segunda-feira, 31 de março de 2014

Os Estatutos do Homem - Thiago de Mello


(Ato Institucional Permanente)

A Carlos Heitor Cony


Artigo I.
Fica decretado que agora vale a verdade.
que agora vale a vida,
e que de mãos dadas,
trabalharemos todos pela vida verdadeira.

Artigo II.
Fica decretado que todos os dias da semana,
inclusive as terças-feiras mais cinzentas,
têm direito a converter-se em manhãs de domingo.

Artigo III.
Fica decretado que, a partir deste instante,
haverá girassóis em todas as janelas,
que os girassóis terão direito
a abrir-se dentro da sombra;
e que as janelas devem permanecer, o dia inteiro,
abertas para o verde onde cresce a esperança.

Artigo IV.
Fica decretado que o homem
não precisará nunca mais
duvidar do homem.
Que o homem confiará no homem
como a palmeira confia no vento,
como o vento confia no ar,
como o ar confia no campo azul do céu.

Parágrafo Único:
O homem confiará no homem
como um menino confia em outro menino.

Artigo V.
Fica decretado que os homens
estão livres do jugo da mentira.
Nunca mais será preciso usar
a couraça do silêncio
nem a armadura de palavras.
O homem se sentará à mesa
com seu olhar limpo
porque a verdade passará a ser servida
antes da sobremesa.

Artigo VI.
Fica estabelecida, durante dez séculos,
a prática sonhada pelo profeta Isaías,
e o lobo e o cordeiro pastarão juntos
e a comida de ambos terá o mesmo gosto de aurora.

Artigo VII.
Por decreto irrevogável fica estabelecido
o reinado permanente da justiça e da claridade,
e a alegria será uma bandeira generosa
para sempre desfraldada na alma do povo.

Artigo VIII.
Fica decretado que a maior dor
sempre foi e será sempre
não poder dar-se amor a quem se ama
e saber que é a água
que dá à planta o milagre da flor.

Artigo IX.
Fica permitido que o pão de cada dia
tenha no homem o sinal de seu suor.
Mas que sobretudo tenha sempre
o quente sabor da ternura.

Artigo X.
Fica permitido a qualquer pessoa,
a qualquer hora da vida,
o uso do traje branco.

Artigo XI.
Fica decretado, por definição,
que o homem é um animal que ama
e que por isso é belo.
muito mais belo que a estrela da manhã.

Artigo XII.
Decreta-se que nada será obrigado nem proibido.
tudo será permitido,
inclusive brincar com os rinocerontes
e caminhar pelas tardes
com uma imensa begônia na lapela.

Parágrafo único:
Só uma coisa fica proibida:
amar sem amor.

Artigo XIII.
Fica decretado que o dinheiro
não poderá nunca mais comprar
o sol das manhãs vindouras.
Expulso do grande baú do medo,
o dinheiro se transformará em uma espada fraternal
para defender o direito de cantar
e a festa do dia que chegou.

Artigo Final.
Fica proibido o uso da palavra liberdade.
a qual será suprimida dos dicionários
e do pântano enganoso das bocas.
A partir deste instante
a liberdade será algo vivo e transparente
como um fogo ou um rio,
e a sua morada será sempre
o coração do homem.


Santiago do Chile, abril de 1964

Publicado no livro Faz Escuro Mas Eu Canto: Porque a Manhã Vai Chegar (1965).

In: MELLO, Thiago de. Vento geral, 1951/1981: doze livros de poemas. 2.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 198

Obtido de: http://www.escritas.org/pt/poema/12844/os-estatutos-do-homem

Amadeu Thiago de Mello, nascido em Barreirinha, Amazonas, em 1926, é um dos maiores e mais respeitado poeta brasileiro. Seus versos são um canto de liberdade e de fé na humanidade, no homem solidário e transformador.
Preso durante a ditadura militar brasileira (1964-1985), exilou-se no Chile, onde construiu forte víncluo de amizade com outro poeta maior, Pablo Neruda. No exílio, morou na Argentina, Chile, Portugal, França, Alemanha. Com o fim do regime militar, voltou ao Brasil e à sua cidade natal, Barreirinha, onde vive até hoje.
Seu poema mais conhecido, Os Estatutos do Homem, aqui reproduzido, no qual o poeta enaltece os valores simples da natureza humana e o direito inalienável à liberdade. Abaixo, o próprio poeta declama o poema num encontro pelas liberdades democráticas realizado no Circo Voador, no Rio de Janeiro.
Lembro-me do meu tempo de militância política contra a ditadura, encontrar nos versos de Thiago a inspiração para continuar na luta pela liberdade. Lembro-me, também, de um dia, após retornar do exílio, vê-lo na Universidade Federal Fluminense, em Niterói, indo se juntar aos estudantes e declamar seu poema libertador. Fazia escuro ainda, mas cantávamos juntos pela amanhã de um novo dia, onde o sol iluminaria a todos: "Fica decretado que agora vale a verdade/que agora vale a vida,/e que de mãos dadas,/trabalharemos todos pela vida verdadeira."
Precisava marcar essa data de triste lembrança, onde a liberdade foi extirpada, a voz calada e o medo imposto sobre todos, para que saibam que a democracia que temos hoje foi conquistada com o braço forte dos que foram para as ruas e lutaram pela liberdade!!!
Por F@bio



terça-feira, 25 de março de 2014

O navio das sombras - Érico Veríssimo

"É noite escura e o cais está deserto. Ivo ergue a gola do sobretudo. Sente muito frio, e o silêncio enorme e hostil enche-o de um vago medo. Vai viajar. Mas é estranho… Tudo parece diferente do que ele sempre imaginara. O grande transatlântico se desenha sem contornos certos contra o céu de fuligem. Não se vê um só vulto humano no cais. Adivinha-se, entretanto, na treva, a presença rígida e gelada dos guindastes..."


