domingo, 22 de setembro de 2013

A Draga - Manoel de Barros

A gente não sabia se aquela draga tinha nascido ali, no Porto, como um pé de árvore ou uma duna.
- E que fosse uma casa de peixes?
Meia dúzia de loucos e bêbados moravam dentro dela, enraizados em suas ferragens.
Dos viventes da draga era um o meu amigo Mário-pega-sapo.
Ele de noite se arrastava pela beira das casas como um caranguejo trôpego.
À procura de velórios.
Os bolsos de seu casaco andavam estufados de jias.
Ele esfregava no rosto as suas barriguinhas frias.
Geleia de sapos!
Só as crianças e as putas do jardim entendiam a sua fala de furnas brenhentas.
Quando Mário morreu, um literato oficial, em necrológio caprichado, chamou-o de Mário-Captura-Sapo!
Ai que dor!
Ao literato cujo fazia-lhe nojo a forma coloquial.
Queria captura em vez de pega para não macular (sic) a língua nacional lá dele...
O literato cujo, se não engano, é hoje senador pelo Estado.
Se não é, merecia.
A vida tem suas descompensações.
Da velha draga
Abrigo de vagabundos e de bêbados, restaram as expressões: estar na draga, viver na draga por estar sem dinheiro, viver na miséria
Que ofereço ao filólogo Aurélio Buarque de Holanda
Para que as registre em seus léxicos
Pois o povo já as registrou.

De Manoel de Barros, em Poesia Completa (pág. 20 e 21). São Paulo: Leya, 2010.

Sentia falta de Manoel de Barros no Cargueiro de Letras, mas precisava encontrar algum texto dele que fizesse uma ponte com a temática geral do blog. O mais próximo que encontrei foi A Draga, que o autor enraizou no Porto. Manuel de Barros é um poeta bastante singular que, como ele mesmo diz, quer "pegar na semente da palavra" e, por não ter "ferramenta de pensar, inventa". Aí está o poeta a inventar expressões e a nos enriquecer com a sensorialidade das frases inventadas.
Por F@abio

sábado, 22 de junho de 2013

Beira-Mar - Manoel de Andrade

Tudo abeirou minha infância
beira do rio, beira-mar
orla branca de esperança
no leste do meu olhar.

Meu batelão emborcado
à beira de me afogar,
eu sobre a ponte abeirado
puxando minhas puçás.

Beirando todas as rotas,
nas asas das gaivotas
meus olhos cruzavam o mar;

sonhava à beira do cais
com um barco, nada mais
e eu no mundo a navegar.

De Manoel de Andrade em Cantares : poemas. São Paulo : Escrituras Editora, 2007

Manoel de Andrade esta em outra postagem do Cargueiro de Letras com Um Homem no Cais, poesia publicada no mesmo livro. Os versos de Beira-Mar me remeteram a minha infância/adolescência em Niterói, quando também vivia abeirado no cais ou na beira-mar. Meu cais era a ponte que leva à ilha da Boa Viagem de onde observava muitos barcos a seguir mar adentro e sonhava com um barco meu, a navegar. Navegava nos sonhos.
Por F@bio

quarta-feira, 5 de junho de 2013

Do alto de um guindaste - Alberto Martins


7. Do alto de um guindaste

refém
de cargas
e armazéns
de rotas
e promissórias
commodities
extraviadas
e contrabando
sem nota

- aqui eu moro -

entre bandeiras
de diferentes donos
e as grossas placas
de aço do abandono.

Trecho do Poema "Em Torno da Cidade" de Alberto Martins em Cais (pág. 69). São Paulo: Ed. 34, 2002




Alberto Martins lança um olhar sentimental em torno de sua cidade natal, Santos, e nos apresenta uma paisagem singular, muito além do relevo e da geologia. Como ele mesmo nos conta, mora no porto, entre navios e bandeiras de diferentes nacionalidades, acompanhando o vai-e-vem das cargas, legais e ilegais, o vai-e-vem da história e da vida. Augusto Massi destaca que o poeta nos revela Santos como uma cidade que "flutua num enigmático comércio: embarque e desembarque de carga, fluxo e refluxo da memória, subida e descida da serra. As imagens se deslocam com a leveza e velocidade dos guindastes".
Por F@bio



domingo, 21 de abril de 2013

Do Porto - Alberto Martins



cais
onde as coisas ancoram
onde as coisas demoram
algum tempo
antes de partir

lá está o morto
vivendo de uma outra vida
que só diz respeito ao corpo

lá estão seus ossos
pacotes bem embalados
prontos pra subir a bordo

CAFÉ ALUMÍNIO CEVADA
SOJA CIMENTO
CARNE

- mas pra quê tantos guindastes
se o corpo não se move
jamais?


