sábado, 12 de março de 2011

Haicai

De: Carlos Seabra


"rochedo no mar

barco afundado

olhos a chorar"
 
 
 
 
Diante da dimensão da tragédia do terremoto/maremoto que atingiu o Japão, resolvi fazer no Cargueiro de Letras uma pequena homenagem ao povo japonês, que sempre conseguiu superar as dificuldades que a natureza e os homens lhes impuseram, e construir uma grande nação, a qual tive a oportunidade de visitar em três oportunidades distintas. Na primeira vez, em 1991, participei de uma Assembléia de uma organização internacional cuja sede fica em Yokohama. Numa ida a Tóquio, andei de metrô e pude conhecer os curiosos funcionários enluvados responsáveis por dar um empurrãozinho nos que estão bloqueando a porta do trem. Visitei o bairro dos eletrônicos e por uma incrível coincidência, quando estava saindo de uma daquelas lojas verticais com vários andares de eletrônicos, deparei-me com o Zico, que então jogava futebol no Japão. É impressionante a capacidade do povo japonês. Tudo muito organizado e limpo, apesar de ser um país superpopuloso. Sei que mais uma vez eles, com sua capacidade de trabalho e disciplina, vão reconstruir tudo.
Sobre a arte do haicai, trata-se de uma forma poética que tem uma métrica de três versos, de 5-7-5 sí­labas, que surgiu no Japão no século 16. Não há rimas, mas deve-se fazer referência a uma estação do ano, elemento básico de sua ligação com a natureza. No século 20, o haicai disseminou-se pelo mundo. Sua maior expressão é Matsuo Bashô (1644-1694), poeta japonês criador do mais famoso de todos os haicais: "velho lago / mergulha a rã / fragor d'água".
Por
F@bio

quarta-feira, 9 de março de 2011

A Hora da Estrela - Clarice Lispector

De Clarice Lispector

"O quarto ficava num velho sobrado colonial da áspera rua do Acre entre prostitutas que serviam a marinheiros, depósitos de carvão e de cimento em pó, não longe do cais do porto. O cais imundo dava-lhe saudade do futuro. (O que é que há? Pois estou como que ouvindo acordes de piano alegre - será isto o símbolo de que a vida da moça iria ter um futuro esplendoroso? Estou contente com essa possibilidade e farei tudo para que esta se torne real.)
Rua do Acre. Mas que lugar. Os gordos ratos da rua do Acre. Lá é que não piso pois tenho terror sem nenhuma vergonha do pardo pedaço de vida imunda.
Uma vez por outra tinha a sorte de ouvir de madrugada um galo cantar a vida e ela se lembrava nostálgica do sertão. Onde caberia um galo a cocoricar naquelas paragens ressequidas de artigos por atacado de exportação e importação? (Se o leitor possui alguma riqueza e vida bem acomodada, sairá de si para ver como é às vezes o outro. Se é pobre, não estará me lendo porque ler-me é supérfluo para quem tem uma leve fome permanente. Faço aqui o papel de vossa válvula de escape e da vida massacrante da média burguesia. Bem sei que é assustardor sair de si mesmo, mas tudo o que é novo assusta. Embora a moça anônima da história seja tão antiga que podia ser uma figura bíblica. Ela era subterrânea e nunca tinha tido floração. Minto: ela era capim).
Dos verões sufocantes da abafada rua do Acre ela sentia o suor, um suor que cheirava mal. Esse suor me parece de má origem. Não sei se estava tuberculosa, acho que não. No escuro da noite um homem assobiando e passos pesados, o uivo do vira-lata abandonado. Enquanto isso - as constelações silenciosas e o espaço que é tempo que nada tem a ver com ela e conosco. Pois assim se passavam os dias. O cantar de galo na aurora sanguinolenta dava um sentido fresco à sua vida murcha. Havia de madrugada uma passarinhada buliçosa na rua do Acre: é que a vida brotava no chão, alegre por entre pedras.
Rua do Acre para morar, rua do Lavradio  para trabalhar, cais do porto para ir espiar no domingo, um ou outro prolongado apito de navio cargueiro que não se sabe por que dava aperto no coração, um ou outro delicioso embora um pouco doloroso cantar de galo. Era do nunca que vinha o galo. Vinha do infinito até a sua cama, dando-lhe gratidão..."