Obtido de http://www.releituras.com/everissimo_navio.asp. Texto extraído do livro "Contos" (série paradidática), Ed. Globo - Porto Alegre - 1978, pág. 13.


Érico Veríssimo, escritor, nascido em Cruz Alta (RS), em 1905, era descendente, tanto pelo lado paterno como pelo materno, de estancieiros tradicionais. Foi um dos escritores brasileiros mais populares do século XX. Morreu em Porto Alegre em 1975.

A obra literária de Veríssimo é extremamente rica, seja regional como O Tempo e o Vento, uma saga dos pampas, seja universal, como Incidente em Antares. Em O Navio das Sombras, Érico constrói uma metáfora sombria sobre a morte de um suicida. A morte está atracada no cais, na forma de um transatlântico, imerso na escuridão da noite sombria e gelada. Entre a vida e a morte, o jovem moribundo ouve o chamado da mulher amada e vislumbra a luz, mas as trevas já tinham dominado seu corpo. Eh vida breve...
Por F@bio

domingo, 2 de fevereiro de 2014

Gabriela, Cravo e Canela 2 - Jorge Amado

"Diversas vezes retardados, terminaram por fim os trabalhos da barra. Um novo canal, profundo e sem desvios, fora estabelecido. Por ele podiam passar sem perigo de encalhe os navios do Lloyd, do Ita, da Bahiana e, sobretudo, podiam entrar no porto de Ilhéus os grandes cargueiros, para ali receber diretamente os sacos de cacau.
Como explicou o engenheiro-chefe, a demora na conclusão das obras deveu-se a inúmeras dificuldades e entraves. Não se referia aos barulhos cercando a chegada dos rebocadores e técnicos, àquela noite de tiros e garrafadas no cabaré, às ameaças de morte iniciais. Aludia às inconstantes areias da barra: com as marés, os ventos, os temporais, moviam-se elas, mudavam o fundo das águas, cobriam e destruíam em poucas horas o trabalho de semanas. Era preciso começar e recomeçar, pacientemente, mudando vinte vezes o traçado do canal, buscando os pontos mais defendidos. Chegaram os técnicos, em determinado momento, a duvidar do sucesso, tomados de desânimo, enquanto a gente mais pessimista da cidade repetia argumentos da campanha eleitoral: a barra de Ilhéus era um problema insolúvel, não tinha jeito.
Partiram os rebocadores e dragas, os engenheiros e técnicos. Uma das dragas ficou permanente no porto, para atender com presteza às movimentadas areias, para manter o novo canal aberto à navegação de maior calado.
Uma grande festas de despedida. cachaçada monumental, iniciando-se no Restaurante do Comércio, terminando no El-Dorado, celebrou o feito dos engenheiros, sua pertinácia, sua capacidade profissional. O Doutor esteve à altura de sua fama no discurso de saudação onde comparou o engenheiro-chefe a Napoleão, mas 'um Napoleão das batalhas da paz e do progresso, vencedor do mar aparentemente indomável, do rio traiçoeiro, das areias inimigas da civilização, dos ventos tenebrosos', podendo contemplar com orgulho, do alto do farol da ilha de Pernambuco, o porto de Ilhéus por ele 'libertado da escravidão da barra, aberto a todas as bandeiras, a todos os navios, pela inteligência e dedicação dos nobres engenheiros e competentes técnicos'.
Deixaram saudades e raparigas. No cais de despedidas, choravam mulheres dos morros, abraçando os marinheiros. Uma delas estava grávida, o homem prometia voltar. O engenheiro-chefe levava preciosa carga da boa Cana de Ilhéus, além de um macaco jupará para recordar-lhe, no Rio, essa terra de dinheiro farto e fácil, de valentias e duro trabalho.
(...)
Quando faltavam apenas quatro dias para o domingo das eleições, por volta das três horas da tarde, o navio sueco, cargueiro de tamanho jamais visto naquelas paragens, apitou majestoso no mar de Ilhéus. O negrinho Tuísca saiu a correr com a notícia e a distribuía de graça nas ruas do centro. A população juntou-se na avenida da praia.
Nem a chegada do bispo foi assim animada. Os foguetes subiam, estouravam no céu. Apitavam dois baianos no porto, os búzios das barcaças e lanchas saudavam o cargueiro. Saveiros e canoas saíram fora da barra, afrontando o mar alto, para comboiar o barco sueco.
Atravessou lentamente a barra, dos seus mastros pendiam bandeiras de todos os países, numa festa de cores. O povo corria pelas ruas, reunia-se no cais. Formigavam as pontes, repletas de gente. Veio a Euterpe 13 de Maio tocando dobrados, Joaquim no bombo a bater. Fechou o comércio suas portas. Feriaram os colégios particulares, o grupo escolar, o ginásio de Enoch. A meninada aplaudia no porto, as moças do colégio de freiras namoravam nas pontes. Buzinavam automóveis, caminhões e marinetes. (...) A cidade de Ilhéus inteira no cais.
Numa cerimônia simbólica, ideia risonha de João Fulgêncio, Mundinho Falcão e Stevenson, exportadores, Amâncio Leal e Ribeirinho, fazendeiros, carregavam um saco de cacau até o extremo da ponte onde o navio ancorara, o primeiro saco de cacau a ser embarcado diretamente de Ilhéus para o estrangeiro..."

