predestinação, no Levy moraram à mesma época pessoas que mais cedo ou mais tarde vieram a se destacar na cena da cultura brasileira; gente como o escritor Júlio Gomide, o psicanalista Chaim Samuel Katz, o ator Jonas Bloch e suas duas filhas, a cantora da Jovem Guarda Martinha, 'O Queijinho de Mina', o maestro Wagner Tiso..." e  os irmãos Borges.
Certo dia Marcio e Milton vão assistir ao filme Jules e Jim, de François Truffault, ficam tão conectados que assistem três sessões seguidas. Quando põem os pés na rua já era noite, mas algo "ainda maior do que aquela transformação do dia em noite se transformara dentre de nós dois e no sentido inverso, pois que ia do obscuro para o iluminado" conta Borges. Compõem então a sua primeira música em parceria "Paz do amor que vem".
Narrado quase na forma de uma conversa com o leitor, toca em temas como a política, movimento cineclubista, trabalho, movimento estudantil, a vida em família, a música, as amizades e os sentimentos de milhares de jovens subjugados pela brutalidade e imbecilidade do regime ditatorial que se abate sobre o Brasil em 1964 e que irá perdurar por 21 anos. Nesse contexto, Borges aborda o surgimento de um gênio da música brasileiro e internacional, Milton Nascimento, o personagem central da obra.
Segundo o editor da Geração Editorial, Luiz Fernando Emediato, a obra é comovente, sensível, capaz de fazer vibrar e chorar: “Márcio Borges nos surpreende com um livro extraordinário, misto de romance de geração e memórias de um Brasil conturbado e trágico, mas culturalmente muito rico”.  O próprio Márcio conta que escreveu o livro para "cumprir um impulso, esvaziar meus escaninhos e recontar para mim mesmo, com os olhos do tempo e da distância, uma história que de qualquer forma já está contada nas músicas que compus".
Trata-se de um livro para quem gosta de história, de ler, sonhar e conhecer um pouco mais sobre a história do músicos do Clube da Esquina.
Por F@bio

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2020

Hereges - Leonardo Padura

"...convenceu-se das razões pelas quais, mesmo numa terra de liberdade, muitos ... preferiam viver mascarados entre segredos, em vez de límpidos entre verdades expostas.
...
E embora lhe parecesse doloroso, teve de aceitar que se sentia mais protegido por um homem de outra fé do que por muitos da sua. Mais acolhido por um estranho tolerante do que por um irmão de sangue, contaminado de fanatismo, de intransigência e, não podia qualificar de outro modo, tomado de ódio".

Trecho do livro Hereges, de Leonardo Padura (pag. 255). São Paulo : Boitempo, 2015,


Leonardo Padura é escritor, ensaísta, roteirista e jornalista cubano, pós-graduado em Literatura Hispano-Americana. Obteve reconhecimento internacional com sua série de romances policiais estrelada pelo detetive Mario Conde e pelo romance "O homem que amava os cachorros". Recebeu os prêmios Nacional de Literatura de Cuba em 2012, o X Internacional de Novela Histórica de Zaragoza em 2014 e o Princesa de Astúrias em 2015, ambos da Espanha.

O livro é um romance histórico e policial, divido em três partes e protagonistas: Daniel, Elias e Judith que têm em comum um quadro de Rembrandt e a busca pela liberdade. O ponto de partida é histórico: o caso do navio Saint Louis que em 1939 leva 937 judeus da Europa para ilha caribenha, mas Cuba tinha um governo corrupto e simpático ao nazismo. Após dias atracado em Havana, o desembarque não é autorizado e o comandante segue para os Estados Unidos e Canadá, onde também é rejeitado e tem que retornar a Europa. Daniel, apenas com oito anos, que veio antes para Cuba e está aos cuidados de um tio, viu sua família partir naquele navio direto para morte.
A narrativa em flashback leva o filho de Daniel a Cuba, anos mais tarde, a procurar o detetive Conde para descobrir o paradeiro do quadro de Rembrandt que esteve na posse de sua família desde o século XVII.
A segunda parte, protagonizada por Elias Ambrosius, no século XVII, um jovem judeu que se tornou discípulo de Rembrandt e teve seu rosto como modelo para o  famoso quadro de Jesus de Nazaré e é condenado por heresia.
A terceira parte, envolve a investigação pelo detetive Conde do desaparecimento de Judith Torres, uma jovem rebelde de dezoito anos.
(leia mais em http://www.poesianaalma.com.br/2018/04/resenha-na-contramao-do-que-esta-fora.html)
Padura usa todo o seu talento literário na composição dessa obra histórico-policial sustentando a relação dos três personagens com a heresia, a liberdade e o sentido da vida.
Por F@bio

terça-feira, 4 de fevereiro de 2020

Partir - Paula Parisot

"Ainda que conheça a história, não sei, ainda que diga a verdade, invento. As palavras são ficção, não são as coisas, nem os sentimentos, nem o que dizem ser, posso falar de lugares, fatos, pessoas, lembranças, desejos, posso dizer amei, sofri, mas ao dizer apenas recrio o que vi e vivi, transformando a mim e a minha vida num simulacro".