Transcrito de "A Hora da Estrela", de Clarice Lispector, Novela. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

Faço aqui minha homenagem ao dia da mulher. Clarice é uma das maiores escritoras da lingua portuguesa. Essa Ucraniana de nascença, brasileira por adoção, cujo texto conheci no saudoso Jornal do Brasil que lia nos tempos de adolescência e juventude. A Hora da Estrela é, segundo José Castello, "o livro mais surpreendente que escreveu" e põe surpreendente nisso. Nele Clarice cria um falso autor, seu alter ego, e escreve um texto rico de emoções, entre o delírio e a realidade, numa abordagem impregnada de uma visão social e existencialista. Como conclui Castello, o livro "é um romance sobre o desamparo a que, apesar do consolo da linguagem, todos estamos entregues".
A hora da estrela é uma obra-prima da literatura brasileira, trazendo, via recurso metalingüístico, reflexões do autor sobre o ato de escrever, no caso o falso autor Rodrigo S.M., por meio das quais dialoga com o leitor, e reflexões sobre sua própria vida e da anti-heroína Macabéa.
Na telona, Marcélia Cartaxo deu corpo a uma Macabéa extremamente fiel ao texto de Clarice, dirigida por Suzana Amaral (1985), pelo qual ganhou o Urso de Prata de melhor atriz no Festival de Berlin de 1986.
Por
F@bio

domingo, 27 de fevereiro de 2011

Agonia da Noite - Jorge Amado

De: Jorge Amado

"Ia o negro Doroteu, com sua negra Inácia, pela beira do cais. Era o cais de Santos, os armazéns das docas a se perderem de vista, repletos de sacos de café, de cachos de bananas, de fardos de algodão. Trilhos, automóveis, geladeiras, rádios, máquinas estranhas, conservas e frutas desciam nos guindastes, trazidos do bojo profundo dos porões escuros dos negros cargueiros ancorados no porto. Um cheiro doce de maçãs maduras se misturava ao salgado odor do mar, na lânguida noite tropical, envolvente e morna, cortado por um vento fino chegado de distantes paragens. Também a melodia melancólica de uma canção marítima se mesclava ao barulho ensurdece dor dos guindastes, dos gritos de marinheiros e estivadores, dos apitos saudosos dos navios abandonando a orla do cais em busca do maroceano mais além do porto. De quando em vez, uma nota mais alta da canção se sobrepunha a todo o ruído e vibrava no ar, fazendo mais ligeira a carga nos ombros dos doqueiros. Era uma canção em língua estranha, impossível entender o que ela dizia, mesmo se pudessem distintamente ouvir todas as suas palavras, mas cada um sabia - os doqueiros, os marinheiros de diversas raças, os ensacadores, mesmo os empregados da Alfândega - tratar-se de uma canção de amor, feita de distância e de aflito anelo. Mais que todos o adivinhava o negro Doroteu, andando ao lado de sua negra Inácia. Para ele, as canções não tinham segredos, ele podia penetrar-lhes o sentido mais misterioso mesmo quando não entendia a língua do marinheiro improvisado em cantor, desabafando para as luzes da cidade de Santos a sua saudade da mulher um dia encontrada e logo perdida em Changai ou Constanza, em Nova Iorque ou Guaiaquil em Amsterdã ou Stambul. Dele era o sábio conhecimento das canções do mar, das bandeiras dos navios e da variada cor das águas no correr do dia. Desses mistérios falava o negro Doroteu à sua negra Inácia quando juntos, nas noites sem trabalho, atravessavam o cais imenso, trocando juras de amor, contando e ouvindo histórias, assoviando canções, rindo para todos, pois rir era o maior prazer tanto do negro Doroteu quanto da sua negra Inácia."
 