Transcrito do livro Gabriela, Cravo e Canela: Crônica de Uma Cidade do Interior, de Jorge Amado (páginas 388, 389 e 396). São Paulo : Companhia das Letras, 2008.

Jorge Amado, em Gabriela deixa de lado seu explícito engajamento político de livro anteriores, libertando-se do realismo socialista. Ao mesmo tempo mantém no romance o cenário histórico-social da região cacaueira do sul da Bahia. Apresenta, lado a lado, o embate político dos coronéis (a lavoura arcaica) e dos exportadores (a nova burguesia comercial) e a história de amor entre o imigrante sírio Nacib e Gabriela, a mulata retirante, flor da terra e sua afirmação de liberdade. Há ainda no romance uma "polifonia das vozes sociais" na análise de José Paulo Paes, que acrescenta que a obra apresenta duas claves que "confluem no empenho modular, por nexos progressivos de consonância, a passagem do individual ao grupal, do econômico ao ético, do histórico ao mítico, do sentimental e do dramático ao cômico e ao picaresco, num amplo, variegado tecido sinfônico cujo poder de convencimento dá a medida do grau de mestria a que pôde chegar a arte de ficção de Jorge Amado". Jorge Amado, como faz em grande parte de sua vasta produção literária, alia a ficção à fatos históricos e em Gabriela coloca como pano de fundo de seu romance a história da cidade de Ilhéus e de seu porto.
Por F@bio

Gabriela, Cravo e Canela - Jorge Amado

"Assim, discutindo sobre os métodos do dr. Enoch e da famosa dona Guilhermina, legendária por sua severidade, foram andando para a ponte. Desembocando das ruas, algumas outras pessoas apareciam na mesma direção, vinham esperar o navio. Apesar da hora matinal reinava já certo movimento no porto. Carregadores conduziam sacos de cacau dos armazéns para o navio da Bahiana. Uma barcaça, as velas despregadas, preparava-se para partir, semelhava enorme pássaro branco. Um toque de búzio elevou-se, vibrou no ar, anunciando a partida próxima.
(...)
A conversa foi interrompida por apitos repetidos, breves e aflitos do navio. Houve um movimento de expectativa na ponte. Até os carregadores pararam para escutar.
- Encalhou!
- Porcaria de barra!
- Continuando assim nem navio da Bahiana vai poder entrar no porto.
- Quanto mais da Costeira e do Lloyd.
- A Costeira já ameaçou suspender a linha.
Barra difícil e perigosa, aquela de Ilhéus, apertada entre o morro do Unhão, na cidade, e o morro de Pernambuco, numa ilha ao lado do Pontal. Canal estreito e pouco profundo, de areia movendo-se continuamente, a cada maré. Era frequente o encalhe de navios, por vezes demoravam um dia a libertar-se. Os grandes paquetes não se atreviam a cruzar a barra assustadora, apesar do magnífico ancoradouro de Ilhéus.
Os apitos continuavam angustiosos, pessoas vindas para esperar o navio começavam a tomar o caminho da rua do Unhão para ver o que passava na barra.
- Vamos até lá?
- Isso é revoltante - dizia Doutor enquanto o grupo caminhava pela rua sem calçamento, contornando o morro. - Ilhéus produz uma grande parte do cacau que se consome no mundo, tem um porto de primeira, e, no entanto, a renda da exportação do cacau fica é na cidade da Bahia. Tudo por causa dessa maldita barra...
Agora que as chuvas tinham cessado, nenhum assunto mais empolgante que aquele para os ilheenses. Sobre a barra e a necessidade de torná-la praticável para os grandes navios, discutia-se todos os dias e em todas as partes. Sugeriam-se medidas, criticava-se o governo, acusava-se a intendência de pouco-caso. Sem que solução fosse dada, ficando as autoridades em promessas e as docas da Bahia recolhendo as taxas de exportação.
(...)
Os apitos do navio cresciam em desespero, eles apressaram o passo, aparecia gente de todos os lados."

Transcrito de "Gabriela, Cravo e Canela : Crônica de uma Cidade do Interior" (páginas 32 e 33), de Jorge Amado. São Paulo : Companhia das Letras, 2008.

Jorge Amado (1912 - 2001), baiano de Itabuna, foi dos mais importantes romancistas brasileiros do século XX. Dos escritores brasileiros é dos mais difundidos e publicados no mundo. Suas obras foram traduzidas para dezenas de idiomas e adaptadas para teatro, cinema e televisão, como é o caso de Gabriela, com duas versões de novela, estrelada por Sônia Braga e Juliana Paes, e cinema, mais uma vez com Sônia Braga e com o ator italiano Marcello Mastroianni no papel de Nacib.


