sexta-feira, 26 de fevereiro de 2021

Seu amigo esteve aqui - Cristina Chacel

"Aos 21 anos, quando entra para a Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), onde vai estudar sociologia e política, Beto já é um homem-feito. Porte atlético nos seus um metro e oitenta centímetros de altura e dono de um estonteante par de olhos verdes, arranca suspiros das garotas ao passar. Inteligente, bem humorado, gosta de andar bem-vestido, chama a atenção por isso. É um tipo amável, fácil de lidar, que se adapta rapidamente aos novos ambientes. Em pouco tempo, torna-se popular. Todo mundo o conhece na UFMG, a primeira escala de uma trajetória revolucionária que o levaria, em dez anos, à condição de desaparecido político da ditadura militar brasileira."

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"Vem dele, Sergio, a vontade de contar a história de Breno. Depois daquela manhã de 15 de fevereiro de 1971, ele nunca mais foi visto. Não se sabe, até hoje, como foi preso. Há poucos testemunhos sobre seu paradeiro. O mais provável foi revelado à militante e amiga Inês Etienne Romeu, quando esteve presa em um centro clandestino de tortura na serra fluminense de Petrópolis, que ficou conhecido como Casa da Morte. Lá, um dos agentes lhe confidenciou: 'Seu amigo esteve aqui.' Por sinistra coincidência, esse torturador havia sido jogador de basquete, em Belo Horizonte, na mesma época em que Carlos Alberto Soares de Freitas - conhecido então por seu apelido, Beto - atuava nas quadras. E ambos teriam se reconhecido."

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"Passados quarenta anos, ela se esforça para lembrar o que treinou esquecer. Como a última vez que viu Breno ela estava no Rio, de passagem, para participar do Festival de Teatro da Aldeia de Arcozelo, em Paty do Alferes, cidade do interior fluminense. Caminhava por Copacabana quando, de repente, se vê frente a frente com Breno. Um susto! Os dois se abraçam e Breno, ao saber que ela estava ali para um festival de teatro, tem um impulso:

- Eu vou te dar um livro! - diz.

Em seguida, ele entra com Margaret numa livraria perto dali e compra para ela um exemplar de Perseguição e assassinato de Jean-Paul Marat, de Peter Weiss. Primeiro grande sucesso do dramaturgo alemão, a peça de 1964 mergulha no conflito entre a individualidade e a necessidade da revolução. Bem guardado por Margaret até os dias de hoje, o livro não tem dedicatória, como era de se esperar de quem não pode deixar rastros..."



Trecho do livro "Seu amigo esteve aqui: a história do desaparecido político Carlos Alberto Soares de Freitas, assassinado na Casa da Morte", de autoria de Cristina Chacel. Rio de Janeiro: Zahar, 2012.



A jornalista Cristina Chacel esteve nas principais redações dos jornais do Rio de Janeiro: O Globo, Jornal do Brasil, Última Hora, Rádio JB, nos quais atuou como repórter, redatora, editora e colunista nas áreas de economia e tecnologia. Depois seguiu carreira como jornalista independente trabalhando em comunicação corporativa e institucional, marketing político, projetos sociais e solidários. Entre outros livros, Cristina lançou ainda "Janelas Abertas", em coautoria com o fotógrafo Rogério Reis; "Centro", da Coleção Bairros do Rio (Neighborhoods);  "O tatu saia da toca- histórias da internacionalização da Petrobrás"; "Arte e Ousadia"; "Rio de Contos 1000" e "Guanabara espelho do Rio", os dois últimos em coautoria com o marido e fotógrafo Custódio Coimbra. E ainda vários livros publicados com temáticas em políticas públicas e projetos sociais e solidários do Rio de Janeiro. 


Como lembra Álvaro Caldas no prefácio de "Seu amigo esteve aqui": "Vinte e sete anos depois que retornou à democracia, o Brasil ainda luta para desenterrar um doloroso legado perdido que, aos poucos e a duras penas, vem sendo reconstituído".

Cristina faleceu em 28 de julho de 2020 a tempo ainda de viver o grande retrocesso nessa luta. Felizmente com sua ampla pesquisa e relato, a história de Beto e de seu tempo foi por ela muito bem desvelada no livro em comento. 

Ainda segundo Álvaro Caldas: "Como se fosse um romance de não ficção, intercalando investigação jornalística, autobiografia e crônica, na fronteira entre os fatos e o relato ficcional, o texto segue os passos do mito criado em torno de um militante desparecido para devolvê-lo à história real. Eis então que temos de novo entre nós o 'nosso amigo' guerreiro, o que pode não ser um consolo, mas oferece uma valiosa contribuição para a construção da Verdade, e é um soco na cara dos carrascos que o assassinaram".

Também cursei Ciências Econômicas, mas na Universidade Federal Fluminense em Niterói. Ingressei em 1975, tempos da ditadura e época em que o coordenador do curso havia sido preso e era mantido incomunicável. Participei da iniciativa de criação de uma cooperativa de livros e, indo a Belo Horizonte, fui a UFMG conhecer a renomada cooperativa que lá existia justo na mesma faculdade em que Beto estudou. Na época não sabia da sua história, como poderia saber?