Obtido de: http://wladimircaze.blogspot.com.br/2011/07/trecho-do-poema-em-torno-da-cidade-do.html


Alberto Alexandre Martins é é Mestre em Literatura Brasileira pela USP e doutor em Artes Plásticas na ECA-USP. Poeta e artista plástico nascido em Santos, litoral paulista, reflete em sua obra influências de quem viveu no estuário, entre o Atlântico e a Serra do Mar. Sua obra tem sido reconhecida e premiada.

Porto é ponto de chegada e partida, local de trânsito, é meio e não fim, vai e vem, constante movimento. As coisas, seus corpos, estão no porto de passagem, de lá embarcam para o mar, quem vai, ou para a terra, quem vem, vão se eternizar em outro lugar. Carregar e descarregar, de lá pra cá. Mas o porto que movimenta coisas e gentes está firme, ponto fixo, farol no horizonte, move mas não se move, é porto seguro.
Por F@bio

sexta-feira, 5 de abril de 2013

Porto - Alexandre Dáskalos




"Havia nos olhos postos o sentido
de não vencerem distancias.
Calados, mudos, de lábios colados no silêncio
os braços cruzados como quem deseja
mas de braços cruzados.

Os navios chegavam ao porto e partiam.
Os carregadores falavam da gente do mar.
A gente do mar dos que ficam em terra.
As mercadorias seguiam.
Os ventos, dispersos na alma do tempo,
traziam as novas das terras longínquas.

Segredavam-se em noites e dias
a todos os homens
em todos os mares
e em todos os portos
num destino comum.

Os navios chegavam ao porto
e partiam..."


Obtido de http://www.lusofoniapoetica.com/artigos/angola/alexandre-daskalos/porto.html

Alexandre Dáskalos (1924-1961), poeta, nascido em Huambo, Angola, estudou em Lisboa onde ser formou em Medicina Veterinária. Participou ativamente do movimento “Vamos Descobrir Angola” e da Geração da Mensagem, colaborou em O Planalto e em Mensagem (Casa dos Estudantes do Império). Muitos dos seus poemas foram musicados e traduzidos para diversas línguas.

O porto é local seguro, mas os navios partem sempre, levando novidades, gentes, coisas, casos, lembranças, sonhos, desafios, aventuras, bagagens, tristezas, desventuras, saudades...
Por F@bio

sexta-feira, 29 de março de 2013

Vista de Delft - Timothy Brook

"Comecemos com Vista de Delft. Esse é um quadro pouco comum na obra de Vermeer. A maioria dos quadros dele mostra o interior de salas decorado de maneira cativante com objetos discretos da vida familiar do artista. Vista de Delft é bem diferente ... É uma vista específica de Delft que se revela de um ponto mais alto logo ao sul da cidade, do outro lado do Kolk, o porto fluvial de Delft, quando se olha para o norte. Diante da superfície triangular da água em primeiro plano, ficam os portões de Schiedam e Roterdã, que flanqueiam a embocadura do Oude Delft, onde se abre no Kolk. Além dos portões, está a cidade propriamente dita. Nossa atenção é atraída para a torre da Igreja Nova, iluminada pelo sol. A torre está visivelmente sem sinos; como se sabe que os sinos começaram a ser montados em maio de 1660, podemos datar a pintura de pouco antes disso. Há outras torres na linha do horizonte. Para a esquerda, vemos a cúpula acima do portão de Schiedam, depois a torre cônica menor da Cervejaria Papagaio (no século XVI, Delft fora um centro de fabricação de cerveja). E, subindo para se mostrar ao lado dela, vemos a ponta da torre da Igreja Velha. Essa é Delft na primavera de 1660."
(...)