Extraído de "Agonia da Noite", que juntamente com "Os Ásperos Tempos” e “A Luz no Túnel”, formam a trilogia de Jorge Amado sob o título geral de “Os Subterrâneos da Liberdade”, na qual buscou traçar um panorama da vida política brasileira nos anos do Estado Novo. Editora Martins Fontes, sem data.
 
Jorge Amado é um romancista de mão cheia. Subterrâneos da Liberdade li quando estávamos sobre a ditadura militar no Brasil, nos anos 70 do século passado. Li num fôlego só, pois o romance parecia um retrato dos dias de então. Repressão, prisões políticas, greves proibidas, perseguição, partidos clandestinos, movimento estudantil. Eram tempos difíceis e eu estava lá, no movimento, lutando por remover aquele véu negro que nos amordaçava e retirava a liberdade. Parecido com o que os povos estão fazendo hoje no norte da África e Oriente Médio. Lutando pela democracia em passeatas, greves e manifestações. Lutando pela liberdade. Jorge Amado não esconde a sua militância de esquerda, nem eu.
Por
F@bio 

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Roteiro - Albano Martins

De: Albano Martins

"Desenho no mapa o teu perfil
de caravela cósmica. Viajo
por hemisférios tácteis ao encontro
do lastro puro, do contraste
que me revele
e justifique
e baste."

(in «Coração de Bússola», 1967)

Albano Martins, nascido em 1930, em Portugal, formado em filologia, foi professor.
O poeta foi um dos fundadores da revista Árvore e colaborador da Colóquio-Letras e Nova Renascença.
A caravela cósmica navega oceanos siderais, tateando estrelas, na busca do ponto de encontro, na dialética
do desencontro. O amor localizado pela bússola que há em cada coração, que dispara quando encontra, mas também soluça quando desencontra.
Será que isto basta?
Por
F@bio

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Poesia no Cais do Porto - Fernanda de Aquino

De: Fernanda de Aquino

"No meio do cais do porto, eu o descobri. Ele estava vestido de tanta gente, de sons indecifráveis, de letras incoerentes... No meio de tanta gente eu o vi descobrindo-me, encontrando meu olhar ávido por cima do ombro de um desconhecido. Seu olhar! Rendi-me na hora.

Eu não sabia direito como fora parar ali. A palestra estava começando e as pessoas já se amontoavam, se acotovelando em busca de um bom lugar, algumas para verem os famosos de perto, outras para serem vistas por sei lá quem pudesse ser.

Atada por sete nós, no mínimo, eu permaneci sentada numa cadeira dura, sob uma garoa fina e fria, sem beber, sem comer, sem falar. Fenilalinina pura, meu ser virou bruma, misturou-se com a maresia e passeava livre, do navio ao palco, do mar ao cais, voltando sempre ao mesmo lugar: seu olhar! Eu não via suas pernas, no tamanho exato para me alcançar, nem seus dedos longos e ágeis tamborilando seu joelho esquerdo. Ou era o direito? Eu via somente o seu olhar me tomando forte em seus braços, me dizendo coisas que eu precisava ouvir. Coisas de amor, doces mentiras. E afagos, muitos, por todo o meu corpo, eriçando meus pelos, meus mamilos, me aquecendo e de repente me atirando num abismo profundo, escuro, sem fim e depois me buscando novamente para em seguida me atirar outra vez. E mais outra.

O guindaste fingia trabalhar duro enquanto a poesia se derramava no cais do porto. Foram quase três horas carregando contêineres de paixão. Um amigo me disse um dia que detestava quando seus hormônios estavam erupcionando porque ele se metia em cada roubada...

Tão logo terminasse aquela verborragia desenfreada eu iria até ele, de corpo e alma. Diria quem eu sou, de onde vim e o que quero além do seu olhar. Era o que faria. E se ele, sentindo meu corpo tão perto, meu cheiro, minha voz falseada de naturalidade, recuasse... e seu olhar me dissesse “eu não te conheço, nem nunca te vi”.

