"13 de maio
Enfim, lei. Nunca fui, nem o cargo me consentia ser propagandista da abolição, mas confesso que senti grande prazer quando soube da votação final do Senado e da sanção da Regente. Estava na rua do Ouvidor, onde a agitação era grande e a alegria geral.
Um conhecido meu, homem de imprensa, achando-me ali, ofereceu-me lugar no seu carro, que estava na rua Nova, e ia enfileirar no cortejo organizado para rodear o paço da cidade, e fazer ovação à Regente. Estive quase, quase a aceitar, tal era o meu atordoamento, mas os meus hábitos quietos, os costumes diplomáticos, a própria índole e a idade me retiveram melhor que as rédeas do cocheiro aos cavalos do carro, e recusei. Recusei com pena. Deixei-os ir, a ele e aos outros, que se juntaram e partiram da rua Primeiro de Março. Disseram-me depois que os manifestantes erguiam-se nos carros, que iam abertos, e faziam grandes aclamações, em frente ao paço, onde estavam também todos os ministros. Se eu lá fosse, provavelmente faria o mesmo e ainda agora não me teria entendido... Não, não faria nada; meteria a cara entre os joelhos.
Ainda bem que acabamos com isto. Era tempo. Embora queimemos todas as leis, decretos e avisos, não poderemos acabar com os atos particulares, escrituras e inventários, nem apagar a instituição da história, ou até da poesia. A poesia falará dela, particularmente naqueles versos de Heine, em que o nosso nome está perpétuo. Neles conta o capitão do navio negreiro haver deixado trezentos negros no Rio de Janeiro, onde “a casa Gonçalves Pereira” lhe pagou cem ducados por peça. Não importa que o poeta corrompa o nome do comprador e lhe chame Gonzales Perreiro; foi a rima ou a sua má pronúncia que o levou a isso. Também não temos ducados, mas aí foi o vendedor que trocou na sua língua o dinheiro do comprador. "
Transcrito de Memorial de Aires / 1888, de Machado de Assis, Obras Completas. Vol. I, pag.1.118, Rio de Janeiro : Editora Nova Aguilar, 1992. O trecho também é citado em http://www.erratica.com.br/opus/107/ juntamente com o poema de Heinrich Heine, Navio Negreiro, citado por Machado.
Memorial de Aires é o último romance de Machado de Assis escrito sob a forma de um diário, nos anos 1888 - 1889, com anotações, descrições e reflexões do Conselheiro Aires, diplomata aposentado, curioso personagem que também aparece no livro Esaú e Jacó.
O trecho transcrito relata a euforia popular com a decretação da Abolição em 13 de maio de 1988, finalmente votada pelo Senado e sancionada pela Regente, a princesa Isabel. Machado fala com ironia que "Ainda bem que acabamos com isto [a escravidão]. Era tempo". Mais tarde, já na república, serão queimados os documentos sobre a escravidão, com o indisfarçável fito de "apagar a instituição da história". Mas a poesia continuará a perpetuá-la, como em os Navios Negreiros de Castro Alves e Heine, citado por Machado, que com seu fino humor ironiza o equívoco do poeta que escreve "Perreiro" em vez de Pereira, no original em alemão: "Bleiben mir Neger dreihundert nur/ Im Hafen von Rio-Janeiro,/Zahlt dort mir hundert Dukaten per Stück/Das Haus Gonzales Perreiro." (Vide nota do tradutor André Vallias em http://www.erratica.com.br/opus/107/)
Outros registros interessantes do texto machadiano são as referências geográficas ao Rio de Janeiro, como Rua do Ouvidor e Rua Primeiro da Março, denominações que permanecem em nossos dias. Já a Rua Nova, na data da "anotação", tivera seu nome alterado para Rio Branco, posto que em 13/02/1888, decreto municipal substituiu o antigo nome para homenagear o eminente estadista José Maria da Silva Paranhos, o Visconde do Rio Branco.
Na "anotação" do Conselheiro também é indicado que o cortejo fora "organizado para rodear o paço da cidade" referindo ao prédio do Paço Imperial (hoje museu), situado na atual Praça XV de Novembro, sede do Governo Federal até 1897, quando a presidência da república mudou-se para o Palácio do Catete.
A mais antiga rua do Rio de Janeiro tinha o nome de Rua Direita e era a mais importante da cidade no século XIX, já que nela ficava a sede o governo imperial. Originalmente, ligava o Largo da Misericórdia ao Morro de São Bento. Em 1875, seu nome foi alterado para Rua Primeiro de Março em homenagem à vitória na Batalha de Aquidabã, que pôs fim à Guerra do Paraguai. Por coincidência, essa também é a data da fundação da cidade do Rio de Janeiro.
Já a Rua do Ouvidor manteve sua denominação e estreiteza, mas perdeu importância, pois no século XIX era lá que ficava o comércio mais chique da cidade.
Por F@bio