"O primeiro lugar onde procuraremos a segunda porta é o porto. O Kolk recebia barcos que viajavam indo e voltando de Delft pelo canal Schie, que corria para o sul até Schiedam e Roterdã, no Reno. Atracada ao cais no primeiro plano, à esquerda, há uma balsa de passageiros. Com formato comprido e estreito para passar com facilidade pelas comportas dos canais, as balsas como essa, puxadas por cavalos, funcionavam com horário fixo e ligavam Delft a cidades pequenas e grandes do sul da Holanda ... Dos outros dois lados do porto, todos os barcos estão ancorados ou fora de serviço. A única indicação de inquietude é o horizonte recortado de prédios e a sombra lançada pelo imenso cúmulo que pende no alto da pintura. Mas o efeito geral é a perfeita tranquilidade de um dia agradável. Há outros barcos atracados no Kolk: pequenos cargueiros abaixo do Portão de Schiedam e outras quatro balsas de passageiros ao lado do Portão de Roterdã. Entretanto, os dois para os quais quero chamar a atenção são as embarcações de fundo largo atracadas uma à outra no lado direito do quadro. Esse trecho do cais diante do Portão de Roterdã era onde ficava o estaleiro de Delft. Essas duas embarcações estão sem os mastros de popa, e os mastros de proa estão em mau estado, o que indica que estão lá para reforma ou conserto. São navios de três mastros construídos para a pesca de arenque no mar do Norte. Eis outra porta para o mundo do século XVII, mas ela exige alguma explicação para se abrir."

Transcrito de "O Chapéu de Vermeer: o século XVII e a aurora do mundo global" de Timothy Brook. Tradução de Maria Beatriz de Medina. Rio de Janeiro: Record, 2012.

O autor, Timothy Brook, é canadense, professor da Universidade de Oxford e reitor do Saint John's College da Universidade de Colúmbia Britânica. É estudioso da China e autor de vários livros sobre o tema. No livro "O Chapéu de Vermeer" ele elabora um interessante ensaio sobre as telas do pintor holandês. Com base nos elementos encontrados nos quadros, Brook delineia as rotas de comércio do século XVII, indicando os primórdios da globalização.

O curioso do texto de Brook é a profunda investigação pictórica sobre os quadros do pintor holandês Johannes Vermeer (1632 - 1675), muito conhecido pela tela "Moça com brinco de pérola" que deu nome ao livro e ao filme que contam a vida do pintor. O livro de 1999 é de Tracy Chevalier e o filme de 2003 é de Peter Webbe, tendo como protagonista a estonteante atriz Scarlett Johansson que interpreta Griet, a garota com brinco de pérola.
A partir dos elementos pintados por Vermeer em suas obras, Brook aponta as origens dos produtos, estrutura e métodos negociais, rotas de navegação, lutas políticas e econômicas,  que evidenciam que, já naquela época, o comércio em escala mundial descortinava a globalização hoje tão em voga.
Por F@bio

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

Confidência - Mia Couto


"Porque a minha mão infatigável
procura o interior e o avesso
da aparência
porque o tempo em que vivo
morre de ser ontem
e é urgente inventar
outra maneira de navegar
outro rumo outro pulsar
para dar esperança aos portos
que aguardam pensativos"

De: Mia Couto, do poema "Confidência".

Obtido de: http://www.elfikurten.com.br/2012/11/mia-couto-o-afinador-de-silencios.html

Antônio Emílio Leite Couto, mais conhecido por Mia Couto, nasceu em 5 de Julho de 1955 na cidade da Beira em Moçambique. É filho de emigrantes portugueses. Jornalista, escritor, poeta, biólogo  e professor da cátedra de ecologia. Em 1992, foi o responsável pela preservação da reserva natural da Ilha de Inhaca. Tem vários livros publicados e é o autor moçambicano mais traduzido. As suas obras foram traduzidas e publicadas em 24 países. Várias das suas obras têm sido adaptadas ao teatro e cinema. Tem recebido vários prêmios nacionais e internacionais, e comparado a Gabriel Garcia Márquez e Guimarães Rosa. Seu romance Terra sonâmbula foi considerado um dos dez melhores livros africanos do século XX. Em 1999, o autor recebeu o prêmio Vergílio Ferreira pelo conjunto de sua obra e, em 2007 o prêmio União Latina de Literaturas Românicas.

