quarta-feira, 25 de janeiro de 2017

Pralapracá - Cassiano Ricardo

Pralapracá


E começa a longa história
do navio que ia e vinha
pela estrada azul do Atlântico:

Ia, levando pau-brasil
e homens cor da manhã, filhos do mato,
cheios de sol e de inocência;
vinha trazendo degredados...

Ia, levando uma esperança;
vinha trazendo foragidos de outras pátrias
para a ilha da Bem-aventurança.

Ia levando um grito de surpresa,
da terra criança;
e vinha abarrotado de saudade
portuguesa ...


Obtido do site da Fundação Cultural Cassiano Ricardo: http://www.fccr.sp.gov.br/index.php/institucional/151-cassiano-ricardo/577-livro-08?showall=1

Jornalista, poeta e ensaísta nascido em São José dos Campos - SP (1895). Estudou em São Paulo e Rio de Janeiro. Participou da Semana de Arte Moderna de 1922. Transitou do simbolismo ao modernismo e concretismo. Foi um ativista incansável. No modernismo participou dos grupos "Verde Amarelo" e "Anta". Trabalhou nos jornais Correio Paulistando (SP) e A Manhã (RJ). Fundou as revistas: Novíssima e Planalto. Presidiu o Clube da Poesia em São Paulo. Foi das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Letras.
Pralapracá  é a síntese do comércio exterior. Carga vai carga vem. Mas também vai esperança e volta saudade. Neste blog foi publicada a poesia "Céu e Mar" de Cassiano Ricardo. Salve o grande poeta sãojoanense.
Por F@bio

domingo, 11 de dezembro de 2016

Yann Andréa Steiner - Marguerite Duras

"Havia a sua voz. A voz de uma inacreditável doçura, distante, intimidadora, apenas pronunciada, apenas perceptível, sempre um pouco distraída, estranha ao que dizia, separada. Ainda hoje, doze anos depois, escuto essa voz que você tinha. Ela se infiltrou no meu corpo. Não tem imagem. Fala de coisas sem importância. E se cala também.
Nós falamos, você falou da beleza do hotel Roches Noires.
Depois ficou silencioso, como se procurasse a forma de dizer o que tinha a me dizer. Você não ouvia a calma crescente que vinha com a noite, tão profunda que fui à varanda para vê-la. De tempos em tempos, automóveis passavam diante de Roches Noires, iam para Honfleur ou para o Havre. O Havre, como todas as noites, estava iluminado como para um festa, e o céu ficava por cima da cidade, nu, e entre o céu e o farol de Sainte-Adresse havia o negro cortejo dos petroleiros, que desciam, como de hábito, para os portos da França e do Sul da Europa.
Você se levantou. Olhou-me através das vidraças. Continuava com aquele ar de profunda distração."

Transcrito do livro "Yann Andréa Steiner" (pags. 18 e 19), de Marguerite Duras, tradução de Maria Ignez Duque Estrada. Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 1993.



Marguerite Duras, pseudônimo de Marguerite Donnadieu, nasceu em 1914, na cidade de Saigon (atual Cidade de Ho Chi Minh) e faleceu em Paris, em 1996. Um dos mais importantes nomes da literatura francesa do Século XX, foi romancista, novelista, roteirista, poetisa, diretora de cinema e dramaturga. Viveu no Vietnã até 1932 quando mudou-se para Paris. Durante a 2ª Guerra Mundial engajou-se na Resistência Francesa. Estudou Direito, mas tornou-se escritora e obteve fama mundial com o romance "O Amante", com o qual ganhou o prêmio Goncourt de 1984. É autora de diversas peças de teatro, novelas, filmes e contos. Foi associada ao movimento chamado nouveau roman (novo romance) e com o existencialismo. Além O Amante, outros livros de destaque foram A Dor, O Amante da China do Norte e O Deslumbramento. Ficou também conhecida como a roteirista do filme "Hiroshima, meu amor", dirigido por Alain Resnais. Mas dirigiu filmes próprios, inclusive o conceituado "India Song" de 1976, porém sem o renome alcançado na carreira literária.
No trecho reproduzido do livro Yann Andréa Steiner, Duras faz referência ao porto de Havre, iluminado pelos navios petroleiros. O romance que prima pela linguagem coloquial que marcou a obra de Duras, traz uma narrativa fragmentada, num ritmo quase cinematográfico. O texto é bastante poético e com forte carga emocional, com frases curtas e diálogos desconcertantes, possíveis referências autobiográficas e ambientação cambiante.
Sobre seu ofício, Duras escreveu: "Por que algumas pessoas têm necessidade de viver duas vezes? Uma quando vivem, a outras quando escrevem? E por que a segunda vez é a mais importante? Isso é tão mais misterioso como concluir que as horas de sono e de sonho são mais importantes que as de vigília ... O dia é legível, a noite ilegível. O escritor é aquele que pode ler a noite. A gente nunca sabe aonde um bom escritor quer nos levar..."
Por F@bio 

segunda-feira, 21 de novembro de 2016

Ver Navios - Haroldo de Campos


VEM NAVIO
   VAI NAVIO
      VIR NAVIO
         VER NAVIO
            VER NÃO VER
         VIR NÃO VIR
      VIR NÃO VER
VER NÃO VIR
   VER NAVIOS


Haroldo de Campos (1929 - 2003), paulistano, poeta, tradutor e professor. Haroldo e o irmão Augusto foram dois dos grandes nomes da poesia concreta, parte do Concretismo, movimento artístico originário do Abstracionismo Geométrico que a partir do anos 30 do Século passado marcou a criação plástica e poética na Europa. A poesia concreta procura valorizar o espaço e o grafismo,  tornando a pontuação desnecessária, pois espaço e a forma geométrica dão às palavras uma maior plasticidade.