Uma das tramas do livro é a questão do porto de Ilhéus, encravado dentro da barra, frequentemente assoreada, que tornava um suplicio para os navios nele atracarem e praticamente impedia a exportação do cacau diretamente da região produtora, fazendo com que tivesse que ser levado para o porto de Salvador, onde era embarcado nos grandes cargueiros da época, e só daí seguiam para os principais mercados, na Europa e Estados Unidos.
Essa questão só foi resolvida com a construção, nos anos 70, do Porto do Malhado, mas já mencionada no livro, cuja história remonta ao ano de 1925. Contudo, a lavoura e indústria do cacau, que fez a riqueza da região até os 80, entrou em declínio com a contaminação das plantações pela doença conhecida como vassoura de bruxa. Vamos voltar ao assunto numa próxima postagem.
Por F@bio

quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

Aeroporto #1 - Jacob Ohana

Bag to bag a esteira 
leva e traz o viajante 
o viajante 
vai e vem 
check-in check-in 
bag to bag inquieto 
passo esperto vai e vem. 

Back to back defeito 

o viajante não vem 
dá notícias de seus frutos 
não leva e traz 
dá um jeito 
back to back não vem. 

Drawback engano 

é draw-back 
presilha de suspensório 
parte vem mais parte vai 
o viajante vai e vem 
de beca nova 
reforma 
parte da beca que vem 
bag to back 
o viajante não veio 
ficou parado no meio 
bag to bag na mão 
check-in-check-in-check-out 
por um erro de palavra 
o viajante que andava 
foi fazer a vernissage 
numa outra exposição 
back to back 
essa não! 

Obtido de: http://www.haicu.sf.nom.br/sf/1999/SF9903.pdf
Adicionar legenda



Jacob Ohana nasceu em Belém, no dia 16 de outubro de 1942. A partir de 1943 passou a residir em Manaus, onde realizou seus estudos. Publicou os primeiros textos na página literária do Clube da Madrugada, tornando-se um de seus colaboradores. Advogado, funcionário do Banco do Brasil, atuou na Cacex desde 1970, já no Rio de Janeiro. Depois trabalho na Secretaria de Comércio Exterior – Secex/MDIC. Professor de comércio exterior e palestrante dedicado. Amazonense, tem fortes laços com as iguarias e costumes das regiões Norte e Nordeste, que se fazem presentes em seus trabalhos. Obra poética: Cotidiano das ruas e dos entes, (poesia) 1998; Armadilhas para Esaú (contos – Literis Ed. – Rio – 2003); Meu segundo cadillac (romance – Livraria Internacional – Rio – 2004). Jacob faleceu em 2008.

Tive a fortuna de conhecer Jacob Ohana, mas convivi pouco com ele. No trabalho, a ele sempre recorria, como todos os colegas, para tirar dúvidas sobre assuntos de comércio exterior, tanto no tempo da Cacex, como no da Secex. Só mais tarde pude conhecê-lo melhor e descobrir sua veia literária e musical. Tive a oportunidade única de compartilhar com ele uma viagem fantástica de Teresina à Parnaíba, Piauí, que o inspirou a escrever uma crônica muito bem humorada. Em Parnaíba pudemos bater longo papo, regado à cerveja, e com direito a ouvir o seu magnífico violão. Jacob Ohana, além de bancário e profissional de comércio exterior, escritor, poeta e músico, marcou de muitas maneiras sua passagem por aqui. A poesia acima é um pequeno registro e homenagem que compartilho com vocês. 
Por F@bio

quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

A Essencia do Mercado ou O Caso das Taças de Ovos - Fernando Pessoa

 "Aqui ha anos, antes da Grande Guerra, correu os meios inglêses, como exemplo demonstrativo da insinuação comercial alemã, a noticia do caso curioso das "taças de ovos" (egg-cups) que se vendiam na India.
  O inglês costuma comer os ovos, a que nós chamamos "quentes", não em copos e partidos, mas em pequenas taças de louça, do feitio de meio ovo, e em que o ovo portanto entra até metade; partem a extremidade livre do ovo, e comem-no assim, com uma colher de chá, depois de lhe ter deitado sal e pimenta. Na India, colonia britânica, assim se comiam, e naturalmente ainda se comem, os ovos "quentes". Como é de supôr, eram casas inglêsas as que, por tradição aparentemente inquebravel, exportam para a India as taças para este fim.
  Sucedeu, porêm, que, alguns anos antes da Guerra, as firmas inglêsas exportadoras dêste artigo notaram que a procura dêle na India decrescera quasi até zero. Estranharam o facto, buscaram saber a causa, e não tardou que descobrissem que estavam sendo batidas por casas exportadoras alemãs, que vendiam identico artigo ao mesmo preço.
  Se as casas alemãs houvessem entrado no mercado indio com o artigo a preços mais baixos, sem duvida que os agentes dos exportadores inglêses teriam advertido estes sem demora. Mas, como o preço era igual, e a qualidade igual tambem, não era necessário o aviso; nem houve receio senão quando se verificou que havia razão para mais que receio - isto é, quando se verificou que, nestas condições de duvidosa vantagem para um novo concorrente, o artigo alemão vencera por completo.
  Feita a averiguação curiosa da causa dêste misterio, não tardou que se descobrisse. Os ovos das galinhas indianas eram - e naturalmente ainda são - ligeiramente maiores que os das galinhas da Europa, ou, pelo menos, das da Grã-Bretanha. Os fabricantes inglêses exportavam as taças de tipo unico que produziam para o consumo domestico. Essas taças, evidentemente, serviam de um modo imperfeito aos ovos das galinhas da India. Os alemães notaram isto, e fizeram taças ligeiramente maiores, proprias para receber esses ovos. Não tinham que alterar qualidade (podiam, até, baixá-la), nem que diminuir preço: tinham certa a victoria por o que em linguagem scientifica se chama a adaptação ao meio. Tinham resolvido, na India e para si, o problema de comer o ovo de Colombo."(sic)