Sou um admirador da poesia e prosa de Mia Couto. Aliás, sua prosa é pura poesia. Li alguns de seus romances, cuja riqueza literária é apaixonante. Sua obra nos leva para a África, sua cultura e suas crenças. O imaginário e lendas populares afloram no texto e nos envolvem. Conhecido como o "escritor da terra", seu texto nos transporta para o solo africano, cheio de realismo fantástico, neologismos e histórias fantasmagóricas. Mia Couto nos leva pelas raízes africanas, num ambiente social rico e ao mesmo tempo envolvente, misturando realidade e sonho.
Por F@bio

Mar - Rui Teixeira Motta

Deserto impróprio,
Quantos Lawrence marinheiros
te amam desigualmente
na tua espantosa igualdade.
Felino no requebro fácil
mas pensado ...
feminino no movimento
nos redondos do rosto
mas homem no olhar devolvido.
Composto de todas as cores
com todas te fazes
no contraste bárbaro com a talhada de melancia
com os olhos azuis de um filho sonhado, por nascer
começando no fim ...
Transportando no terreiro azul da pele
horas e tempos outra vez horas
que secam nos tombadilhos dos navios
que embatem em horizontes
que jazem nas madrugadas
surpreendidas pelo vento.
Inseguro ao leme, segues um barco a palmilhar-te as léguas
Ondas brancas, porque não verdes?
porque não fracas?

Transcrito de "A Poesia É para Comer - Iguarias para o Corpo e para o Espírito", seleção de poemas por Ana Vidal; coordenação editorial por Renata Lima. São Paulo: Babel, 2011.

Rui Teixeira Motta, português, advogado, membro do Conselho de Opinião da RTP - Radio e Televisão de Portugal, é autor do livro "A construção e o canto: Poesia". Lisboa: Editorial Notícias, 1993.

Sempre gostei de contemplar o mar, vê-lo em sua amplidão, parecendo indomável e ao mesmo tempo dócil, misterioso e ao mesmo tempo cristalino. O mar infinito fundindo-se com o céu no horizonte. De movimento permanente a embalar e acalentar. Observar o mar para refletir e meditar. Olhar o mar a refletir o céu.  O mar para amar e temer, o mar para domar e tremer, o mar a desafiar e inspirar...
Por F@bio

sábado, 5 de janeiro de 2013

Soneto da Enseada - Ledo Ivo

SONETO DA ENSEADA

Sou sempre o que está além de mim
como a ponte de Brooklyn ao pôr-do-sol.
Sou o peixe buscado pelo anzol
e o caracol imóvel no jardim.

De mim mesmo me parto, qual navio,
e sou tudo o que vive além de mim:
o barulho da noite e o cheiro de jasmim
que corre entre as estrelas como um rio.

Quem atravessa a ponte logo aprende
que a vida é simplesmente a travessia
entre um aquém e um além que são dois nadas.

Na madrugada escura a luz se acende.
Que luz? De que vigília ou de que dia?
De que barco ancorado na enseada?

Obtido de: http://www.sonetos.com.br/sonetos.php?n=2724


Ledo Ivo está bem presente neste Blog e não poderia deixar de registrar seu falecimento no último dia 23 de dezembro de 2012, aos 88 anos, de infarto. Morreu na encantadora cidade de Sevilha, Espanha, capital da Andaluzia, onde é tão forte a presença moura. Ledo Ivo é considerado um grande artesão da palavra, um poeta inspirado e de uma "acidez cômica", nas palavras do acadêmico Marcos Villaça, seu colega de ABL. Fez a travessia entre o aquém e o  além de que fala no soneto. Partiu de si mesmo, qual navio a desbravar outros mares, outros aléns...
por F@bio

quarta-feira, 10 de outubro de 2012

O Navio de Espelhos - Mario Cesariny


O navio de espelhos
não navega cavalga

Seu mar é a floresta
que lhe serve de nível

Ao crepúsculo espelha
sol e lua nos flancos

Por isso o tempo gosta
de deitar-se com ele

Os armadores não amam
a sua rota clara

(Vista do movimento
dir-se-ia que pára)

Quando chega à cidade
nenhum cais o abriga

O seu porão traz nada
nada leva à partida

Vozes e ar pesado
é tudo o que transporta

(E no mastro espelhado
uma espécie de porta)

