quarta-feira, 22 de setembro de 2010

São Jorge dos Ilhéus - Jorge Amado

"...transpôs também ele a larga porta central da casa exportadora ... A casa agora era um prédio de quatro andares, no mesmo local do sobradinho antigo, próximo ao porto. O andar térreo era depósito e ensacamento de cacau, dois salões imensos, cheios até o teto de caroços negros que emanavam um cheiro de chocolate. Subindo pelas montanhas de cacau, homens nus da cintura para cima ensacavam os caroços. Outros pesavam os sacos, ajustandos-os ao peso de sessenta quilos exatos e, depois, as mulheres cosiam, numa rapidez surpreendente, as bocas dos sacos já pesados. Um meninote de uns doze anos imprimia sobre cada um deles um carimbo em tinta vermelha:
ZUDE, IRMÃO & CIA.
Exportadores

     Os caminhões penetravam pelo fundo em marcha-à-ré, carregadores levavam os sacos às costas, iam dobrados com o peso. Os sacos caíam com um baque surdo nos caminhões, os choferes punham os motores em marcha, arrancavam pela rua, paravam no cais. Novamente vinham carregadores e novamente se curvavam suas costas sob o peso da carga. Corriam pela ponte, pareciam seres estranhos, negros de espantosas corcundas. O navio sueco, enorme e cinzento, engolia o cacau. Marinheiros atravessavam, bêbados, a ponte de desembarque e falavam uma língua estranha."


Transcrito de "São Jorge dos Ilhéus", de Jorge Amado, Págs. 17 e 18. Romance. Escrita iniciada em Montevidéu e terminada em Periperi, Bahia, janeiro1944. São Paulo: Martins, 12ª edição, 1966. Foto obtida em http://pt.wikipedia.org/wiki/Jorge_Amado


Em 1982 comecei minha vida profissional no comércio exterior e logo em seguida fui atuar na área que cuidava das exportações de cacau na CACEX. Uma experiência rica, que me permitiu acompanhar histórias como essa de Jorge Amado, grande escritor brasileiro, mas que podemos chamar de o grande romancista do cacau e da Bahia. São Jorge dos Ilhéus retrata um período (anos trinta) do desenvolvimento da cultura do cacau no sul da Bahia, com disputas entre fazendeiros, exportadores e importadores de cacau. Nesse contexto, pode-se entender um pouco do comércio de uma commodity que já teve um importante ciclo econômico para o Brasil e para a Bahia em particular. Períodos de altas e baixas de suas cotações no mercado internacional, que trouxeram riqueza e opulência em certos momentos, decadência e desgraça em outros, mas sempre com um fundo de pobreza e miséria do trabalho, quase escravo, nas fazendas de cacau e no porto de Ilhéus. Jorge Amado é um escritor que nunca deixou de apresentar o constraste e a desigualdade social, mas também a miscigenação e o sincretismo que tanto caracterizam  o nosso país. Em São Jorge dos Ilhéus esse cenário aparece de forma muito clara, carregado de lutas e paixões, como um bom romance requer.
Por F@bio

domingo, 5 de setembro de 2010

Atravessa Esta Paisagem o Meu sonho - Fernando Pessoa

De: Fernando Pessoa

"Atravessa esta paisagem o meu sonho dum porto infinito
E a cor das flores é transparente de as velas de grandes navios
Que largam do cais arrastando nas águas por sombra
Os vultos ao sol daquelas árvores antigas...
O porto que sonho é sombrio e pálido
E esta paisagem é cheia de sol deste lado...
Mas no meu espírito o sol deste dia é porto sombrio
E os navios que saem do porto são estas árvores ao sol...
Liberto em duplo, abandonei-me da paisagem abaixo...
O vulto do cais é a estrada nítida e calma
Que se levanta e se ergue como um muro,
E os navios passam por dentro dos troncos das árvores
Com uma horizontalidade vertical,
E deixam cair amarras na água pelas folhas uma a uma dentro...
Não sei quem me sonho...
Súbito toda a água do mar do porto é transparente
E vejo no fundo, como uma estampa enorme que lá estivesse desdobrada,
Esta paisagem toda, renque de árvore, estrada a arder em aquele porto,
E a sombra duma nau mais antiga que o porto que passa
Entre o meu sonho do porto e o meu ver esta paisagem
E chega ao pé de mim, e entra por mim dentro,
E passa para o outro lado da minha alma..."