Trecho do romance Partir, de Paula Parisot (pag. 269). São Paulo: Tordesilhas, 2013


Paula Parisot é escritora e artista nascida no Rio de Janeiro que atualmente vive na cidade de São Paulo. Formada em desenho industrial pela PUC-RJ, foi bolsista da New School University de Nova Iorque, onde cursou Belas Artes. É autora do livro de contos "A dama da solidão", que foi finalista do Prêmio Jabuti, e do romance "Gonzos e parafusos", que inspirou uma performance que durou sete dias e seis noites.

Partir tem como protagonista o narrador, um homem que tem como meta chegar ao Alasca por terra. Saindo do Rio de Janeiro, faz uma peregrinação pela América do Sul (Brasil Região Sul, Uruguai, Argentina, Chile, Bolívia, Perú, Equador, Colômbia, Venezuela e novamente Brasil, agora pelo Norte e Nordeste). Mas o que conta para ele é o caminho, pois o destino é só um destino, nada mais. Nessa viagem depara-se com uma América Latina particular, com personagens inusitados e quase todos marginais. Ao partir deixa para trás um afeto inusual por um pato chamado Jack Kerouc, não por acaso o nome do autor de "On the road". Por certo um andarilho que, além do próprio pai, inspirou a autora.
No livro, a viagem também é contada pelos desenhos que a autora fez com carvão, grafite e nanquim. “Desenhar é como escrever através de símbolos e hieróglifos que não sei decifrar muito bem. Algo que me permite falar diretamente do inconsciente”, Paula explica (Fonte: http://portalcaneca.com.br/2013/09/lancamento-partir-de-paula-parisot-2/)

Além de um história envolvente, há passagens bastante bem humoradas no livro, como o encontro do narrador com o pato e o afeto que se cria entre os dois.
Por F@bio 

domingo, 17 de fevereiro de 2019

O Vermelho e o Negro - Stendhal

"...vejo homens que, sem contemplação para o que minha juventude possa merecer de piedade, hão de querer punir em mim e desencorajar para sempre os jovens que, oriundos de uma classe inferior e de qualquer forma oprimidos pela pobreza, têm a felicidade de conseguir uma boa educação e a audácia de imiscuir-se naquilo que o orgulho da gente rica chama 'sociedade'. Este é meu crime, senhores, e ele será punido com tanto maior severidade quanto, na verdade, eu não ser julgado pelos meus pares. Não vejo no banco dos jurados nenhum camponês enriquecido, mas unicamente burgueses indignados..."

Transcrito de O Vermelho e O Negro, de Stendhal, publicado em 1830.

A ação ocorre na França no período da Restauração antes da Revolução de 1830 e trata das tentativas de um jovem plebeu camponês de subir na vida, por meio do seu talento, trabalho duro, engano e hipocrisia. Inicialmente obtém sucesso, mas acaba sendo traído por suas próprias paixões.

Como estamos vivendo tempos obscuros, cabe recordar que após o Golpe de 1964, no Rio Grande do Sul, o General Justino Alves Bastos ordenou a queima de vários livros que considerava subversivos, dentre eles O Vermelho e o Negro. Tempos de pouca luz e muito sangue. Quem lê esse magnífico romance pode concluir que o mundo não mudou muito desde então.