Seus dez mil capitães
têm o mesmo rosto

A mesma cinta escura
o mesmo grau e posto

Quando um se revolta
há dez mil insurrectos

(Como os olhos da mosca
reflectem os objectos)

E quando um deles ala
o corpo sobre os mastros
e escruta o mar do fundo

Toda a nave cavalga
(como no espaço os astros)

Do princípio do mundo
até ao fim do mundo




Mário Cesariny de Vasconcelos (1923 – 2006), português, pintor e poeta, considerado o principal representante do surrealismo em Portugal, sendo de se destacar também o seu trabalho de antologista, compilador e polêmico historiador das atividades surrealistas em seu país. Afirma-se que foi o artista português que de forma mais plena assumiu o surrealismo: "não como método ou escola, mas como forma de insurreição permanente, na arte e na vida". Uma característica peculiar da arte de Cesariny é que nela a pintura e a poesia foram sempre aliadas: muitas de suas obras incluem palavras recortadas, conjugações de textos e imagens, e outras formas experimentais. (obtido de http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1rio_Cesariny e http://cesariny.blogs.sapo.pt/)

 

domingo, 7 de outubro de 2012

Apenas um navio - Lidia Maria de Melo


Apenas um navio

No ano de meia quatro,
no meio do estuário
em frente ao porto de Santos,
o porto de minha infância,
Das barcas e das catraias,
dos navios e rebocadores,
Dos trens e dos armazéns,
onde os botos,
às cinco e meia da tarde,
viraram cambalhotas
enquanto as gaivotas
fisgavam peixes no mar,
avistava-se um navio
velho, preto,
ancorado
próximo à Ilha Barnabé,
que os menos informados
confundiam com um navio comum.
Mas eu e muitas crianças,
que ansiavam
para verem os pais
(confinados),
sabíamos que ele era bem mais
que um navio qualquer
e o culpávamos
pela ausência paterna
nos almoços de domingo,
pela angústia disfarçada nos olhos de nossas mães,
pela melancolia que abraçava
todas nossas brincadeiras,
pela vontade de chorar
sem saber bem o porquê.
Nós já sentíamos tudo
e éramos tão crianças!
Só o que não entendíamos
é que o Raul Soares
era apenas um navio
e não tinha culpa de nada.
Não tinha culpa de ter virado
instrumento repressivo
no ano de meia quatro.



Lídia Maria de Melo. Raul Soares: Um navio tatuado em nós. São Paulo / Santos: Pioneira / Universidade Santa Cecília, 1995. Baixado em 07/10/2012 de: http://www.portogente.com.br/texto.php?cod=69655

Alessandro Atanes tem sido uma boa fonte para o Cargueiro. Poeta e jornalista, com ampla pesquisa sobre a literatura santista. No artigo "Golpe: poesia da exceção", Atanes nos apresenta o poema de Lídia Maria de Melo e informa que  “Apenas um navio” foi escrito em 1982,  na fase final da ditadura. O poema evoca a infância da escritora e "remete a um clima inicial de nostalgia, logo cortado pelo trauma, pela chaga no cais, a presença do navio-presídio Raul Soares no estuário, próximo à Ilha Barnabé... No poema de Lídia não é desolação que presenciamos, e sim a incerteza do Estado de Exceção após o golpe".
Navios foram concebidos como meio de transporte de pessoas e cargas, mas alguns tiveram sina terrível, como os negreiros a transportar escravos e os navios presídios, onde muitos foram confinados, maltratados e mortos. O Raul Soares era um navio misto, de carga e passageiros, de origem alemã que foi incorporado ao Lloyd Brasileiro, utilizado na navegação de cabotagem antes de virar prisão, seu triste fim. (vide “Raul Soares – Tempos de Gloria”, de Humberto de Lima Moraes em http://www.portogente.com.br/texto.php?cod=4824)

terça-feira, 12 de junho de 2012

1822 - Laurentino Gomes

"Como principal negociadora do reconhecimento do Brasil independente, a Inglaterra se valeu de seu poder econômico e político para tirar vantagem da nova situação. Em 1825, o Brasil já era o terceiro mercado mais importante dos produtos ingleses, graças ao vantajoso tratado comercial assinado por Dom João em 1810 que concedia à Inglaterra tarifas de importação inferiores às de seus concorrentes nos portos brasileiros. O tratado venceria em julho de 1825 e todo o esforço dos ingleses se concentrou em convencer D. Pedro a renová-lo em troca do reconhecimento da Indenpendência. Foi, de fato, o que aconteceu. Além de assegurar a prorrogação das vantagens alfandegárias para seus produtos, a Inglaterra perpetuou no Brasil independente alguns privilégios que gozava com Portugal..."