Em 1952, Haroldo, Augusto e Décio Pignatari rompem com o Clube da Poesia do qual faziam parte desde 1949, por divergirem do conservadorismo predominante. Criam o grupo "Noigandres" e passam a publicar poemas em sua revista. Em 1956 lançam o movimento concretista, ao qual Haroldo se manteve fiel até 1963, quando volta-se para o projeto do livro-poema "Galáxias".

A seguir, uma análise sucinta e interessante do poema feita pelo professor Kleber Henrique (http://poemasdeamoremorte.blogspot.com.br/2011/02/poesia.html):

"Nessa poesia de Haroldo de Campos, nota-se a decomposição da expressão “ver navios” a fim de produzir novas significações. Além das oscilações produzidas pela repetição (assonância) do fonema / v /, o que nos remete ao balanço do mar, vejo a tensão da espera do eu-lírico pelo navio que nunca vem na consoante / r /. A hesitação do seu humor e a angústia da possibilidade da chegada com a frustração da ausência, afiguram-se na variação dos ditongos / io / do começo com o / ão / a partir do verso 5, enfim, a náusea de ficar a “ver navios”."

Assim, à configuração gráfica que remete a um barco, junta-se o som da correta dicção, com suas pausas e acentos, a provocar o sentimento que o texto traz implícito. É o poeta ampliando as sensações da letra de sua poesia.
Por F@bio

terça-feira, 8 de novembro de 2016

A Carga - Ledo Ivo

Uma rua me conduzia até o porto.
E eu era a aruá com as suas janelas dilaceradas
E o sol depositado na areia materna.
Eu levava para a beira do mar tudo o que surgia
À minha passagem: portas, rostos, vozes, colônias de cupim e
Réstias de cebola que amadureciam na sombra
Dos armazéns providos. E sacos de açúcar. E as chuvas
Que haviam enegrecido os telhados das casas.
Era um dia de dádivas. Nada estava perdido.
As ondas celebravam a beleza do mundo.
A terra ostentava a promessa de vida.
E eu depositava a minha leve carga
Nos porões dos navios enferrujados.


Obtido de http://www.antoniomiranda.com.br/iberoamerica/brasil/ledo_ivo.html


Lêdo Ivo - jornalista, poeta, romancista, contista, cronista e ensaísta brasileiro. Foi membro da Academia Brasileira de Letras. Alagoano, nascido em Maceió em 1924 faleceu em 2012 em Sevilha, Espanha.

Todos carregamos nossas cargas de vida. Lembranças, dores, amores, sonhos, recordações, espantos, assombrações, medos, o sol e o sal. Levamo-nas em nossa jornada pelos caminhos que temos que trilhar até poder depositá-las nos depósitos de nossas memórias, navios enferrujados, revolvidos em nossas terapias.
Por F@bio

quarta-feira, 11 de maio de 2016

O Retrato de Dorian Gray – Oscar Wilde

“De repente, o cocheiro deteve o cavalo brutalmente na parte superior de uma ruela escura. Por cima dos telhados baixos e das fileiras irregulares de chaminés das casas, podiam-se ver os mastros negros de alguns barcos. A névoa esbranquiçada aglomerava-se em torno das vergas, como velas fantasmagóricas.
- Não é por aqui, senhor? – perguntou o cocheiro, com sua voz rouca, pela janelinha.
Dorian estremeceu, observando à sua volta.
- Sim, é aqui – respondeu, e desceu apressadamente. Entregou ao cocheiro a gratificação prometida e dirigiu-se rapidamente ao cais.
Aqui e ali brilhavam as lanternas colocadas na popa de algum enorme navio mercante. A luz se movia e ia refletir-se nas poças de água. Uma claridade avermelhada desprendia-se de uma grande embarcação que fazia seu carregamento de carvão. A calçada enlameada assemelhava-se a um impermeável molhado.
Estugou o passo em direção à esquerda, olhando para trás de vez em quando, para ver se estava sendo seguido. Ao fim de sete ou oito minutos, chegou a um miserável casebre, que se erguia humilde entre duas fábricas modestas. Em uma das janelas superiores, havia uma lâmpada. Deteve-se e bateu de modo especial.
Pouco depois, ouviram-se passos no corredor e o barulho de correntes que se desprendiam. A porta abriu-se silenciosamente e ele entrou sem endereçar sequer uma palavra à figura informe que desapareceu na escuridão, quando ele penetrou na habitação. No fim do vestíbulo, estava pendurada uma cortina verde e esfarrapada, que o vento tempestuoso da rua ergueu por um momento. Dorian afastou-se e entrou em um grande aposento de teto baixo que tinha o aspecto de um salão de baile de terceira classe. Alguns lampiões de gás, de chama viva e fulgurante, projetavam suas imagens deformadas, nas paredes. Refletores de metal ensebados, colocados na parte posterior, formavam trêmulos discos de luz. O solo estava coberto de serragem amarela, já bastante pisada e misturada com barro, e notavam-se nele manchas arredondadas e escuras de vinho derramado. Alguns malaios, acocorados junto a um fogareiro de carvão, jogavam dados de osso, e quando falavam mostravam dentes alvos. Em um canto, a cabeça oculta entre os braços, jazia um marinheiro estendido sobre a mesa...
No extremo da sala havia uma escadinha que conduzia a um quarto escuro. Dorian subiu precipitadamente os três degraus desengonçados e imediatamente chegou ate ele um forte odor de ópio. Lançou profundo suspiro e as asas de seu nariz vibraram de prazer. Quando entrou, um jovem de cabelos louros e lisos, que se inclinava sobre uma lâmpada, para acender um cachimbo longo e delgado, olhou-o e dirigiu-lhe uma saudação hesitante.
- Você aqui, Adrian? – murmurou Dorian.
- Onde haveria de estar? – respondeu com indiferença. – Meus amigos agora já não me dirigem a palavra.
- Pensei que você havia deixado a Inglaterra.
- Não. Darlington já não vai fazer nada. Meu irmão pagou finalmente a letra. George também já não fala comigo ... Que me importa! ... – acrescentou com um suspiro – enquanto tiver essa droga, não precisarei de amigos. Acho que tive amigos demais.
Dorian recuou e olhou em volta as figuras grotescas que jaziam nas mais fantásticas posições sobre os colchões esfarrapados. Experimentava verdadeira fascinação ao ver aqueles olhos fixos e sem brilho. Conhecia bem os paraísos estranhos em que eram acolhidos e os infernos tenebrosos que tinham de enfrentar para atingir o segredo de um novo prazer. Estavam melhor que ele que era prisioneiro de seu pensamento. A memória corroia a sua alma como horrenda moléstia. De vez em quando, tinha a impressão de ver os olhos de Basílio Hallward a fixá-lo. Ali não poderia permanecer, todavia. A presença de Adrian Singleton perturbava-o. Precisava de um lugar em que fosse inteiramente desconhecido. Tinha de fugir de si mesmo.
...
Dorian Gray acelerou o passo ao longo do cais, sob a chuva miúda que caía. O encontro com Adrian Singleton tinha-o  comovido estranhamente, e espantava-se de que a ruína daquela vida juvenil  fosse realmente culpa sua, como lhe havia dito Basílio Hallward, de maneira tão infame e ofensiva. Mordeu os lábios e, durante um momento, seus olhos se umedeceram. Mas, no final de contas, que lhe importava tudo aquilo? A vida era muito breve para que se pudesse suportar sobre os ombros o peso dos erros do próximo. Cada homem vivia sua própria vida e pagava seu próprio preço para vivê-la. O que era para lamentar é que uma pessoa tivesse de pagar tanto por um só erro. E era preciso pagar cada vez mais, com efeito. Em suas relações com os homens, o Destino nunca cessa de cobrar suas dívidas.”



