"Do amor e outros demônios
-Um-
Tinham recebido ordem de não passar do Portal dos Mercadores, mas a criada se aventurou até a ponte levadiça do arrabalde de Getsemaní, atraída pela bulha do porto negreiro, onde leiloavam um carregamento de escravos da Guiné. O barco da Companhia Gaditana de Negros era esperado com alarme havia uma semana, por ter ocorrido a bordo uma mortandade inexplicável. Procurando escondê-la, lançaram ao mar os cadáveres sem lastro. A maré montante os fez flutuar, e eles amanheceram na praia desfigurados pelo inchaço e com uma estranha coloração roxo-avermelhada. Fizeram ancorar o navio fora da baía, temendo que se tratasse do surto de alguma peste africana, até que comprovaram ter havido um envenenamento com frios estragados.
À hora em que o cachorro passou pelo mercado já tinham arrematado a carga sobrevivente, desvalorizada pelo seu péssimo estado de saúde, e tratavam de compensar a perda com uma única abissínia, de sete palmos de altura, untada com melaço em vez do óleo comercial de rigor, e de uma beleza tão perturbadora que parecia mentira. Tinha nariz afilado, o crânio acabaçado, os olhos oblíquos, os dentes intactos e o porte equívoco de um gladiador romano. Não a ferraram no barracão, nem anunciaram sua idade e estado de saúde; puseram-na à venda por sua beleza apenas. O preço que o governador pagou por ela, sem regatear, e à vista, foi seu peso em ouro".
Transcrito de "Do amor e outros demônios", romance de Gabriel Garcia Marquez, tradução de Moacir Werneck de Castro, 23ª ed., pág. 14 e 14. Rio de Janeiro : Record, 2014.
Garcia Marquez, inspirado por uma notícia que lhe veio como repórter, compõe uma história de amor, mistério, feitiçaria, exorcismo, religiosidade católica e africana, culminando com um processo de Inquisição. O romance é uma "terna evocação de um passado colonial que, de forma pungente, amplia a solidão de um época e das pessoas". O grande escritor colombiano aqui nos brinda com mais uma obra dramática e intensa, que lemos de uma só pegada cativados pelo suspense e vigor da trama.
Do trecho transcrito, a trágica cena do desembarque e comércio de cativos vindos da África. A ficção de Garcia Marquez parece ainda menos dramática do que foi a realidade de pessoas arrancadas de suas terras, famílias e povos, levadas para um mundo desconhecido, para trabalhar e servir aos senhores escravistas que tomavam pra si as terras do Novo Mundo. Infelizmente há quem defenda que não cabe compensar de alguma forma os descentes daqueles que deram sua força de trabalho e vida para construir novos impérios e foram mantidos a ferro e fogo, excluídos de toda a riqueza que geraram com seu trabalho. Finda a escravidão continuaram excluídos, sem moradia, educação, saúde, direitos, mas com todos os deveres que a sociedade lhes impôs. Essa dívida será sempre impagável, mas as cotas podem remediar um pouquinho a exclusão que lhes foi imposta desde sempre.
Por F@bio