Talvez naquele momento em que ele esticara o pescoço e me fitara dizendo “eu estou aqui, não se perca de mim”, não fora para mim. Ele me acertara sem querer quando mirava a sua namorada sentada atrás de mim. Eu era a primeira da fila, todos estavam atrás de mim. Não havia um caminho para o seu olhar ir onde quer que fosse sem passar por mim. E sempre que passava, eu o prendia por alguns instantes. Talvez ele nem tenha se dado conta disso. Poderia ser ainda um namorado aquele moço, quase um menino, que segurava seus livros com visível dedicação. Pior do que isso, o menino poderia ser o seu amor que esperava pacientemente seu amor fazer poesia a alheios, pensando enquanto isso, no quanto ele era sensível e inteligente e no quanto eram felizes aqueles dois.

O sutiã me apertava uma cicatriz antiga no lado esquerdo do peito. Doía. Olhei para a noite e chorei. Lembrei-me que teria que higienizar muito bem minhas pálpebras antes de dormir. Meu oftalmologista dissera que minhas lágrimas eram tóxicas. Que merda!"

Obtido de: http://www.correiodolitoral.com/index.php?option=com_content&view=article&id=304:no-meio-do-cais-do-porto&catid=55:maresia&Itemid=112

Fernanda de Aquino nos traz uma poesia cheia de tesão e paixão. Foi publicada pelo Correio do Litoral, diário eletrônico do litoral do Paraná do dia 15 de fevereiro de 2009. Hoje são 14 de fevereiro, quase uma coincidência de data. No Correio pode-se encontrar muitas outras poesias de Fernanda.
Todos nós, um dia, nos deparamos com um olhar instigante, que nos desperta um sentimento que cresce por dentro. Um desejo que vai subindo e nos queimando. Descobrir e ser descoberto. Olhares que se cruzam, dedos que se tocam, pele que se eriça, guindaste que se levanta de tesão, conteinêres de paixão contida no peito. Ah, o amor...
Por F@bio

domingo, 13 de fevereiro de 2011

Cais do Corpo - Braulio Tavares

De Braulio Tavares


"eles
que têm
uma mulher
em cada porto


elas
que têm
um homem
em cada navio

(quente é o cais do corpo,
quando o mar é frio) "
 
Obtido em:http://www.jayrus.art.br/Apostilas/LiteraturaBrasileira/VanguardasPoeticas/Braulio_Tavares_poesia.htm
 
 
Braulio Tavares, um paraibano que adotou o Rio ou pelos cariocas foi adotado.  É poeta, escritor, músico, roterista...e por aí vai. No link acima tem uma entrevista com ele que nos permite conhecer um pouco mais do poeta. Cais do Corpo coloca em uma perspectiva dialética a questão sempre posta do marinheiro que tem uma mulher em cada porto, ou são elas que têm um homem em cada navio? O corpo é o cais dos amores possíveis. Interessante que essa é a segunda poesia com esse título que publico aqui no Cargueiro de Letras.
Por

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Ponte Móvel Sobre o Rio Leça - João Luís Barreto Guimarães

De: João Luís Barreto Guimarães

"Imóvel na ponte aberta sobre este porto de mar
queria não ter que esperar que o petroleiro passasse
a vomitar outro preto nos depósitos da Cepsa.
Olho as margens da tarde em informe ebulição
o navio japonês veio dar à luz Toyota’s
alinhados sobre o cais qual parada militar
(os turistas dos cruzeiros aguardam pelo autocarro
que lembrará em sueco memórias do Porto antigo).
Do cargueiro africano rolam troncos gigantescos
houve um que caiu à água e ninguém o foi salvar
(decerto não irá longe nestas águas estagnadas
nem poderá ir mais ao fundo).
Corre um vento de norte. Novembro
está dentro do Outono. Alguém reuniu o manto
de folhas cerca da ponte mas pelo final do dia
já é Outono outra vez. Mas
distraí-me do cais. Espera. Lá está a marinha.
A fragata da Defesa devolveu homens à terra
meio-dia de licença na casa da luz vermelha
(este Natal as meninas vão-lhes dar a provar sonhos
e o porteiro: rabanadas). E se
faltam desrazões para me obrigar a parar
aqui me têm parado
(só reparando se vê)
qualquer amurada é perfeita para resumir um país
qualquer ponte é ideal para se matar
os tempos."