Transcrito de: O Retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde, tradução de Oscar Mendes. São Paulo: Abril Cultural, 1981. Pags: 221 a 225


O livro “O Retrato de Dorian Gray”,  do escritor irlandês Oscar Wilde, considerado seu único romance, foi publicado em 1891. Wilde notabilizou-se como dramaturgo, poeta e contista.
O protagonista Dorian Gray posa para uma pintura do artista Basílio Hallward que retrata toda a beleza e jovialidade do rapaz. O pintor apresenta Lorde Henry Wotton, que faz Dorian tomar consciência de sua beleza e do valor de sua juventude e o inicia num mundo de vícios e desregramento. Apaixonado pela própria imagem e influenciado pelas palavras de Lorde Henry, Dorian expressa o desejo de permanecer eternamente belo como no retrato:

"Como é triste! - murmurou Dorian,  com os olhos fixos  ainda  no seu  retrato - Como é triste! Tornar-me-ei velho, horrível, espantoso. Mas este retrato permanecerá sempre jovem. Não será nunca mais velho do que neste dia de junho… Se ocorresse o contrário! Se eu ficasse sempre  jovem, e esse retrato envelhecesse! Por isso - por isso - eu daria tudo! Sim, não há nada no mundo que eu não desse. Daria até a minha própria alma!"  (pag. 36).

Com isso, Dorian faz o voto de Fausto, entrega a alma ao diabo ou a Lorde Henry Wotton. Ao fazer esse voto, a beleza de Dorian irá tornar-se sua própria miséria. Nesse romance, Wilde faz uma contundente crítica à sociedade aristocrática inglesa pela sua falsa moralidade, superficialidade e valorização excessiva da aparência. Wilde traz uma discussão incessante sobre o bem e o mal, o moral e o imoral e a busca do prazer a qualquer preço, além de abordar a questão da homossexualidade num triângulo formado por Dorian, Basílio e Lorde Henry. Isto levou a que o livro fosse censurado e provocasse violentos debates e intensa polêmica.
No trecho em destaque, Dorian já em sua fase mais violenta e desprezível, busca o prazer a todo custo, não importando que para isso tenha que sair de sua mansão na Londres aristocrática para buscar, na distante e decrépita zona portuária, o prazer por meio do consumo de ópio. Mas a fuga já não era mais possível, a culpa o perseguia, prisioneiro de sua consciência e miséria.
por F@bio

sábado, 2 de abril de 2016

Navios Iluminados - Ranulpho Prata


“Uma manhã luminosa. Azul por toda parte: nas águas, no céu, nos morros. Vinha do mar um vento fresco, que dava gosto a gente sentir no rosto e nas mãos. As bandeiras dos vapores atracados pareciam contentes, agitando-se, muito vivas, nos ares claros.
A turma 65 foi descarregar açúcar pernambucano, de um  Lloyd branco e preto. O ‘periquito’, pequeno guindaste hidráulico começou a trabalhar, empilhando a sacaria no cais. Os homens aproximaram-se, lerdos, como bois para a carga. O saco pegado por dois trabalhadores era colocado na cabeça de um terceiro, que ‘palmilhava’ nos ares, aparando-o com a mão direita espalmada, o braço firme e em arco, de modo que o peso se fizesse sentir gradualmente, e poupo a pouco, e não de sopetão, num desabamento repentino. Bem ajeitado na cabeça, era levado para dentro do armazém, onde cresciam rumas colossais, sendo possível, às vezes, ‘remontar’, subir escadas para ir atirá-los lá em cima.
Fez-se fila de homens carregados.
Severino aproximou-se para receber a sua carga, a primeira, tão ansiosamente desejada e esperada por tanto tempo. Tinha confiança nos seus músculos. Perto da pilha ouviu um dos companheiros dizer para o outro:
- Olha o novato...
De repente, sem que esperasse, quando viu foi o saco despencar sobre a sua cabeça, dando-lhe uma forte dor na nuca, escorregar-lhe pelas costas e cair no chão estourado. Não soubera palmilhá-lo, não tinha prática. Os dois homens riram um riso ruim.
...
Finda a quizilha, Severino perfilou-se, de novo, junto à pilha, para receber outro saco. Tinha o rosto trancado e enviesado para os companheiros, como a preveni-los, um olhar de rancor. E o saco veio desta vez devagar, pousando lento, na sua cabeça, quase docemente. O pescoço como que se achatou, comprimido, as veias saltaram, encordoando-o; entesaram-se lhe os músculos do tórax, criando relevo debaixo da camiseta rala de algodão. E lá saiu de corpo duro, o peso fazendo com que ele bamboleasse os quadris, como mulher. Penetrou no armazém, cuja porta estava esteirada de pó de serragem para evitar escorregos.
...
Quando às quatro e meia as sirenes puseram ponto final no trabalho, o porão do Lloyd estava limpo, a descarga finda...”
 