Transcrito da obra "1822" de Laurentino Gomes, História, pág. 288. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2010. O livro tem por subtítulo "como um homem sábio, uma princesa triste e um escocês louco por dinheiro ajudaram D. Pedro a criar o Brasil - um país que tinha tudo para dar errado."

Laurentino Gomes é jornalista, nascido em Maringá - Paraná, com carreira de repórter e editor no jornal O Estado de São Paulo e na revista Veja. É membro da Academia Paranaense de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo. Li suas duas obras de jornalismo histórico, que registram dois períodos marcantes da formação do Brasil: 1808 que trata da fuga da família real portuguesa para o Rio de Janeiro, com amplos reflexos na conformação do estado brasileiro e na criação do caldo de cultura que propiciou a declaração de indepedência. Já 1822 aborda o ambiente e as articulações que levaram o País a declarar o rompimento com a metrópole portuguesa, fato caracterizado pelo autor como uma combinação de sorte, improvisação, acasos e também sabedoria das lideranças responsáveis pela condução dos destinos do Brasil, num momento de idealizações, conflitos e perigos. Além de uma escrita ágil, ela é muito rica em informações. Laurentino inclui nos relatos aspectos pouco abordados nos livros didáticos, como a vida sexual e afetiva dos protagonistas de nossa história, idiossincrasias de alguns personagens, visão dos vencedores e dos vencidos no processo que levou à declaração de independência. Demais, o autor relata que o projeto que o levou a escrever o livro surgiu de uma conversa casual com o vice-almirante Armando de Senna Bittencourt, diretor do Patrimônio Histórico e Cultural da Marinha, que fez a seguinte observação para o autor: "É inacreditável como um parte da elite brasileira conseguiu envolver o príncipe regente nos seus planos, separar-se de Portugal e, principalmente, manter o país unido quando tudo indicava que o caminho mais provável seria o da guerra civil e da fragmentação territorial". Realmente esse era o pano de fundo dominante do momento. O que o livro destaca é que sem a liderança de D. Pedro e o estabelecimento do regime monárquico possívelmente não seríamos um só Brasil. Viva o primeiro rei brasileiro!
Por F@bio

sábado, 26 de maio de 2012

Os Velhos Marinheiros - Jorge Amado

Os Velhos Marinheiros - Jorge Amado

"Com a luneta ao olho examinou a cidade, as casas de azulejos portugueses, a pitoresca agitação do mercado Ver-o-Peso, o ancoradouro do Port-of-Pará, onde ia encostar o Ita. Os oficiais de bordo estavam todos na ponte, mesmo o Comissário. O Imediato ditava ordens. O navio aproximava-se. Vasco detinha-se nas bandeiras dos cargueiros e paquetes ancorados: ia o Ita, segundo tudo indicava, ficar ao lado de um cargueiro inglês, mais adiante estava um pequeno navio do Lloyd Brasileiro, um iate vindo da Guiana Francesa, além das gaiolas numerosas. Do barco inglês, marujos loiros saudavam com a mão. O Comandante pensou que sua missão estava finda, pois as máquinas reduziam o ritmo, quase deixando de trabalhar. O navio chegava ao seu destino. (...) Carregadores ofereciam seus serviços, mostravam os números no peito. Tudo correra bem, pensou o Comandante. Foi nesse momento, quando um sorriso de perfeita satisfação abriu-se em seus lábios, que ressoou aos seus ouvidos a voz do Imediato, cercado por todos os oficiais de bordo, o Comissário inclusive:
- Comandante!"

Transcrito de "A Completa Verdade sobre as Discutidas Aventuras do Comandante Vasco Moscoso de Aragão, Capitão de Longo Curso" em Os Velhos Marinheiros, de Jorge Amado (pág. 283). Romance. 23a. Ed. São Paulo: Martins, 1970.