Poemas extraídos da revista POESIA SEMPRE, Num. 26, Ano 14, 2007. Edição da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro.

João Luís Barreto Guimarães nasceu no Porto, a 3 de Junho de 1967. Vive em Leça da Palmeira. Tem uma filha. É licenciado em Medicina e Cirurgia pela Universidade do Porto, especialista em Cirurgia Plástica, Reconstrutiva e Estética no Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia.


Obtido de: http://www.antoniomiranda.com.br/iberoamerica/portugal/joao_luis_barreto_guimaraes.html


O poeta e médico João Luís no seu poema cria imagens incríveis, como a do navio japonês que pariu toyotas. Passando por outra ponte, que não a de Leça da Palmeira, mas na Rio - Niterói, vê-se o navio italiano não parindo, mas abocanhando, ou para ser mais atual, extraditando fiats, mercedes, citroens e outros rodantes. Mas, nessa ponte não se mata o tempo apreciando o correr das águas ou o bater das ondas, mata-se o tempo em engarrafamentos, matam-se os motoristas e passageiros em colisões, vidas que se vão na nau dos espíritos. No cais desse porto também não dá para distrair-se sentido a brisa do vento norte e o aroma marinho, é um cais sujo, fedido, mal-tratado, como quase todo cais, de águas estagnadas, certamente muito mais do que a Leça da Palmeira que um dia pretendo conhecer.
Por
F@bio



segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

O Terrorista / O Herói - Lino Machado

De: Lino Machado

“Aqui
à beira do cais
onde faz pouco explodiu
o navio cargueiro
ninguém mais
admite
(incógnita: só eu)
que ainda cogita
ganhar o Prêmio Dinamite
da Paz.


Aqui
à beira do cais
ou seria perto
da sala VIP
daquele aeroporto?


Não importa.
Num caso ou noutro
nunca sumirá
a cicatriz – mire bem:
que trago a mais
no meu rosto.”

Obtido em http://www.revistacalcada.com.br/revista/poemas/o-terroristao-heroi/#more-104

Devo dizer que a internet tem sido uma grande aliada na construção deste blog. Não conhecia o Lino Machado e assim, sem mais nem menos, colocando umas palavras no google, eis que surge essa instigante poesia. Há muita gente em busca desse Prêmio Dinamite da Paz. Quantas marcas e cicatrizes provocadas pelos que fazem a guerra em nome da paz. Será essa a sina do homem?
Por
F@bio

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Soneto da Enseada - Ledo Ivo

De: Ledo Ivo

"Sou sempre o que está além de mim
como a ponte de Brooklyn ao pôr-do-sol.
Sou o peixe buscado pelo anzol
e o caracol imóvel no jardim.


De mim mesmo me parto, qual navio,
e sou tudo o que vive além de mim:
o barulho da noite e o cheiro de jasmim
que corre entre as estrelas como um rio.


Quem atravessa a ponte logo aprende
que a vida é simplesmente a travessia
entre um aquém e um além que são dois nadas.


Na madrugada escura a luz se acende.
Que luz? De que vigília ou de que dia?
De que barco ancorado na enseada?"


Poesia de Ledo Ivo obtida de http://www.eurooscar.com/poesoutros/ledo_ivo1.htm

O poeta Ledo Ivo neste Soneto da Enseada traz a inquietação de existencialista e vai além. Vida que segue qual navio cruzando os mares. Vida vivida, vida deixada pra trás. Mas será mesmo que essa travessia ocorre entre dois nadas como propõe o poeta?
Por F@bio

(Veja mais Ledo Ivo neste blog)

domingo, 9 de janeiro de 2011

Os Belos Horrores dos Portos - Alessandro Atanes

De: Alessandro Atanes

"Duas coisas que devem ser ditas sobre esta pequena história dos portos como cenário na representação artística. A primeira é que o conteúdo histórico das obras não se restringe somente aos fatos: os temas e as formas também evoluem, dialogam com o tempo em que foram criadas e com os seguintes. Isso é o que talvez explique a semelhança temática entre cenas do romance "Navios Iluminados", do escritor Ranulpho Prata, e detalhes das pinturas de Quinquela Martin, sobre o porto de Buenos Aires.