Conheci Cristina há pouco tempo, mas o suficiente para saber que ela era uma pessoa alegre e lutadora, que sabia traduzir em palavras as emoções de momentos especiais e comover os que estavam ao seu lado. Lutou no jornalismo, na ecologia, nos sindicados e organizações sociais, na política e contra um câncer, nem todas venceu, mas deixou um inestimável legado, como o livro resgate da história de Carlos Alberto Soares de Freitas. Com um texto muito bem costurado, onde cria um clima de suspense ao narrar uma história verídica de um militante desaparecido político no obscuro período da ditadura militar no Brasil.

Com ampla pesquisa em arquivos públicos e pessoais, depoimentos e reportagens de época, Cristina trás a luz a luta de um idealista contra o autoritarismo e as sombras do regime autoritário de 1964. Carlos Alberto Soares de Freitas, o Beto ou Breno foi um dos três militantes homenageado por sua companheira de lutas que viria a ser presidente da república, Dilma Rousseff. Numa narrativa envolvente, o livro é importante contribuição para desvelar uma parte da história brasileira que alguns tentam esconder, para não revelar suas atrocidades como agentes do estado brasileiro. 

Um belo resgate da verdade e revelador das masmorras que não podem ser ignoradas como querem os atuais ocupantes do governo federal no Brasil.

Boa leitura e reflexão para todos!

Por F@bio


quarta-feira, 17 de fevereiro de 2021

A Viragem dos Ventos - Maruza Bastos

"...Ela todo sorrisos, esforçava-se para se integrar à turma. Tudo corria bem até a conversa descontraída virar uma curva fechada e engrenar na perigosa direção de uma cumplicidade engajada. Não tinha estofo para compartilhar. Isolou-se intimidada com a desorientação que precisava urgentemente disfarçar. Emudeceu, amordaçando a ignorância; o fulgor de seu rosto desaparecia quanto mais se refugiava. Envergonhou-se. A seus olhos, a falta de saber lhe pareceu inconcebível. O que sucedera com a vitalidade juvenil, a que viera se assegurar junto às autoridades médicas do Rio? Levantou-se. Não foi fácil manter o corpo ereto e os passos firmes.

...

Veio à tona o êxtase vivido nos dias presentes. O sentido e a beleza da alforria que experimentara no Rio. Horizontes impensados se descortinavam diante dela como estrelas novas que nasciam. Não, nada disso poderia ser pecado, nem induziria a sacrifícios de mortificação. Um fio ligava a liberdade conquistada à tradição de sua história daqueles dias longínquos. Esse encontro desencontro pulsava, contração expansão; o universo no peito batendo, contração expansão; o sentido da existência, contração expansão; o bombear do coração, contrair expandir.

Esse todo verdade de repente a invadiu com uma garra insondável pela vida. Revirado em júbilo, o sentimento se verteu em clara evidência. Ainda tenho um amor novo inteiro para viver, murmurou, abstraindo em reza a força da devoção. De onde surgia tamanho arroubo que arremessava para longe os traços de sua fraqueza?"


Trechos do romance A Viragem dos Ventos, de Maruza Bastos. Rio de Janeiro: Ape'Ku Editora, 2020.


Maruza Bastos é carioca, psicóloga e psicanalista que realizou sua formação na Sociedade de Psicanálise Iracy Doyle da cidade do Rio de Janeiro, onde atua. Mestre e Doutora em Psicologia, foi professora universitária, pesquisadora e atuou também na justiça da infância e adolescência. É autora ainda dos livros "Olhos de Serpente", romance de 2015, e "Cárcere de Mulheres",  dissertação de 1997. Publicou os contos: "O Cofre de Extima" (2009), "Bicho Solto" (2011) e "Carta ao Irmão" (2015). Alguns desses e outros de seus escritos estão registrados em www.freudeslizar.blogspot.com.



No romance A Viragem dos Ventos, a protagonista - Gigi - é uma ex-modelo de sucesso que deu uma virada para uma vida burguesa e pacata no campo, casando-se com rico fazendeiro e passando a morar em Cuiabá com o marido e um casal de filhos. Tendo a beleza como uma preocupação central em sua vida, decide fazer um checkup com especialistas no Rio. Mas antes programa uma parada em São Paulo para reencontrar amigas e, quem sabe, amores do passado.

Ao chegar no Rio, seus planos são atravessados por um turbilhão de acontecimentos. Novas amizades, novas experiências, novos questionamentos, novas aventuras. Essa tempestade de acontecimentos surge como um vendaval que se contrapõe ao tradicionalismo e a mesmice da vida de Gigi. Diante dessa ebulição, afloram desejos reprimidos: "ela atravessa o mar pulsional de sua existência", em meio a ativismos político, ambiental, existencial que insuflam "no espírito de cada um a urgência de uma escolha" e o amor nem sempre é a escolha mais óbvia e simples.

Uma ótima leitura e que os bons ventos da viragem cheguem em breve nesses tempos de isolamento e pandemias.

Por F@bio