“A capital oferecia ainda aos recém-chegados um espetáculo magnífico. Vivia-se dos restos daquele deslumbramento e agitação, epopeia de ouro da cidade e do mundo, porque a impressão total é que o mundo inteiro era assim mesmo. Certo, não lhe esqueceste o nome, encilhamento, a grande quadra das empresas e companhias de toda espécie. Quem não viu aquilo não viu nada. Cascatas de ideias, de invenções, de concessões rolavam todos os dias, sonoras e vistosas para se fazerem contos de réis, centenas de contos, milhares, milhares de milhares, milhares de milhares de milhares de contos de réis. Todos os papéis, aliás ações, saíram frescos e eternos do prelo. Eram estradas de ferro, bancos, fábricas, minas, estaleiros, navegação, edificação, exportação, importação, ensaques, empréstimos, todas as uniões, todas as regiões, tudo o que esses nomes comportam e mais o que esqueceram. Tudo andava nas ruas e praças, com estatutos, organizadores e listas. Letras grandes enchiam as folhas públicas, os títulos sucediam-se, sem que se repetissem, raro morria, e só morria o que era frouxo, mas a princípio nada era frouxo. Cada ação trazia a vida intensa e liberal, alguma vez imortal, que se multiplicava daquela outra vida com que a alma acolhe as religiões novas. Nasciam as ações a preço alto, mais numerosas que as antigas crias da escravidão, e com dividendos infinitos.”
Em “Esaú e Jacó”, de Machado de Assis, pag.141, 4ª Edição (cotejada com a edição original da Livraria Garnier, Rio de Janeiro, 1904). São Paulo: Editora Martin Claret, 2001.
Joaquim Maria Machado de Assis, autodidata, foi cronista, contista, dramaturgo, jornalista, poeta, novelista, romancista, crítico e ensaísta. Nasceu em 21.07.1839 no Rio de Janeiro, cidade onde viveu até sua morte em 29.09.1908. Mulato, pobre, de saúde frágil, órfão de pai e mãe, foi criado pela madrasta, Maria Inês, também mulata. Primeiro presidente da Academia Brasileira de Letras, que adotou seu nome – Casa Machado de Assis. É considerado o maior escritor brasileiro. “Esaú e Jacó” é seu penúltimo romance. (Leia mais em: http://www.releituras.com/machadodeassis_bio.asp)
Tenho profunda admiração pela escrita sutil e irônica de Machado, de quem já li quase toda a obra. O livro que mais me marcou é, sem dúvida, Dom Casmurro. Mas todos os seus textos são de uma riqueza literária e poética sem igual e muito a frente de seu tempo. Para quem mora no Rio de Janeiro é uma delícia acompanhar a geografia da cidade, na qual são ambientados todos os seus romances, e perceber as enormes transformações sofridas. O romance Esaú e Jacó tem por protagonistas irmãos gêmeos que, embora idênticos no físico, são oponentes e concorrentes nos desejos e personalidades, uma clara referência à parábola bíblica. Machado ambienta o romance no período da passagem do Império para a República, e trata como pano de fundo os dilemas dos que estão no poder e dele não querem apear. O trecho transcrito, realista e melancólico, aborda a situação econômica vivida no período pós proclamação da república, com a política do encilhamento, situação muito parecida com a crise econômica mundial vivida em 2008, conhecida como "bolha imobiliária". Para os que desejam conhecer melhor esse genial escritor, sugiro ler sua biografia escrita por Daniel Piza, “Machado de Assis – Um Gênio Brasileiro”, com uma abordagem de vida e obra, critica, mas sem paixões.
Por F@bio