Por F@bio

terça-feira, 11 de setembro de 2018

O Físico - Noah Gordon

"...
Como sempre, a rua Thames estava repleta de animais de carga e estivadores movimentando mercadorias entre os cavernosos armazéns e a floresta de mastros de navios nos cais.
...
Carretéis de risos misturavam-se a fitas de palavras em línguas estrangeiras. Palavrões eram lançados como bençãos afetuosas.
Passou por escravos esfarrapados carregando lingotes de ferro para os navios ancorados. Cachorros latiam para os pobres homens que se esforçavam sob o peso brutal, pérolas de suor brilhavam nas cabeças raspadas. Aspirou o cheiro de alho dos corpos mal lavados e o cheiro metálico do ferro e depois o odor mais agradável de um carrinho de um homem que vendia pastéis de carne. Sua boca encheu-se de água mas não tinha mais do que uma moeda no bolso e filhos famintos em casa.
...
Maior número de navios partia de Londres para a França do que qualquer outro porto da Inglaterra, portanto Rob foi para a sua cidade natal. Durante a viagem, parava para trabalhar, pois queria começar sua aventura com bastante ouro. Quando chegou a Londres, a temporada das viagens estava no fim. O Tâmisa estava repleto de mastros dos navios ancorados. O rei Canuto, fiel à sua origem [dinamarquesa], havia construído uma frota de navios vikings que percorriam os mares como monstros poderosos. Os ameaçadores navios de guerra estavam rodeados de todo tipo de embarcações: largos knorrs, transformados em barcos de pesca de oceano; as galeras trirreme dos ricos; graneleiros quadrados e lentos; navios mercantes de dois mastros, com velas latinas triangulares, os burros de carga das frotas mercantes dos países do Norte. Nenhuma delas tinha carga ou passageiros, pois as geladas tempestades de vento já tinham começado. Nos terríveis seis meses seguintes, em muitas manhãs os borrifos de água salgada iam ficar congelados no Canal e os marinheiros sabiam que se aventurar lá fora, onde o Mar do Norte se encontrava e misturava com o Atlântico, era morrer afogado nas águas congeladas..."

Transcrito do livro O Físico - A epopeia de um médico medieval, de autoria de Noah Gordon, tradução de Aulyde Soares Rodrigues. Rio de Janeiro: Rocco, 1988.

O romance conta a epopeia de um jovem órfão, Rob, que se tornar aprendiz de cirurgião barbeiro que com ele roda pela Inglaterra ensinando o ofício que era um misto de artista, curandeiro e cirurgião. Mas Rob tem um dom quase místico do poder da cura. O dom se torna vocação e a busca por aprimorar os seus conhecimentos na ciência ainda incipiente da medicina na aurora da Idade Média. Obcecado por se contrapor as forças da doença e da morte, Rob abandona o obscurantismo da Europa medieval e ruma para o esplendor do Oriente, onde despontam as descobertas dessa ciência fascinante que teima em desafiar o misticismo e o poder sagrado das religiões.


Noah Gordon é nascido nos Estados Unidos (1926), formado em jornalismo pelo Universidade de Boston (1950) e mestre em literatura e escrita criativa. Seus romances abordam a história da medicina, ética médica e mais recentemente temas relacionados à inquisição e a cultura judaica.
O Físico faz parte de uma trilogia com Xamã e A Escolha da Dra. Cole com os quais foi premiado nos Estados Unidos, Alemanha e Itália.

Situado nos primórdios da era medieval, o romance é rico em detalhes do ambiente humano e geográfico da época. Uma leitura cativante e que nos prende até o fim, em que pese ser uma brochura de quase 600 páginas. Por F@bio

sábado, 25 de agosto de 2018

Tocaia Grande - Jorge Amado

Tocaia Grande
"...
As casas exportadoras, quase todas alemãs e suíças, uma única brasileira - a menor e a  mais ladrona, segundo os maldizentes - travavam uma batalha de manha e de prestígio nas diversas áreas da região cacaueira a fim de ganhar e garantir a freguesia dos fazendeiros. Dos pequenos, facilitando-lhes adiantamentos por conta do cacau a ser entregue, dos grandes oferecendo-lhes comodidades e vantagens. Devido a seu Cícero Moura e, sobretudo, a seu Carlinhos Silva, Koifman & Cia ampliara seus negócios nos limites do rio das Cobras, acaparando boa parte da produção da zona. Com o objetivo de facilitar a vida dos cacauicultores, em especial dos menores, libertando-os da obrigação de entregar o produto na matriz de Ilhéus ou na filial de Itabuna, diminuindo o percurso e a despesa, seu Carlinhos propôs a Kurt Koifman, patrão e ex-parente, o estabelecimento de um depósito em Tocaia Grande, localidade bem situada e de futuro, para ali receber e estocar o cacau..."