Transcrito de “Navios Iluminados”, de Ranulpho Prata, pags. 73 a 78. São Paulo: Scritta, 1996.


Ranulpho Prata, 1896 – 1942, sergipano de Lagarto. Autor também dos romances O triunfo, Dentro da Vida, O Lírio na Torrente, do livro de contos A Longa Estrada e do documentário Lampião. Conforme Alessandro Atanes, em Esquinas do Mundo – Ensaio sobre a História e Literatura a partir do Porto de Santos (São Paulo: Dobra Editorial, 2013), Prata formou-se na Faculdade de Medicina da Universidade do Brasil, no Rio de Janeiro em 1919, após ter iniciado os estudos em Salvador. Exerceu a medicina no interior de Minas Gerais e de São Paulo, Aracajú, Rio de Janeiro e em Mirassol (SP). Em 1927 assume uma vaga de médico radiologista na Santa Casa de Santos e posteriormente atende no Hospital Beneficiência Portuguesa e em seu consultório. Com o tempo, clinica em outras instituições, como o Ambulatório Gafrée e Guinle - família proprietária da Companhia Docas de Santos. Prata fixou-se na cidade portuária até sua morte em 1942.

Navios Iluminados é um romance de forte cunho social, no qual Prata revela sua sensibilidade pelo drama vivido pelos emigrantes nordestinos e pelos trabalhadores portuários. Com seu rigor detalhista e descritivo,  o romance nos apresenta um painel da sociedade santista, expondo a dura realidade vivida pelos trabalhadores das docas. No início do Século XX, o Brasil tinha uma economia baseada na monocultura de exportação, o campo e o porto eram os polos dinâmicos. Nos dois ambientes, os trabalhadores enfrentam condições precárias de trabalho, com baixíssima remuneração, péssimas moradias e saúde precária. Mas o autor vai além da denúncia, com abordagem psico social, crítica de costumes e tradições em uma época em que o Brasil dava os primeiros passos rumo à industrialização e urbanização.

Por F@bio

quarta-feira, 2 de março de 2016

Boa Viagem, Senhor Presidente – Gabriel Garcia Márquez


“...Havia vivido na Martinica todos os dias do exílio, sem outro contato com o exterior que as poucas notícias do jornal oficial, sustentando-se com as aulas de espanhol e latim num liceu oficial e com as traduções que às vezes Aimé Césaire encomendava. O calor era insuportável  em agosto, e ele ficava na rede até o meio-dia, lendo ao arrulho do ventilador no teto do dormitório. Sua mulher cuidava dos pássaros que criava soltos, mesmo nas horas de mais calor, protegendo-se do sol com um chapéu de palha de abas grandes, adornado de morangos artificiais e flores de organdi. Mas quando o calor diminuía era bom tomar a fresca na varanda, ele com a vista fixa no mar até que chegavam as trevas, e ela em sua cadeira de balanço de vime, com o chapéu de aba quebrada e as bijuterias em todos os dedos, vendo passar os navios do mundo. “Esse vai para Puerto Santo”, dizia ela. “Esse quase nem pode andar com a carga de banana-ouro de Puerto Santo”, dizia. Pois achava impossível que passasse um barco que não fosse de sua terra. Ele bancava o surdo, embora no fim ela tenha conseguido esquecer melhor que ele, porque ficou sem memória. Permaneciam assim até que terminavam os crepúsculos fragorosos, e tinham que se refugiar na casa derrotados pelos mosquitos. Num daqueles tantos agostos, enquanto lia o jornal na varanda, o presidente deu um salto de assombro.
- Porra! – disse. – Morri no Estoril!
Sua esposa, levitando no torpor, espantou-se com a notícia. Eram seis linhas na quinta página do jornal que era impresso na virada da esquina, onde publicavam suas traduções ocasionais, e cujo diretor passava para visitá-lo de vez em quando. E agora dizia que tinha morrido no Estoril de Lisboa, balneário e abrigo da decadência europeia, onde nunca havia estado, e talvez o único lugar no mundo onde não teria querido morrer...”

Transcrito do conto “Boa viagem, senhor presidente” em “Doze Contos Peregrinos”, de Gabriel Garcia Márquez (págs. 40 e 41). Tradução de Eric Nepomuceno. Rio do Janeiro: Record, 1992.