Poesia obtida em http://www.lovers-poems.com/poesia-fernando-pessoa-atravessa-esta-paisagem.html
Imagem obtida em http://www2.ilch.uminho.pt/portaldealunos/Estudos/EP/AH/TCH/P1/Ines/fernando.html

Navergar pelos versos de Fernando Pessoa, singrar cada poema, cada estrofe, cada frase, cada palavra. Passar para o outro lado e descobrir imagens, sons, cheiros e sabores, no texto sensível do poeta maior da língua portuguesa. Pessoa é o grande porto da poesia lusa, esta é a verdadeira ode. 
Por F@bio 

domingo, 15 de agosto de 2010

Santos - Ruy Ribeiro Couto

Nasci junto do porto ouvindo o barulho dos embarques.
0s pesados carretões de café
Sacudiam as ruas, faziam trepidar o meu berço.

Cresci junto do porto, vendo a azáfama dos embarques.
O apito triste dos cargueiros que partiam
Deixava longas ressonâncias na minha rua.

Brinquei de pegador entre os vagões das docas.
Os grãos de café, perdidos no lajedo,
Eram pedrinhas que eu atirava noutros meninos.

As grades de ferro dos armazéns, fechados à noite,
Faziam sonhar (tantas mercadorias!)
E me ensinavam a poesia do comércio.

Sou também teu filho, ó cidade marítima,
Tenho no sangue o instinto da partida,
O amor dos estrangeiros e das nações.

Oh, não me esqueças nunca, ó cidade marítima,
Que eu te trago comigo por todos os climas
E o cheiro do café me dá tua presença.


De Ruy Ribeiro Couto obtido de http://www.antoniomiranda.com.br/iberoamerica/brasil/ribeiro_couto.html


Jornalista, magistrado, diplomata, poeta, contista e romancista, Ribeiro Couto nasceu em Santos - SP (1898) e faleceu em Paris - França (1963). Foi membro da Academia Brasileira de Letras e colaborador do Jornal do Brasil e O Globo, ambos do Rio de Janeiro, e de A Província, de Pernambuco. Em "Santos" o que aparece são as reminicências de menino crescido na cidade porto, ouvindo o "triste apito" da partida dos cargueiros, abarrotados de café. O ar marinho era impregnado pelo cheiro do café. Diplomata, Ribeiro Couto correu mundo, como os cargueiros, e cultivou o "amor dos estrangeiros e das nações". Sua poesia ficou para nos inspirar, deixando "longas ressonâncias" em nossas vidas.
Nasci numa fazenda de café e cresci junto ao mar. No poema de Ribeiro Couto também pude resgatar minhas reminiscências de menino.
Por F@bio

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Céu e Mar - Cassiano Ricardo

De: Cassiano Ricardo

O dia marinheiro
todo vestido de sol branco
andava navegando com os marujos
de solavanco em solavanco
a prometer-lhes mundos nunca vistos nem sonhados

em mares nunca antes navegados

tudo por conta de outro dia
que mais adiante aparecia
e a mesma coisa prometia.

Luas marítimas, logo após,

nadavam no silêncio da amplidão
por onde a noite, caravela de carvão
levava a bordo uma porção de estrelas nuas.

Como era doída no outro dia

a dor da repetição!

Em Coletânia de Poemas de Cassiano Ricardo, Livro 2, disponível em: www.fccr.org.br

Conheci a poesia de Cassiano Ricardo ainda na adolescência e me encantei com "Gagárin" (veja abaixo), da sua fase concretista.  Jornalista, poeta e ensaísta nascido em São José dos Campos - SP (1895). Estudou em São Paulo e Rio de Janeiro. Participou da Semana de Arte Moderna de 1922. Transitou do simbolismo ao modernismo e concretismo. Foi um ativista incansável. No modernismo participou dos grupos "Verde Amarelo" e "Anta". Trabalhou nos jornais Correio Paulistando (SP) e A Manhã (RJ). Fundou as revistas: Novíssima e Planalto. Foi das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Letras. Com Céu e Mar, Cassiano Ricardo me permite enriquecer este blog com mais um belo poema e vesti-lo de sol branco, iluminado pelo grande poeta sãojoanense. 
Por F@bio