Transcrito do livro "Sociologia do Comércio", de Fernando Pessoa, fac símile de 1997 produzido por JCTM Marketing Industrial Ltda. e VCP - Votorantim Celulose e Papel, a partir da edição original da Editorial Cultura de Lisboa, data provável 1951. O trecho consta do capítulo denominado "A Essência do Comércio", cuja nota bibliográfica indica que a primeira publicação se deu na "Revista de Comércio e Contabilidade" nº 1, de 25 de junho de 1926, Lisboa.

O grande escritor português Fernando Pessoa, uma unanimidade como poeta, não goza da mesma reputação nos textos em que se aventurou por refletir sobre política, sociologia e economia, como é o caso de "Interregno (Defeza e Justificação da Ditadura Militar em Portugal)", cuja primeira edição data de 1928. Ainda que em 1935 tenha publicado o “Interregno-II”, no qual Pessoa admitiu o seu engano: “Escrevi no princípio de 1928 um folheto com o mesmo título que o presente (…). Dou hoje esse título por não escrito; escrevo este para o substituir”.

Em Sociologia do Comércio, Pessoa procura analisar os problemas fundamentais do comércio impregnado pela visão liberal que vigorava no final do Século XIX, ainda que afirme que "seremos, quando possa ser, concretos dentro da abstração natural das teorias e das doutrinas". Mas, deve-se reconhecer, em alguns aspectos de seu estudo, o poeta antecipou linhas mestras atuais da teoria do comércio, como estratégias de marketing e técnicas de vendas. No trecho acima transcrito, cita o curioso caso da exportação de taças de ovos para a Índia, do qual retira ensinamentos muito atuais, como de o comerciante ser um prestador de serviços que deve estar atento aos desejos do consumidor. Para tanto, na opinião de Pessoa, o comerciante ou exportador deve atentar para as condições de aceitação do seu produto e o nível da concorrência, conhecer a psicologia do consumidor e sua sensibilidade ao preço, saber a melhor forma de apresentar o seu produto e averiguar as condições especiais, como moda, cultura, política...
Por F@bio 

segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

Código da Vida - Saulo Ramos

"...Quando fui convidado por Jânio Quadros, para assessorá-lo na Presidência da República e, sobretudo, na política do café, o Brasil tinha tradição de nomear para o IBC - Instituto Brasileiro do Café - os líderes rurais, fazendeiros e produtores ou presidentes de associações cafeeiras. O café era muito importante para o país naquela época. Ainda é. Mas, em 1961, a exportação desse produto representava três bilhões de dólares num total de quatro a cinco bilhões. Recomendei que fosse nomeado para o cargo um diplomata, bom negociador internacional. A política do café tinha de se voltar para a conquista do mercado externo. Com esse perfil, encontramos o ministro de segunda classe do Itamaraty, Sérgio Armando Frazão.
   Trabalhamos juntos nos sete meses do Governo Jânio. Fizemos tudo o que era possível. Acabamos com o confisco cambial que pesava sobre a exportação do produto, para felicidade geral da cafeicultura. Criamos incentivos para a produção de qualidade, a fim de enfrentar a concorrência do café colombiano e atender à exigência da maioria dos consumidores de café por esse mundo afora. Provocamos a inclusão dos importadores no acordo internacional do café, para que eles ajudassem a vigiar os exportadores que fraudavam suas cotas fixadas pelo acordo internacional".

Transcrito do livro "Código da Vida", de Saulo Ramos, páginas 48 e 49. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2007

Saulo Ramos, advogado e jurista, foi assessor da Presidência da República no Governo de Jânio Quadros e Consultor Geral da República no Governo de José Sarney. O livro Código da Vida é uma autobiografia que tem como pano de fundo um curioso caso de litígio judicial familiar, quase um policial, com lances de drama, suspense, mistério, articulações políticas e fatos históricos.

O autor foi de grande felicidade na forma que encontrou para relatar o caso de contenda judicial em que um pai desesperado procura o seu escritório de advocacia para defendê-lo da acusação efetuada pela ex-mulher de praticar atos obscenos com os próprios filhos menores e, na ação judicial movida contra ele, pede a extinção do seu direito de ver as crianças. Tendo como pano de fundo o desvelamento do caso, Saulo Ramos relata os fatos mais marcantes de sua vida e do país, entre os anos 50 e o início do Século XXI. É uma estimulante leitura sobre o nosso Brasil contemporâneo. Contudo, o leitor deve estar atento para a inevitável parcialidade do autor, que contamina o livro com sua visão política e sua notória falta de modéstia e megalomania, como fica patente no trecho acima transcrito, onde a terceira pessoa utilizada não é suficiente para escamotear a intencionalidade de atribuir a si próprio a autoria dos feitos relatados, ainda que num reconhecido efêmero período de tempo.
Por F@bio