Deparei-me com o livro Doze Contos Peregrinos, que ainda não havia lido, na biblioteca do Espaço Tribuna Livre Cultural, em Lumiar - Nova Friburgo (RJ). Lá estava com a minha mulher para passar o reveillon. Frequentamos essa região serrana desde 1981 quando lá acampamos a beira rio, em meio a bananeiras e sapos. Era carnaval e Lumiar só tinha luz no período vespertino, fornecida por um gerador a óleo. Cortada por rios encachoeirados, o lugar é muito bonito e tem um tema musical único, composto por Beto Guedes. O Espaço é um presente do casal Vânia e Luís para Lumiar e região. Dedicado às artes, conta com anfiteatro, biblioteca e café. No local ocorrem as sessões do cineclube Lumiar, acontecem shows, palestras e são encenadas peças teatrais. Fomos para lá com intuito de tomar um café, mas ao passar pela biblioteca, os livros exercem um poder de atração impossível de resistir. Lá estava a primorosa edição de Doze Contos Peregrinos. Pude folhear e pegar emprestado sem qualquer problema, mesmo avisando que não teria como devolver com brevidade. Vânia, de forma tranquila, incentivou-me a levá-lo dizendo que não havia problema, que devolvesse quando voltasse à Lumiar ou  enviasse pelos Correios ou emprestasse para outra pessoa. “O que importa é que o livro seja lido”. E pra que outro fim o autor escreve e o editor edita. Livros são para serem lidos e se a prosa nos encanta, aumenta o prazer de devorar cada palavra. Garcia Márquez, no prólogo, afirma que “o esforço de escrever um conto curto é tão intenso como o de começar um romance. Pois no primeiro parágrafo de um romance é preciso definir tudo: estrutura, tom, estilo, ritmo, longitude e, às vezes, até o caráter de algum personagem. O resto é o prazer de escrever...”. Para o leitor, é prazer de ler.
No conto “Boa viagem, senhor presidente”, Gabo nos traz o caso de um deposto presidente de uma república caribenha, Martinica, que vai se tratar da saúde em Genebra, onde encontra um casal de concidadãos que traçam um plano para se beneficiar da pretensa influência e prestígio do presidente moribundo. Por fim, acabam mesmo se envolvendo afetivamente e ajudando-o a retornar ao seu país, ato que o reanimou, fazendo ressurgir nele o desejo de retornar à vida política.

No livro, Gabo homenageia vários artistas, como Vinicius de Moraes em "Só vim telefonar". No conto em comento, o presidente tem como amigo e provedor Aimé Fernand David Césaire (1913 — 2008). Nascido na Martinica, foi um dos mais importantes poetas surrealistas do mundo e considerado, juntamente com o Presidente senegalês Léopold Sédar Senghor, o ideólogo do conceito de negritude. Além de poeta, Aimé Césaire foi  dramaturgo e ensaísta, com obra marcada pela defesa das raízes africanas.
Por F@bio


sábado, 27 de fevereiro de 2016

Porto - Roldão Rosa

Porto

Roldão Mendes Rosa


"Por que
este amor ao cais
se o que quero
não viaja?

Por que esta espera
no cais?

Por que
este amor aos navios
que apitam e partem
se não quero
partir em nenhum?

Eu descendente de adeuses
vejo lenços que acenam
na paisagem sem lenços.

Ou este porto
pouso de âncoras
timidamente se disfarça
no homem que sou?"


Obtido de: http://www.novomilenio.inf.br/santos/h0335b08.htm


Roldão Mendes Rosa foi escritor, poeta, crítico literário e professor na Faculdade de Comunicação de Santos (Facos) da Unisantos. Nascido em Santos em 25 de fevereiro de 1924, faleceu em 26 de janeiro de 1988. Como informa Alessandro Alberto Atanes Pereira, no site Novo Milênio, uma compilação póstuma da poesia de Roldão foi publicada em 1992 pela editora  Hucitec com o título "Poemas do Não e da Noite", que inclui o poema Porto acima.

Neste blog tenho conseguido postar alguns dos autores que abordaram em sua prosa e poesia a temática da relação entre o morador de cidade de Santos e seu porto como é o caso de Roldão.
Por F@bio

domingo, 18 de outubro de 2015

Os Sertões - Euclides da Cunha

"Tomou para Canudos onde era ansiosamente esperada...A marcha foi difícil e morosa. Desde Queimadas lutava-se com dificuldades sérias de transporte. Os cargueiros, animais imprestáveis, velhos e cansados, muares refugados das carroças da Bahia e tropeiros improvisados - rengueavam, tropeçando pelos caminhos, imobilizando os batalhões, e remorando a avançada.
Chegou desse modo a Aracati, onde lhe foi entregue um comboio que devia guarnecer até Canudos".

Obtido de Os Sertões - A Campanha de Canudos, de Euclides da Cunha, edição original de 1902 Edição digital, Coleção Clássicos da Língua Portuguesa, Montecristo Editora, Volume 1


Euclides Rodrigues da Cunha (1866 - 1909), fluminense de Cantagalo - RJ,  positivista e republicano, foi escritor, engenheiro, poeta, sociólogo, geólogo, militar, jornalista e historiador, dentre outras atividades. Tornou-se internacionalmente conhecido após a publicação do livro Os Sertões, que trata da Guerra de Canudos, onde esteve como repórter do jornal O Estado de São Paulo. O livro foi dividido em três partes, assim denominadas: A terra, O homem e A luta. Na obra, Euclides faz uma ampla analise das características geológicas, botânicas, hidrológicas, zoológicas e sociológicas do sertão nordestino - a caatinga - abordando a vida, costumes e religiosidade do sertanejo, que levaram à constituição do arraial de Canudos e à liderança de Antônio Conselheiro. A contenda é retratada a partir do olhar de um correspondente de guerra que descreve com minucias e emoção os embates de soldados despreparados e "jagunços" maltrapilhos.
Os cargueiros mencionados por Euclides da Cunha eram formados por tropas de muares (mulas e burros) que, na época, eram importantes meios de transporte de cargas diversas, permitindo que as mercadorias fossem levadas dos portos e regiões produtoras até os mais distantes rincões do Brasil. O ouro, extraído em Minas Gerais, e depois o café produzido no Vale do Paraíba do Rio de Janeiro e São Paulo, eram transportados em tropas de mulas até os portos de Paraty e Rio de Janeiro.