quinta-feira, 22 de julho de 2010

Cargueiro Japonês - Luli e Lucina


“trem na paisagem, lá
trem de minério, sol
trem indo embora, dó
um trem de Minas
tesouro indo, lá
de ferro em ferro
pra dentro da pança
do cargueiro japonês
do cargueiro

ruído que cobre o mar
budum que estraga o ar
trem indo embora
um trem de Minas
leva as montanhas
carrega as montanhas
pra dentro da pança
do cargueiro japonês
do cargueiro

vindo de longe parece um brinquedo
é cobra sem fim correndo o litoral
corre mais em mim ameaça sideral
vai meu sangue chão pro Japão
voltam relógios, máquinas fotográficas
computadores, brinquedos eletrônicos
todos mistérios, feitos dos minérios
que se vão na pança
do cargueiro japonês
do cargueiro

ficam nos trilhos
depois que o trem passa
muitos vaga-lumes
carregando a pilha
olhar é maravilha
espécie de mágica
que escapou da fome
do cargueiro japonês”


Luli e Lucinda em sua letra falam do trem cargueiro comprado no Japão para levar o minério de Minas para os quatro cantos do mundo. Levam as montanhas de Minas para o exterior. Vai minério, volta computador, brinquedo, relógio. É o comércio exterior. Cargueiro Japonês remete a outra música, de Milton e Fernando Brand, que fala de um cargueiro mais antigo, a Maria Fumaça, que também cruzava as Gerais.
Cargueiro, trem de minério que leva o grão do solo, o tesouro do chão, na pança, no vagão. São os morros de Minas que vão saciar a fome do mundo, por ferro e por aço. Montanhas que vão, deixando  triste o horizonte, como denunciado por Drummond. Ah trem de ferro, vai seguindo seu caminho rumo ao mar, cruzando vales e colinas, campos e cidades. Ah cargueiro japonês, vai serpenteando sobre trilhos, cruzando o horizonte, carrega pra longe, pro porto, pro mar, o chão de Minas. Leva pra outro cargueiro levar. Leva  o grão da terra, traz máquina, leva o sangue chão, traz o carro e o furgão. De cargueiro para cargueiro, leva pro mar,  pro Japão, pra China, pro Oriente, pra Europa, pro Norte, pra morte. 
Por F@bio

quarta-feira, 30 de junho de 2010

Juventude - Joseph Conrad

"Saímos de Londres com lastro - lastro de areia - para apanhar uma carga de carvão num porto do Norte e rumar para Bangkok ...
...
No terceiro dia, o temporal amainou e logo depois um rebocador do Norte nos socorria...Quando entramos na doca já tinhamos perdido a nossa vez de carregar e fomos levados para um ancoradouro onde permanecemos por um mês...
Finalmente, carregamos o navio. Oito marinheiros experientes e dois grumetes. Zarpamos certa noite em direção às boias da entrada das docas, prontos para partir, já que eram boas as perspectivas de iniciar a viagem no dia seguinte (...) A maré estava alta, soprava um vento fresco e chuviscava; as portas duplas das docas permaneciam abertas e os carvoeiros a vapor entravam e saíam no escuro, com suas luzes brilhando, um barulho grande de hélices, tinidos de ferragens e muitas vozes que chegavam aos molhes. Eu olhava a procissão de faróis de proa que subiam e de luzes verdes que desciam na noite quando, de repente, um clarão vermelho piscou à minha frente, desapareceu, surgiu de novo e permaneceu visível. A proa de um navio a vapor surgiu bem próximo...
...
No dia seguinte, fizemo-nos ao mar. Quando iniciamos a viagem para Bangkok, já fazia três meses que estávamos fora de Londres. Tinhamos calculado que esse tempo seria de uma quinzena ou pouco mais.
...
Tivemos boas brisas, um mar de rosas nos trópicos e o velho Judea movimentava-se com dificuldade à luz do sol. Só fazíamos oito nós - e tudo estalava, segurávamos nossos gorros na cabeça; mas em geral o navio fazia uma média de três milhas por hora. Que outra coisa se podia esperar? O velho navio estava cansado. A juventude dele estava onde está a minha - onde está a de vocês que escutam estas peripécias. E que amigo atiraria a sua idade e o seu cansaço na cara de vocês? Não reclamávamos contra o navio. Para nós, pelo menos os da popa, era como se tivéssemos nascido nele, sido criados ali, vivíamos nele há séculos, jamais conhecêramos outro navio. Seria mais fácil insultar a velha igreja de aldeia por nunca ter chegado a ser catedral.
...
(...) O velho navio balançava nas águas, curvado pelo peso da carga, enquanto eu desfrutava da juventude, ignorante e cheio de esperança. O navio singrou as águas por interminável procissão de dias, e a nova popa dourada reluzia ao sol poente e parecia gritar sobre o mar que se envolvia na escuridão as palavras pintadas na grinalda: 'Judea. Fazer ou Morrer'."