A outra é que – de forma simplificada, mas válida – se o historiador do porto deve ler as estatísticas, é pela imersão no imaginário artistico que ele capta os temores dos indivíduos, ainda que os personagens do romance estejam no bairro do Macuco das décadas de 20 e 30 ou sejam trabalhadores sem rosto nas imagens da Boca, o bairro portuário de Buenos Aires, que no mesmo período foram pintados por Quinquela.

Essas imagens revelam desses objetos mecânicos imensos um aspecto monstruoso comum nos temas portuários de Quinquela, assim como em Mortona, do santista Athayde Lopes. Em Navios Iluminados, publicado em 1937 (portanto, contemporâneo de Quinquela), Ranulpho Prata descreve o primeiro dia de funcionamento de uma grab. A história se passa entre o final da década de 20 e início da seguinte, momento de expansão do porto.

O [guindaste] palmeira botou toda sua eletricidade, esticou o rabo possante e levantou a grab que lá se foi pelos ares, como uma aranha descomunal, em procura do porão do cargueiro inglês Amberton, que trazia carvão de Cardiff.

O barco vinha de barriga cheia, a carga beijando a boca da escotilha. A máquina escancarou as mandíbulas medonhas, enterrou os dentes na massa negra e derramou na galera três toneladas de carvão de uma so vez. Chegara recentemente e eram as primeiras experiências que faziam. O pessoal da turma [de estivadores] 65 espiava, curioso, o manejo da bicha.

As obras de Prata e Quinquela registram a mesma realidade. Para descrevê-lo, recorrem ao expressionismo da prosopopéia, aquela figura de linguagem dos seres inanimados – no caso, guindastes e navios – representados como animais. É no próprio campo da arte, no exagero das tintas e na distribuição das cores, que as obras conversam. Mais que cenário social, essa é a história que têm em comum.

Isolamento - As obras tamém se parecem pela forma como isolam o bairro portuário do resto da cidade, distanciando o cais e a vida urbana: físico, no caso da pintura tendo as fábricas urbanas como fundo; ou econômico, como as limitações de transporte do personagem do romance.

O protagonista de Navios Iluminados, José Severino de Jesus, só deixa o bairro portuário em situações especificas e sobre as quais a narrativa geralmente se encolhe em passagens bem ligeiras. Na obra de Prata, o bairro portuário é o exclusivo universo de Severino e de outros milhares de trabalhadores do porto que compartilham aquele bairro “de chalés de madeira muito parecidos uns com os outros, como gente da mesma familia”.

Ao concentrar a ação no Macuco, o autor estabelece uma oposição entre o bairro e o resto da cidade, desconhecido e inóspito. Em Santos não são longas as distâncias físicas e o restante da cidade – suas praias, seus cassinos, suas avenidas – não fazia parte da vida de Severino, totalmente voltada ao trabalho e à tentativa de deixar a miséria para trás.

O isolamento é semelhante nas pinturas de Quinquela. O resto de Buenos Aires só é indicado pelas chaminés no horizonte, cuspindo fumaça, também nos informando sobre o desconhecido e o inóspito.

Com as cores de suas pinturas na memória, a poeta Júlia Prilutzki Farny escreveu o seguinte sobre o bairro portuário e seu contraste com o resto da cidade no ensaio biográfico sobre o artista:

“Sim, claro que a Boca é diferente. Não só representa a melhor linhagem do nosso portismo [porteñismo], senão talvez – e sim talvez – o único lugar da cidade com vida própria. Com fascinação própria. Onde as cinzas que nivelam nossa visão citadina das coisas e dos homens se incendeiam em cores vibrantes e violentas: vermelho, verde, amarelo, azul. (...) A Boca é, talvez, nossa única esperança de cor. E de calor.”

O expressionismo da prosopopéia e o isolamento geográfico dessas duas representações artísticas são rastros que permitem um entendimento do espaço portuário além dos fatos. Se, como dizem alguns críticos, o horror é uma sensação própria do mundo atual, as obras de Prata e Quinquela contribuem de forma privilegiada para seu entendimento.