Segundo informa o site "Caminho Paulista das Tropas", uma Tropa Cargueira de muares era constituída por lotes formados por 8 a 12 animais, cada animal carregando cerca de 150 quilos de mercadoria. Burro no masculino, mula no feminino, este era o animal mais resistente para as tropas cargueiras.  Mais forte e resistente do que os equídeos, tanto para carregar cargas pesadas, como para vencer grandes distância e trabalhar com a mesma eficiência nos terrenos íngremes e montanhosos. Acomodada em dois cestos ou balaios, um de cada lado, um burro chega a transportar de 120 a 150 quilos. Estas qualidades explicam porque o burro é preferido para o transporte de carga.  
As tropas percorriam, em média, 20 a 22 quilômetros por dia, com uma parada no meio do percurso.
Nos trajetos mais longos, as tropas eram compostas por 4 ou 8 lotes de cargueiros, cada lote com 10 muares. Assim, uma grande tropa cargueira poderia ter até 80 animais, transportando um total de 12 toneladas de mercadorias.  Já a comitiva era formada por um madrinheiro, que fazia também as funções de cozinheiro. um peão para cada lote, um arrieiro (um tipo de faz-tudo, que cuidava da saúde dos animais e da manutenção das tralhas), o capataz e o tropeiro patrão.   Quando a tropa tinha cozinheiro e madrinheiro, este último era sempre um menino de mais 12 anos.   O madrinheiro ia à frente tocando a égua madrinha com o seu cincerro e em seguida, também equipada de cincerros, vinha a besta dianteira.   Depois em fila indiana, as mulas cargueiras e fechando o lote, a mula culatreira, que além da carga, levava também as tralhas da cozinha.

Nos primeiros anos. os pousos eram ao relento, debaixo de uma árvore, com os tropeiros protegidos por ponches, cobertores ou pelo ligal, que podia ser usado como cama ou coberta.   Ligal era uma manta grande de couro cru, utilizada para cobrir a carga das mulas, protegendo-a do sol, da chuva e da poeira. Mais tarde, com o aumento e regularidade das tropas cargueiras nos percursos, surgiram os pousos para tropeiros, constituídos de ranchos abertos e cobertos de sapé, que ofereciam alguma proteção aos peões e a carga. Ao redor desses pousos surgiram centenas de cidades brasileiras, como a minha cidade natal no Estado do Rio de Janeiro: Varre-Sai, que segundo consta ganhou esse nome pelo fato de ter sido colocado um aviso no pouso solicitando aos tropeiros varrer o local antes de sair.
Leia mais: http://www.caminhopaulistadastropas.com.br/news/entendimento-sobre-o-tropeirismo/
Por F@abio

domingo, 6 de setembro de 2015

Contrabando - Oswald de Andrade

Contrabando - Oswald de Andrade

Os alfandegueiros de Santos
Examinaram minhas malas
Minhas roupas
Mas se esqueceram de ver
Que eu trazia no coração
Uma saudade feliz
De Paris.


Obtido em https://portogente.com.br/colunistas/alessandro-atanes/o-contrabando-de-oswald-de-andrade-27011


Oswald de Andrade foi um dos principais integrantes do movimento modernista brasileiro, cujo notoriedade atingiu seu ápice com a Semana de Arte Moderna de 1992, realizada em São Paulo. O seu livro "Pau Brasil", de 1925, foi publicado em Paris, pela editora Sans Pareil. Com uma série de poemas que buscam revelar "uma brasilidade poética moderna". O poema final é Contrabando que expõe uma "falsa contradição" que procura resolver de uma forma sucinta "toda a questão em relação às influências europeias de vanguarda e o desejo de renovação das letras nacionais do grupo modernista. A saudade feliz aponta para isso: a admissão da referência europeia, principalmente francesa, mas temperada pela felicidade de voltar a terra natal e cantá-la em uma nova forma, que se adequasse à vida moderna".

O contrabando oswaldiano é portanto o livro editado em Paris contando em versos a viagem de regresso à pátria amada.
Por F@bio

domingo, 23 de agosto de 2015

Meus silêncios na beira do cais - Antonio Carlos Neves

"Batia uma brisa fresca de verão e a baia de Vitória parecia um largo espelho refletindo a atividade noturna do porto. Havia um navio japonês ancorado bem diante do bar e ficamos observando o movimento dos guindastes, o vai-e-vem dos tripulantes subindo e descendo as escadas, ouvindo o rumor das máquinas funcionando e, pelo menos para mim, deixando uma amarga sensação de saudade por lugares distantes e ainda não visitados.
- Sempre sonhei viajar de navio - disse Zélia, surpreendendo-me com o mesmo tom nostálgico que aqueles ruídos do porto me causavam.
Pareceu-me, naquele instante, que estávamos todos um pouco tristes, como se a visão do cais, dos navios e dos marinheiros provocasse nosso lado solitário da alma".

Transcrito da coletânea "Escritos de Vitória - 5 - Porto", págs. 33 e 34. Vitória: PMV, 1994

O autor, Antônio Carlos Neves, nascido em Vitória - ES, formado em direção de cinema e televisão, é jornalista e escritor, tendo escrito também Outra Vez a Esperança, Terror nas Sombras e Um Lugar sem Importância.

Vitória, como toda cidade portuária, tem seus personagens ligados ao porto e muitas histórias sobre a vida ao redor do seu porto. Felizmente a Prefeitura da cidade resolveu publicar em livro crônicas, poesias e ilustrações de diversos escritores e artista, montando um interessante painel sobre a vida que fervilha em torno do cais.
Esta é a segunda postagem que faço com textos do livro. Outras virão, pois são escritos que têm tudo a ver com o Cargueiro de Letras.
O conto de Antônio Carlos Neves é sobre um grupo de amigos que saem juntos para uma noitada e acabam indo parar no boteco Barcaça, na zona portuária, onde vivem momentos intensos e tensos, com desavenças políticas e amorosas. A noite chega ao seu fim com um dos amigos citando a frase precisa de Drummond: "há uma hora em que até os bares se fecham..."
Por F@bio

sábado, 4 de julho de 2015

Memorial de Aires - Machado de Assis

"13 de maio 

Enfim, lei. Nunca fui, nem o cargo me consentia ser propagandista da abolição, mas confesso que senti grande prazer quando soube da votação final do Senado e da sanção da Regente. Estava na rua do Ouvidor, onde a agitação era grande e a alegria geral. 