Transcrito de "Juventude" (Págs. 15, 17, 18, 19, 22, 34 e 35) , de Joseph Conrad. Romance. Porto Alegre: LP&M, 2006.

Joseph Conrad (1857 - 1924), filho de poloneses, nasceu na Ucrânia à época dominada pela Rússia czarista. A família foi perseguida politicamente e Conrad ficou órfão ainda cedo. Aos 16 anos viajou para Marselha na França para assumir seu desejo de viver no Mar. Obteve a cidadania britânica e acabou abandonando o mar, e uma carreira bem sucedida, para se dedicar à literatura.
Em "Juventude", um velho marinheiro conta sua história: na primeira experiência no mar embarcou eufórico em um velho carvoeiro rumo à Bangkok. Uma viagem de infortúnios, dificuldades, num veleiro aos frangalhos. A tripulação, na sua luta contra as intempéries e infortúnios, acaba criando uma camaradagem e uma união para alcançar o objetivo: levar o velho cargueiro e sua carga ao seu destino final no Oriente. O mar apresenta-se como um convite irrecusável para desbravar o mundo. No livro, Conrad cria linda imagens como: "era um homem triste, com uma lágrima eterna a brilhar na ponta do nariz" ou "no dia seguinte, fizemo-nos ao mar" ou ainda "o velho navio balançava nas águas, curvado pelo peso da idade e da carga". E a saga do Judea estava escrita, como um epitáfio, no seu próprio painel da popa (grinalda): "fazer ou morrer", ou melhor, "fazer e morrer", a sina da qual não podia fugir.
por F@bio

domingo, 20 de junho de 2010

Protopoema - José Saramago


"Do novelo emaranhado da memória,
da escuridão dos nós cegos,
puxo um fio que me aparece solto.
Devagar o liberto,
de medo que se desfaça entre os dedos.
É um fio longo, verde e azul, com cheiro de limos,
e tem a macieza quente do lodo vivo.
É um rio.
Corre-me nas mãos, agora molhadas.
Toda a água me passa entre as palmas abertas,
e de repente não sei se as águas nascem de mim,
ou para mim fluem.
Continuo a puxar,
não já memória apenas,
mas o próprio corpo do rio.
Sobre a minha pele navegam barcos,
e sou também os barcos
e o céu que os cobre
e os altos choupos que vagarosamente deslizam sobre a película luminosa dos olhos.
Nadam-me peixes no sangue
e oscilam entre suas águas
como os apelos imprecisos da memória.
Sinto a força dos braços e a vara que os prolonga.
Ao fundo do rio e de mim,
desce como um lento e firme pulsar do coração.
Agora o céu está mais perto e mudou de cor.
É todo ele verde e sonoro porque de ramo em ramo
acorda o canto das aves.
E quando num largo espaço o barco se detém,
o meu corpo despido brilha debaixo do sol,
entre o esplendor maior que acende a superfície das águas.
Aí se fundem numa só verdade as lembranças confusas da memória
e o vulto subitamente anunciado do futuro.
Uma ave sem nome desce donde não sei
e vai pousar calada sobre a proa rigorosa do barco.
Imóvel, espero que toda a água se banhe de azul
e que as aves digam nos ramos por que são altos os choupos
e rumorosas as suas folhas.
Então, corpo de barco e de rio na dimensão do homem,
sigo adiante para o fulvo remanso que as espadas verticais circundam.
Aí, três palmos enterrarei a minha vara até à pedra viva.
Haverá o grande silêncio primordial quando as mãos se juntarem às mãos.
Depois saberei tudo"