Transcrito do romance "Tocaia Grande: a face obscura", de Jorge Amado. Rio de Janeiro: 8ª ed., Record, 1986 (págs. 340/341).
Adicionar legenda


Jorge Amado já na maturidade retoma a temática da região cacaueira, construindo sua narrativa com seu rico tempero: pitadas de sexo, violência, religiosidade, misticismo, lealdade, traição e, sobretudo, denúncia social. O romance trata do desbravamento e conquista de uma das últimas fronteiras do sul da Bahia, luta pela apropriação e derrubada da mata para plantio do cacau no conhecido ciclo do coronelismo. Terras conquistadas pelas mãos de jagunços e trabalhadores serviçais, a base de tramoias e tocaias. A trama envolve a formação de um povoado por pessoas simples e desvalidas que vieram ocupar um trecho esquecido nas margens do rio das Cobras. O nome do lugar - Tocaia Grande - revela sua origem. Tendo como personagem central um jagunço visionário que se torna fazendeiro e capitão, mas que não abandona sua gente. Mas outros personagens principais vão  surgindo ao longo do livro, incluindo muitas mulheres, como Coroca, a velha prostituta que se torna parteira e por fim pistoleira. Amado vai agregando outros personagens formando um amalgama de tipos diversos, como o imigrante árabe, o ex-escravo ferreiro, macumbeiro e ex-amante da madama, os retirantes  nordestinos, o sanfoneiro, as prostitutas, os tropeiros... Neste Brasil desigual e violento, construíram um lugar de paz e harmonia que vivia a margem do mundo oficial até que se torna objeto de cobiça e da "lei" dos poderosos.
Por F@bio

quarta-feira, 6 de junho de 2018

Do amor e outros demônios - Gabriel Garcia Marquez

"Do amor e outros demônios
-Um-

Tinham recebido ordem de não passar do Portal dos Mercadores, mas a criada se aventurou até a ponte levadiça do arrabalde de Getsemaní, atraída pela bulha do porto negreiro, onde leiloavam um carregamento de escravos da Guiné. O barco da Companhia Gaditana de Negros era esperado com alarme havia uma semana, por ter ocorrido a bordo uma mortandade inexplicável. Procurando escondê-la, lançaram ao mar os cadáveres sem lastro. A maré montante os fez flutuar, e eles amanheceram na praia desfigurados pelo inchaço e com uma estranha coloração roxo-avermelhada. Fizeram ancorar o navio fora da baía, temendo que se tratasse do surto de alguma peste africana, até que comprovaram ter havido um envenenamento com frios estragados.
À hora em que o cachorro passou pelo mercado já tinham arrematado a carga sobrevivente, desvalorizada pelo seu péssimo estado de saúde, e tratavam de compensar a perda com uma única abissínia, de sete palmos de altura, untada com melaço em vez do óleo comercial de rigor, e de uma beleza tão perturbadora que parecia mentira. Tinha nariz afilado, o crânio acabaçado, os olhos oblíquos, os dentes intactos e o porte equívoco de um gladiador romano. Não a ferraram no barracão, nem anunciaram sua idade e estado de saúde; puseram-na à venda por sua beleza apenas. O preço que o governador pagou por ela, sem regatear, e à vista, foi seu peso em ouro".


Transcrito de "Do amor e outros demônios", romance de Gabriel Garcia Marquez, tradução de Moacir Werneck de Castro, 23ª ed., pág. 14 e 14. Rio de Janeiro : Record, 2014.

Garcia Marquez, inspirado por uma notícia que lhe veio como repórter, compõe uma história de amor, mistério, feitiçaria, exorcismo,  religiosidade católica e africana, culminando com um processo de Inquisição. O romance é uma "terna evocação de um passado colonial que, de forma pungente, amplia a solidão de um época e das pessoas". O grande escritor colombiano aqui nos brinda com mais uma obra dramática e intensa, que lemos de uma só pegada cativados pelo suspense e vigor da trama.
Do trecho transcrito, a trágica cena do desembarque e comércio de cativos vindos da África. A ficção de Garcia Marquez parece ainda menos dramática do que foi a realidade de pessoas arrancadas de suas terras, famílias e povos, levadas para um mundo desconhecido, para trabalhar e servir aos senhores escravistas que tomavam pra si as terras do Novo Mundo. Infelizmente há quem defenda que não cabe compensar de alguma forma os descentes daqueles que deram sua força de trabalho e vida para construir novos impérios e foram mantidos a ferro e fogo, excluídos de toda a riqueza que geraram com seu trabalho. Finda a escravidão continuaram excluídos, sem moradia, educação, saúde, direitos, mas com todos os deveres que a sociedade lhes impôs. Essa dívida será sempre impagável, mas as cotas podem remediar um pouquinho a exclusão que lhes foi imposta desde sempre.
Por F@bio