Um conhecido meu, homem de imprensa, achando-me ali, ofereceu-me lugar no seu carro, que estava na rua Nova, e ia enfileirar no cortejo organizado para rodear o paço da cidade, e fazer ovação à Regente. Estive quase, quase a aceitar, tal era o meu atordoamento, mas os meus hábitos quietos, os costumes diplomáticos, a própria índole e a idade me retiveram melhor que as rédeas do cocheiro aos cavalos do carro, e recusei. Recusei com pena. Deixei-os ir, a ele e aos outros, que se juntaram e partiram da rua Primeiro de Março. Disseram-me depois que os manifestantes erguiam-se nos carros, que iam abertos, e faziam grandes aclamações, em frente ao paço, onde estavam também todos os ministros. Se eu lá fosse, provavelmente faria o mesmo e ainda agora não me teria entendido... Não, não faria nada; meteria a cara entre os joelhos. 

Ainda bem que acabamos com isto. Era tempo. Embora queimemos todas as leis, decretos e avisos, não poderemos acabar com os atos particulares, escrituras e inventários, nem apagar a instituição da história, ou até da poesia. A poesia falará dela, particularmente naqueles versos de Heine, em que o nosso nome está perpétuo. Neles conta o capitão do navio negreiro haver deixado trezentos negros no Rio de Janeiro, onde “a casa Gonçalves Pereira” lhe pagou cem ducados por peça. Não importa que o poeta corrompa o nome do comprador e lhe chame Gonzales Perreiro; foi a rima ou a sua má pronúncia que o levou a isso. Também não temos ducados, mas aí foi o vendedor que trocou na sua língua o dinheiro do comprador. "

Transcrito de Memorial de Aires / 1888, de Machado de Assis, Obras Completas. Vol. I, pag.1.118, Rio de Janeiro : Editora Nova Aguilar, 1992. O trecho também é citado em http://www.erratica.com.br/opus/107/ juntamente com o poema de Heinrich Heine, Navio Negreiro, citado por Machado.

Memorial de Aires é o último romance de Machado de Assis escrito sob a forma de um diário, nos anos 1888 - 1889, com anotações, descrições e reflexões do Conselheiro Aires, diplomata aposentado, curioso personagem que também aparece no livro Esaú e Jacó.

O trecho transcrito relata a euforia popular com a decretação da Abolição em 13 de maio de 1988, finalmente votada pelo Senado e sancionada pela Regente, a princesa Isabel. Machado fala com ironia que "Ainda bem que acabamos com isto [a escravidão]. Era tempo". Mais tarde, já na república, serão queimados os documentos sobre a escravidão, com o indisfarçável fito de "apagar a instituição da história". Mas a poesia continuará a perpetuá-la, como em os Navios Negreiros de Castro Alves e Heine, citado por Machado, que com seu fino humor ironiza o equívoco do poeta que escreve "Perreiro" em vez de Pereira, no original em alemão: "Bleiben mir Neger dreihundert nur/ Im Hafen von Rio-Janeiro,/Zahlt dort mir hundert Dukaten per Stück/Das Haus Gonzales Perreiro." (Vide nota do tradutor André Vallias em http://www.erratica.com.br/opus/107/)


Outros registros interessantes do texto machadiano são as referências geográficas ao Rio de Janeiro, como Rua do Ouvidor e Rua Primeiro da Março, denominações que permanecem em nossos dias. Já a Rua Nova, na data da "anotação", tivera seu nome alterado para Rio Branco, posto que em 13/02/1888, decreto municipal substituiu o antigo nome para homenagear o eminente estadista José Maria da Silva Paranhos, o Visconde do Rio Branco.
Na "anotação" do Conselheiro também é indicado que o cortejo fora "organizado para rodear o paço da cidade" referindo ao prédio do Paço Imperial (hoje museu), situado na atual Praça XV de Novembro, sede do Governo Federal até 1897, quando a presidência da república mudou-se para o Palácio do Catete.
A mais antiga rua do Rio de Janeiro tinha o nome de Rua Direita e era a mais importante da cidade no século XIX, já que nela ficava a sede o governo imperial. Originalmente, ligava o Largo da Misericórdia ao Morro de São Bento. Em 1875, seu nome foi alterado para Rua Primeiro de Março em homenagem à vitória na Batalha de Aquidabã, que pôs fim à Guerra do Paraguai. Por coincidência, essa também é a data da fundação da cidade do Rio de Janeiro.
Já a Rua do Ouvidor manteve sua denominação e estreiteza, mas perdeu importância, pois no século XIX era lá que ficava o comércio mais chique da cidade.
Por F@bio




domingo, 28 de junho de 2015

Como um rei na França - Amaury Temporal

"Após nossa visita, fomos brindados pela família com um pot e um casse-croûte de queijo de ovelha, durante o qual encontramos o M. e a Mme. Seguin ... que nos deram uma visão importante do que os fazendeiros franceses pensam sobre a agricultura da França e do Brasil, da competitividade relativa de ambas e dos recentes desenvolvimentos das discussões na OMC (Organização Mundial do Comércio).
 Há que entender, no entanto, a resistência dos países da União Europeia, notadamente a França, à mudança de um modo de produção de gerações, que encontra apoio forte da população francesa, a qual está de acordo com o statu quo de subsídios, que, afinal, são pagos por toda a sociedade. No entanto é uma luta com fim previsível, pois os jovens franceses de hoje não estão mais interessados em atividades que exigem de 12 a 14 horas de trabalho por dia, sete dias por semana, por vezes em condições climáticas adversas"

Transcrito de "Como um Rei na França", de Amaury Temporal, pag. 25 e 26. Rio de Janeiro: Record, 2011.



Amaury Temporal é diretor do Centro Internacional de Negócios da Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro (Firjan) e ex-presidente da Associação Comercial do Rio de Janeiro. Escreveu também os livros De Vinhos e Rosas (1992) e Bom Tempo na França (2004).