domingo, 1 de dezembro de 2013

1889 - O Império Tropical - Laurentino Gomes

"Capital do Império, com 522.651 habitantes, o Rio de Janeiro aumentara sua população nove vezes desde a chegada de dom João e a família real portuguesa. O porto carioca era o mais movimentado do Brasil. A renda de sua alfândega representava 32% da arrecadação geral do Império. A cidade que mais crescia em 1889, no entanto, era São Paulo, que chegaria a 239.820 habitantes no Censo de 1900. Sua população se multiplicaria por dez em apenas cinquenta anos, impulsionada em grande parte pelos novos imigrantes estrangeiros que chegavam ao Brasil para substituir nas lavouras a recém-abolida mão de obra escrava. Salvador, capital colonial até 1763, tinha 174.412 habitantes e apresentava crescimento estável, enquanto Recife, com 111.556, a população declinava em razão da crise da lavoura açucareira.
(...)
O café produziria uma drástica alteração no eixo econômico do país. Nos duzentos primeiros anos da colonização, a riqueza brasileira se concentrava na região Nordeste, no chamado ciclo do açúcar. Depois migrara para Minas Gerais, na corrida do ouro e do diamante que marcou a primeira metade do século XVIII. Por essa época, Francisco de Melo Palheta, sargento-mor do Pará, contrabandeou de um viveiro de Caiena as primeiras sementes e mudas de café, planta originária das terras altas da Etiópia e até então cultivada em segredo na Guiana Francesa. Depois de aclimatadas em Belém, as mudas logo chegariam ao Vale do Paraíba, entre o Rio de Janeiro e São Paulo. Começava ali a febre do "Ouro Verde". O produto, que na época da Independência representava apenas 18% do total da pauta de exportações brasileiras, em 1889 já alcançava 68%, ou seja, quase dois terços do total. O número de sacas exportadas saltou de 129 mil em 1820 para 5,5 milhões em 1889."



Transcrito do livro "1889" de Laurentino Gomes.
São Paulo, Globo, 2013.









O jornalista Laurentino Gomes, paranaense de Maringá, notabilizou-se com sua excelente trilogia histórica sobre a formação do Brasil contemporâneo, constituída pelos livros intitulados com datas marcantes: 1808, sobre a chegada da corte portuguesa de dom João VI no Brasil fugindo das tropas napoleônicas; 1822, sobre a independência do Brasil; e 1899, sobre a queda da monarquia e proclamação da república. Neste último, aborda os motivos que levaram à queda do regime imperial e as articulações para a proclamação da república. O livro traz por subtítulo: "Como um imperador cansado [e doente], um marechal vaidoso [e também doente] e um professor injustiçado [e ressentido] contribuíram para o fim da Monarquia e a Proclamação da República no Brasil". Gomes nos apresenta dom Pedro II como um monarca culto, conciliador e simpático à causa republicana e o marechal Deodoro da Fonseca como um militar vaidoso, arbitrário e monarquista. Ou seja, pelas características dos dois personagens, pareciam estar em lugares trocados nesse importante momento histórico da formação do Brasil de nossos dias.  

domingo, 22 de setembro de 2013

A Draga - Manoel de Barros

A gente não sabia se aquela draga tinha nascido ali, no Porto, como um pé de árvore ou uma duna.
- E que fosse uma casa de peixes?
Meia dúzia de loucos e bêbados moravam dentro dela, enraizados em suas ferragens.
Dos viventes da draga era um o meu amigo Mário-pega-sapo.
Ele de noite se arrastava pela beira das casas como um caranguejo trôpego.
À procura de velórios.
Os bolsos de seu casaco andavam estufados de jias.
Ele esfregava no rosto as suas barriguinhas frias.
Geleia de sapos!
Só as crianças e as putas do jardim entendiam a sua fala de furnas brenhentas.
Quando Mário morreu, um literato oficial, em necrológio caprichado, chamou-o de Mário-Captura-Sapo!
Ai que dor!
Ao literato cujo fazia-lhe nojo a forma coloquial.
Queria captura em vez de pega para não macular (sic) a língua nacional lá dele...
O literato cujo, se não engano, é hoje senador pelo Estado.
Se não é, merecia.
A vida tem suas descompensações.
Da velha draga
Abrigo de vagabundos e de bêbados, restaram as expressões: estar na draga, viver na draga por estar sem dinheiro, viver na miséria
Que ofereço ao filólogo Aurélio Buarque de Holanda
Para que as registre em seus léxicos
Pois o povo já as registrou.

De Manoel de Barros, em Poesia Completa (pág. 20 e 21). São Paulo: Leya, 2010.

Sentia falta de Manoel de Barros no Cargueiro de Letras, mas precisava encontrar algum texto dele que fizesse uma ponte com a temática geral do blog. O mais próximo que encontrei foi A Draga, que o autor enraizou no Porto. Manuel de Barros é um poeta bastante singular que, como ele mesmo diz, quer "pegar na semente da palavra" e, por não ter "ferramenta de pensar, inventa". Aí está o poeta a inventar expressões e a nos enriquecer com a sensorialidade das frases inventadas.
Por F@abio

sábado, 22 de junho de 2013

Beira-Mar - Manoel de Andrade

Tudo abeirou minha infância
beira do rio, beira-mar
orla branca de esperança
no leste do meu olhar.

Meu batelão emborcado
à beira de me afogar,
eu sobre a ponte abeirado
puxando minhas puçás.

Beirando todas as rotas,
nas asas das gaivotas
meus olhos cruzavam o mar;

sonhava à beira do cais
com um barco, nada mais
e eu no mundo a navegar.