Jorge Amando tem sido a mais rica fonte para este modesto blog, um Cargueiro que navega na rede e tem a pretensão de levar as letras aos internautas. Como o objetivo é que as citações literárias tenham algum elo com o comércio exterior, grande parte delas retratam o universo dos portos e da navegação. O livro Os Velhos Marinheiros tem o subtitulo "duas histórias do cais da Bahia". São duas histórias deliciosas, a do Comandante de Longo Curos citada e Quincas Berro D'Água. As histórias têm como protagonistas duas figuras características do universo ficcional de Jorge Amado, que não abrem mão do direito de comandar seus destinos na terra, sem abdicar do direito de sonhar. O romance alia humor, drama, ternura e sobretudo poesia. Ao final, o narrador indaga aos leitores onde está a verdade: "está naquilo que sucede todos os dias, nos quotidianos acontecimentos, na mesquinhez e chatice da vida da imensa maioria dos homens ou reside a verdade no sonho que nos é dado sonhar para fugir da nossa triste condição? Como se elevou o homem em sua caminhada pelo mundo: através do dia a dia de miséria e futricas, ou pelo livre sonho, sem fronteiras nem limitações?" Esse é o grande Jorge Amado a nos provocar e incentivar a ter um vida menos mesquinha. Salve Jorge!!
Por F@bio

domingo, 13 de maio de 2012

Dois Irmãos - Milton Hatoum

"Uma tarde de domingo, minha mãe me convidou para passear na praça da Matriz. Perto dali, atracados no Manaus Harbour, os grande cargueiros achatavam barcos e canoas, ocultando o horizonte da floresta. No centro da praça não havia mais a multidão de pássaros que encantava as crianças. Agora o aviário que tanto me fascinara estava silencioso. Sentados na escadaria da igreja, índios e migrantes do interior do Amazonas esmolavam. Domingas trocou palavras com uma índia e não entendi a conversa; as duas se benzeram quando os sinos deram seis badaladas. Minha mãe se despediu da mulher, entrou sozinha na igreja, rezou. Depois nós entramos no Manaus Harbour, fomos até a extremidade do trapiche. O porto flutuante estava movimentado, com seus estivadores, guindastes e empilhadeiras. Um homem que andava por ali nos reconheceu e acenou. Era o Calisto, um dos vizinhos do cortiço. Descalço, só de calção, ele esperava uma ordem para descarregar caixas de produtos eletrônicos. Eu não sabia que ele trabalhava aos domingos no porto. Calisto se livrara das garras de Estelita Reinoso, mas agora tinha de agüentar outro peso".

Transcrito de "Dois Irmãos", romance de Milton Hatoum (pág. 240). São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

Milton Hatoum é amazonense de Manaus. Professor de literatura na Universidade do Amazonas e na Universidade da Califórnia (Berkeley). Dois Irmãos é seu segundo romance, ganhador do Premio Jabuti, como o primeiro "Relato de um certo Oriente".

Dois irmãos é a história de gêmeos que, qual Caim e Abel, se digladiam, enquanto o narrador busca sua identidade no seio de uma familia de imigrantes árabes - sírios para ser mais preciso. Os amores e conflitos familiares são o veio de um narrador que busca sua identidade.

O romance tem também, como pano de fundo, o cenário de uma cidade formada por imigrantes, no meio da floresta amazônica, em processo de transformação. A arquitetura e modo de vida iniciado no ciclo da borracha dá lugar ao polo que se industrializa.

Hatoum constrói um texto envolvente com uma escrita prazeirosa e de textura delicada, quase poética. Um texto tão intenso quanto as relações afetivas que situa no coração de uma família de imigrantes.
Por F@bio

domingo, 8 de abril de 2012

Porto - Eduardo Júlio

Porto

"Diante da eternidade deste cais

O silêncio é sobra do abandono


A ausência tem cor azul e dói

Como se não fosse céu

Aquele mar que pretendíamos


O próximo silêncio parece leve

Mas por instantes

Cala uma cumplicidade."


(Poema do livro de poesia Alguma Trilha Além, Edição Secma, 2006, reproduzido em Suplemento Cultural & Literário JP Guesa Errante Anuário, São Luis (MA), n.7, 2009).

Eduardo Júlio, maranhense, poeta e jornalista, nos fala do silêncio que dói em nossos corações, um porto abandonado, sonhos partidos, cais de eternas partidas, amores compartidos, cúmplices...
Por F@bio