Conheço o encantador Amaury há alguns anos, envolvidos nas lides do comércio exterior, onde sempre admirei sua inteligência, diplomacia, firmeza e elegância nos contatos profissionais e pessoais. Mais recentemente tomei conhecimento das suas qualidades de grande conhecedor de vinhos e culinária.
No livro ficamos sabem que Amaury é, certamente, o mais francês dos cariocas. Aliás, na orelha do livro confirma-se essa impressão: "Quando se aproxima o mês de julho, Amaury Temporal e sua mulher, Maggy, começam a programar suas férias para o mês de dezembro. O destino?  França, sempre". O livro nos oferece, além da preciosa indicação de como conhecer bem as diversas regiões da França, dicas de restaurantes (com endereços) e vinhos. Da sua leitura também podemos saber como é desfrutar como um rei a terra de Napoleão. Bonne lecture et santé!
Por F@bio

domingo, 21 de junho de 2015

O Chapéu de Vermeer 2 .- Timothy Brook

"Quando ... em 1942, Cristóvão Colombo zarpou rumo a oeste com sua frota de três naviozinhos para atravessar o Atlântico (levando consigo um exemplar das Viagens de Marco Polo), ele já sabia que o mundo era redondo e que navegar para oeste o levaria à Ásia. Sabia o suficiente para achar que alcançaria primeiro o Japão, com a China logo além. Só não sabia quão grande era a distância que separava a Ásia da Europa. E o que não esperava era que houvesse um continente entre elas. Quando voltou à Europa, Colombo disse ao rei Fernando que, ao chegar à ilha de Hispaniola (hoje República Dominicana), "achei que era terra firme, a província de Catai". Não era, e Colombo teve de convencer o rei de que a primeira viagem quase chegara ao destino e que a segunda não deixaria de completar a missão. Se a ilha não era a China nem o Japão, então deveria ser uma ilha ao largo do litoral leste do Japão. As riquezas fabulosas da China, portanto, estavam ao alcance. Enquanto isso, garantiu ele a Fernando, a ilha que descobrira, com certeza, continha ouro, era só seus marinheiros começarem a procurar. Assim, transformou a cartada perdida - Hispaniola não era  Japão nem China - numa jogada vencedora. Mas ele acreditava que a ilha seguinte seria o Japão e, mais além dela, estaria a China.
A riqueza fabulosa da China virou obsessão na Europa, e foi por isso que Fernando concordou em financiar a segunda viagem de Colombo..."

Transcrito de "O Chapéu de Vermeer", de Timothy Brook, pag.56. Rio de Janeiro: Record, 2012.


Já mencionei autor e obra no Cargueiro de Letras. O livro trata das grandes navegações do Sec. XVII e a ascensão econômica e naval da Holanda, no que Brook denomina "a aurora do mundo global". Analisa o período usando a peculiar forma de tomar por base os quadros do pintor holandes Johannes Vermeer.
Quando Marco Polo voltou de sua viagem à China, revelou a Europa uma nação com uma indústria muito mais desenvolvida. O fascínio por conhecer e obter os produtos chineses só fez crescer. Isto estimulou os europeus a se lançarem ao mar para fazer comércio com os asiáticos, sabedores da possibilidade de auferirem grandes lucros na empreitada. Seda, porcelana, especiarias e outros produtos eram importados da Ásia pelos europeus. Em vista dos altos investimentos e lucros, Portugal e Espanha tentaram estabelecer o monopólio das rotas marítimas. Mas a Holanda e Inglaterra impuseram sua maior capacidade econômica e romperam os limites impostos pelos dois países ibéricos.
por F@bio

sábado, 11 de abril de 2015

Cargas - Greg Clydesdale

"A Europa precisou de tempo para desenvolver seu potencial comercial; mas, assim que o processo começou, ela criou as redes que fizeram do mundo um todo integrado. Com o fervor dos cruzados, os espanhóis e portugueses capitalizaram-se graças às rotas comerciais traçadas por Cristóvão Colombo e Fernão de Magalhães para criar a primeira rede comercial verdadeiramente global. Dominaram o Atlântico e o Pacífico, constituindo novos mercados e desenvolvendo os recursos recém-descobertos. Lubrificados pelo ouro e pela prata da América do Sul, os ibéricos comerciavam de Macau, a leste, até o Brasil, a oeste, enquanto o famoso galeão Manila ofereceu a primeira ligação sólida entre a Ásia e a América do Norte. No Ocidente é comum ver essa rede como evidência de uma supremacia comercial européia, mas os chineses e os guzerates ainda dominavam os oceanos do Oriente. Os europeus podiam até viajar para mais longe, mas as cargas da Ásia tinham um volume e um valor maiores"

Transcrito do livro "Cargas: como o comércio mudou o mundo. A história do transporte de mercadorias, de 618 até hoje". autor Greg Clydesdale, tradução de Dinah Azevedo, pag. 18, 1ª edição. Rio de Janeiro: Record, 2012.

Greg Clydesdale é economista e professor de economia no Departamento de Gestão e Negócios Internacionais da Universidade de Massey, Nova Zelândia, possuindo doutorado sobre os determinantes da liderança industrial e do crescimento econômico, sendo também autor do livro "Oportunidade empresarial: o lugar certo na hora certa".

Em Cargas, o autor descreve o fascinante caminho da evolução das trocas comerciais e sua logística de transportes, indo desde as primeiras grandes rotas comerciais até o fenômeno mais recente da globalização. Ele narra também a trajetória e os feitos dos grandes comerciantes e a constituição dos principais conglomerados e corporações do capitalismo. Para quem milita no comércio exterior, é uma leitura fascinante e rica em informações sobre a evolução da produção, do comércio e dos transportes nos negócios internacionais, procurando ir além da visão eurocêntrica que tanto limita nossa compreensão da história da humanidade.
Por F@bio