De Manoel de Andrade em Cantares : poemas. São Paulo : Escrituras Editora, 2007

Manoel de Andrade esta em outra postagem do Cargueiro de Letras com Um Homem no Cais, poesia publicada no mesmo livro. Os versos de Beira-Mar me remeteram a minha infância/adolescência em Niterói, quando também vivia abeirado no cais ou na beira-mar. Meu cais era a ponte que leva à ilha da Boa Viagem de onde observava muitos barcos a seguir mar adentro e sonhava com um barco meu, a navegar. Navegava nos sonhos.
Por F@bio

quarta-feira, 5 de junho de 2013

Do alto de um guindaste - Alberto Martins


7. Do alto de um guindaste

refém
de cargas
e armazéns
de rotas
e promissórias
commodities
extraviadas
e contrabando
sem nota

- aqui eu moro -

entre bandeiras
de diferentes donos
e as grossas placas
de aço do abandono.

Trecho do Poema "Em Torno da Cidade" de Alberto Martins em Cais (pág. 69). São Paulo: Ed. 34, 2002




Alberto Martins lança um olhar sentimental em torno de sua cidade natal, Santos, e nos apresenta uma paisagem singular, muito além do relevo e da geologia. Como ele mesmo nos conta, mora no porto, entre navios e bandeiras de diferentes nacionalidades, acompanhando o vai-e-vem das cargas, legais e ilegais, o vai-e-vem da história e da vida. Augusto Massi destaca que o poeta nos revela Santos como uma cidade que "flutua num enigmático comércio: embarque e desembarque de carga, fluxo e refluxo da memória, subida e descida da serra. As imagens se deslocam com a leveza e velocidade dos guindastes".
Por F@bio



domingo, 21 de abril de 2013

Do Porto - Alberto Martins



cais
onde as coisas ancoram
onde as coisas demoram
algum tempo
antes de partir

lá está o morto
vivendo de uma outra vida
que só diz respeito ao corpo

lá estão seus ossos
pacotes bem embalados
prontos pra subir a bordo

CAFÉ ALUMÍNIO CEVADA
SOJA CIMENTO
CARNE

- mas pra quê tantos guindastes
se o corpo não se move
jamais?


Obtido de: http://wladimircaze.blogspot.com.br/2011/07/trecho-do-poema-em-torno-da-cidade-do.html


Alberto Alexandre Martins é é Mestre em Literatura Brasileira pela USP e doutor em Artes Plásticas na ECA-USP. Poeta e artista plástico nascido em Santos, litoral paulista, reflete em sua obra influências de quem viveu no estuário, entre o Atlântico e a Serra do Mar. Sua obra tem sido reconhecida e premiada.

Porto é ponto de chegada e partida, local de trânsito, é meio e não fim, vai e vem, constante movimento. As coisas, seus corpos, estão no porto de passagem, de lá embarcam para o mar, quem vai, ou para a terra, quem vem, vão se eternizar em outro lugar. Carregar e descarregar, de lá pra cá. Mas o porto que movimenta coisas e gentes está firme, ponto fixo, farol no horizonte, move mas não se move, é porto seguro.
Por F@bio

sexta-feira, 5 de abril de 2013

Porto - Alexandre Dáskalos




"Havia nos olhos postos o sentido
de não vencerem distancias.
Calados, mudos, de lábios colados no silêncio
os braços cruzados como quem deseja
mas de braços cruzados.

Os navios chegavam ao porto e partiam.
Os carregadores falavam da gente do mar.
A gente do mar dos que ficam em terra.
As mercadorias seguiam.
Os ventos, dispersos na alma do tempo,
traziam as novas das terras longínquas.

Segredavam-se em noites e dias
a todos os homens
em todos os mares
e em todos os portos
num destino comum.

Os navios chegavam ao porto
e partiam..."


Obtido de http://www.lusofoniapoetica.com/artigos/angola/alexandre-daskalos/porto.html

Alexandre Dáskalos (1924-1961), poeta, nascido em Huambo, Angola, estudou em Lisboa onde ser formou em Medicina Veterinária. Participou ativamente do movimento “Vamos Descobrir Angola” e da Geração da Mensagem, colaborou em O Planalto e em Mensagem (Casa dos Estudantes do Império). Muitos dos seus poemas foram musicados e traduzidos para diversas línguas.

O porto é local seguro, mas os navios partem sempre, levando novidades, gentes, coisas, casos, lembranças, sonhos, desafios, aventuras, bagagens, tristezas, desventuras, saudades...
Por F@bio

sexta-feira, 29 de março de 2013

Vista de Delft - Timothy Brook

"Comecemos com Vista de Delft. Esse é um quadro pouco comum na obra de Vermeer. A maioria dos quadros dele mostra o interior de salas decorado de maneira cativante com objetos discretos da vida familiar do artista. Vista de Delft é bem diferente ... É uma vista específica de Delft que se revela de um ponto mais alto logo ao sul da cidade, do outro lado do Kolk, o porto fluvial de Delft, quando se olha para o norte. Diante da superfície triangular da água em primeiro plano, ficam os portões de Schiedam e Roterdã, que flanqueiam a embocadura do Oude Delft, onde se abre no Kolk. Além dos portões, está a cidade propriamente dita. Nossa atenção é atraída para a torre da Igreja Nova, iluminada pelo sol. A torre está visivelmente sem sinos; como se sabe que os sinos começaram a ser montados em maio de 1660, podemos datar a pintura de pouco antes disso. Há outras torres na linha do horizonte. Para a esquerda, vemos a cúpula acima do portão de Schiedam, depois a torre cônica menor da Cervejaria Papagaio (no século XVI, Delft fora um centro de fabricação de cerveja). E, subindo para se mostrar ao lado dela, vemos a ponta da torre da Igreja Velha. Essa é Delft na primavera de 1660."
(...)