Quinquela

Quinquela Martin (1890-1977) é filho adotivo de um carvoeiro do bairro da Boca. Nos primeiros anos do século XX, chegou à adolescência no turbilhão político das greves do período. Passa a frequentar a Sociedade União da Boca, onde recebe aulas de desenho e pintura. Em 1916, já era assunto das resenhas críticas e das revistas de arte. Começa a expor pelo país e, em 1920, faz sua primeira exposição internacional, no Rio de Janeiro. Após anos de viagens, volta para o bairro portuário e dali não sairia mais. O amor e o sentimento de pertencer ao seu bairro foram materializados em doações de bens que construíram escolas e teatros, numa espécie de retribuição do pintor. Crepúsculo no Estaleiro, um óleo sobre tecido pintado em 1924, é a obra de que mais gostava e até hoje está na Boca. (Na reprodução ao lado, fragmento da tela Descarga de carbon con Grampas, de 1928)

Athayde

Nascido em Santos, Athayde Lopes tem hoje 74 anos. Desde o início de seus estudos, nos anos 40 e 50, o porto tem sido um tema recorrente em sua obra, mais conhecida fora da cidade e no exterior. Nova York, por exemplo. Conta que o porto era seu lugar favorito para armar o cavalete, “era tudo aberto, não havia restrições, a gente ia onde queria”. As cores, as dimensões dos aparelhos e navios, os guindastes laranjas, as massas escuras, os tons vigorosos do cais forjaram sua pintura — “são coisas que dão muitos elementos criativos, além de ser ambiente que está impregnado na alma dos santistas”. Apesar das exposições em salões, prêmios, muitas mostras individuais (ele inaugurou, por exemplo, a antiga galeria do Banco do Brasil) não vivia de pintura, o que só foi fazer após aposentar-se como publicitário. “Foi quando passei a lidar com marchands e exibir em galerias, o que sempre relutei em fazer no passado”, conta. E ainda sobra tempo para o pintor, que se considera um impressionista, dar aulas de pintura, “mas agora só para dez alunos, não mais que isso”. (A reprodução que abre a matéria é da tela Mortona, de 1999.)

Prata

Em 1937, quando publicou Navios Iluminados, Ranulpho Prata (1896-1942) já era um escritor experiente. Estudou medicina em Salvador e no Rio de Janeiro onde se torna amigo de Lima Barreto e Jackson de Figueiredo. Em 1927 Prata consegue uma vaga na Santa Casa de Santos e trabalha também na CDS. Considerava a literatura seu ofício e já tinha livros publicados reconhecidos. De sua experiência na cidade resultou Navios Iluminados, romance que marca o fim da literatura proletária com a emergência, em 1937, do Estado Novo. Premiado pela Academia Brasileira de Letras, Navios Iluminados foi traduzido para o espanhol (Vapores iluminados, 1940) e reeditado outras três vezes no Brasil: Clube do Livro (1946), Edições O Cruzeiro (1959) e Prefeitura de Santos com a editora Scritta (1996)."
 
Obtido de http://www.jornaldaorla.com.br/noticias_integra.asp?cd_noticia=2492
 
Estava buscando um texto que fizesse a ponte entre a literatura e as artes plásticas, eis que me deparei com a resenha de Alessandro Atanes, com o sugestivo título "Os belos horrores dos portos", publicada no Jornal da Orla, coluna Porto Cidade, em 27/07/2008. Alguns textos postados neste blog fazem uma descrição da realidade portuária com uma visão que remete a filme de horror: monstros devoradores gigantes e trabalhadores vergados pela pesada carga de trabalho. Algumas telas postadas também remetem a esse imaginário. Alessandro Atanes escreve uma bela crônica sobre dois grandes artistas plásticos, um portenho outro santista, e um escritor santista e nos desperta o desejo de conhecer mais de suas obras, além dos fragmentos que nos apresenta, aqui reproduzidos.
Leia entrevista com Alessandro Atanes em http://cinezencultural.com.br/site/2009/04/16/entrevista-alessandro-atanes/
Por
F@bio