"O primeiro lugar onde procuraremos a segunda porta é o porto. O Kolk recebia barcos que viajavam indo e voltando de Delft pelo canal Schie, que corria para o sul até Schiedam e Roterdã, no Reno. Atracada ao cais no primeiro plano, à esquerda, há uma balsa de passageiros. Com formato comprido e estreito para passar com facilidade pelas comportas dos canais, as balsas como essa, puxadas por cavalos, funcionavam com horário fixo e ligavam Delft a cidades pequenas e grandes do sul da Holanda ... Dos outros dois lados do porto, todos os barcos estão ancorados ou fora de serviço. A única indicação de inquietude é o horizonte recortado de prédios e a sombra lançada pelo imenso cúmulo que pende no alto da pintura. Mas o efeito geral é a perfeita tranquilidade de um dia agradável. Há outros barcos atracados no Kolk: pequenos cargueiros abaixo do Portão de Schiedam e outras quatro balsas de passageiros ao lado do Portão de Roterdã. Entretanto, os dois para os quais quero chamar a atenção são as embarcações de fundo largo atracadas uma à outra no lado direito do quadro. Esse trecho do cais diante do Portão de Roterdã era onde ficava o estaleiro de Delft. Essas duas embarcações estão sem os mastros de popa, e os mastros de proa estão em mau estado, o que indica que estão lá para reforma ou conserto. São navios de três mastros construídos para a pesca de arenque no mar do Norte. Eis outra porta para o mundo do século XVII, mas ela exige alguma explicação para se abrir."

Transcrito de "O Chapéu de Vermeer: o século XVII e a aurora do mundo global" de Timothy Brook. Tradução de Maria Beatriz de Medina. Rio de Janeiro: Record, 2012.

O autor, Timothy Brook, é canadense, professor da Universidade de Oxford e reitor do Saint John's College da Universidade de Colúmbia Britânica. É estudioso da China e autor de vários livros sobre o tema. No livro "O Chapéu de Vermeer" ele elabora um interessante ensaio sobre as telas do pintor holandês. Com base nos elementos encontrados nos quadros, Brook delineia as rotas de comércio do século XVII, indicando os primórdios da globalização.

O curioso do texto de Brook é a profunda investigação pictórica sobre os quadros do pintor holandês Johannes Vermeer (1632 - 1675), muito conhecido pela tela "Moça com brinco de pérola" que deu nome ao livro e ao filme que contam a vida do pintor. O livro de 1999 é de Tracy Chevalier e o filme de 2003 é de Peter Webbe, tendo como protagonista a estonteante atriz Scarlett Johansson que interpreta Griet, a garota com brinco de pérola.
A partir dos elementos pintados por Vermeer em suas obras, Brook aponta as origens dos produtos, estrutura e métodos negociais, rotas de navegação, lutas políticas e econômicas,  que evidenciam que, já naquela época, o comércio em escala mundial descortinava a globalização hoje tão em voga.
Por F@bio

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

Confidência - Mia Couto


"Porque a minha mão infatigável
procura o interior e o avesso
da aparência
porque o tempo em que vivo
morre de ser ontem
e é urgente inventar
outra maneira de navegar
outro rumo outro pulsar
para dar esperança aos portos
que aguardam pensativos"

De: Mia Couto, do poema "Confidência".

Obtido de: http://www.elfikurten.com.br/2012/11/mia-couto-o-afinador-de-silencios.html

Antônio Emílio Leite Couto, mais conhecido por Mia Couto, nasceu em 5 de Julho de 1955 na cidade da Beira em Moçambique. É filho de emigrantes portugueses. Jornalista, escritor, poeta, biólogo  e professor da cátedra de ecologia. Em 1992, foi o responsável pela preservação da reserva natural da Ilha de Inhaca. Tem vários livros publicados e é o autor moçambicano mais traduzido. As suas obras foram traduzidas e publicadas em 24 países. Várias das suas obras têm sido adaptadas ao teatro e cinema. Tem recebido vários prêmios nacionais e internacionais, e comparado a Gabriel Garcia Márquez e Guimarães Rosa. Seu romance Terra sonâmbula foi considerado um dos dez melhores livros africanos do século XX. Em 1999, o autor recebeu o prêmio Vergílio Ferreira pelo conjunto de sua obra e, em 2007 o prêmio União Latina de Literaturas Românicas.

Sou um admirador da poesia e prosa de Mia Couto. Aliás, sua prosa é pura poesia. Li alguns de seus romances, cuja riqueza literária é apaixonante. Sua obra nos leva para a África, sua cultura e suas crenças. O imaginário e lendas populares afloram no texto e nos envolvem. Conhecido como o "escritor da terra", seu texto nos transporta para o solo africano, cheio de realismo fantástico, neologismos e histórias fantasmagóricas. Mia Couto nos leva pelas raízes africanas, num ambiente social rico e ao mesmo tempo envolvente, misturando realidade e sonho.
Por F@bio