Poesia de José Saramago obtida no Jornal da Poesia disponível em http://www.revista.agulha.nom.br/1saramago1.html


José Saramago, um dos grandes mestres da lingua portuguesa, com seu estilo inconfundível, nos deixou um rico legado, com obras magistrais. Um novelo que ele soube como ninguém densenrolar e tecer de forma primorosa. Novelo que foi sua linha de vida e criação, um rio no qual navegou o barco de sua pena. Juntas suas mãos, saberá mais ainda agora como tecer a flor do láscio ou já sabia o que bastava? 
Por F@bio

quarta-feira, 16 de junho de 2010

Profissões Exóticas - João do Rio

"O cigano aproximou-se do catraieiro. No céu, muito azul, o sol derramava toda a sua luz dourada. Do cais via-se para os lados do mar, cortado de lanchas, de velas brancas, o desenho multiforme das ilhas verdejantes, dos navios, das fortalezas. Pelos bulevares sucessivos que vão dar ao cais, a vida tumultuária da cidade vibrava num rumor de apoteose, e era ainda mais intensa, mais brutal, mais gritada, naquele trecho do Mercado, naquele pedaço da rampa, viscoso de imundícies e de vícios. O cigano, de fraque e chapéu mole, já falara a dois carroceiros moços e fortes, já se animara a entrar numa taberna de freguesia retumbante. Agora, pelos seus gestos duros, pelo brilho do olhar, bem se percebia que o catraieiro seria a vítima, a vítima definitiva, que ele talvez procurasse desde manhã, como um milhafre esfomeado.
...
Nos botequins, fonógrafos roufenhos esganiçavam canções picarescas; numa taberna escura com turcos e fuzileiros navais, dois vilões e um cavaquinho repinicavam. Pelas calçadas, paradas às esquinas, à beira do quiosque, meretrizes de galho de arruda atrás da orelha e chinelinho na ponta do pé, carregadores espapaçados, rapazes de camisa de meia e calça branca bombacha com o corpo flexível dos birbantes, marinheiros, bombeiros, túnicas vermelhas e fuzileiros - uma confusão, uma mistura de cores, de tipos, de vozes, onde a luxúria crescia."

Transcrito de "Pequenas Profissões" em "A Alma Encantadora das Ruas: Crônicas", de João do Rio (págs. 54 e 59). Org. Raúl Antelo. Crônica.  São Paulo : Companhia das Letras, 2008. (originalmente publicada com o título "Profissões Exóticas" na Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro em 06/08/1904).


João do Rio, pseudônimo de Paulo Barreto (1881 - 1921), foi o grande cronista da cena carioca no início do Séc. XX. Com seu humor refinado retrata uma cidade em transformação. Assumindo-se republicana, a antiga capital da corte passa por intensa reforma urbanística. João do Rio foi um observador atento das ruas, das gentes, das coisas, da urbe. Um andarilho das ruas por excelência que relatou com picardia os hábitos e estilos de vida do carioca.
João descreve a região do porto do Rio, a Gamboa no início do século passado, destacando a cidade viva e pulsante (tumultuária e apoteótica).  Lança luz especial sobre os tipos que fazem da beira do cais seu habitat:  catraieiros (barqueiros), carroceiros, carregadores, marinheiros, fuzileiros, bombeiros e meretrizes. Desenha uma cena que permanece atual nas zonas degradas do cais do Rio (pedaço da rampa, viscoso de imundícies e de vícios), mas na qual o sol continua derramando sua luz dourada.

Por F@bio

segunda-feira, 31 de maio de 2010

A Montanha Mágica - Thomas Mann

"A úmida atmosfera da grande cidade marítima, mescla de vida farta e mercantilismo de envergadura mundial, esse que enchera de prazer a vida dos seus antepassados, Hans Castorp respirava-o com profunda aprovação, saboreando-o como uma coisa natural. Com olfato penetrado pelas emanações da água, da hulha e do alcatrão e pelos acres odores de montões de produtos coloniais, via como no cais do porto os enormes guindastes a vapor imitavam a calma, a inteligência e a gigantesca força dos elefantes a serviço do homem, transportando toneladas de sacos, fardos, caixas, barris e tambores, do bojo de transatlânticos ancorados até os armazéns das docas ou os vagões da via férrea. Via os comerciantes, com impermeáveis amarelos, tal qual o dele próprio, afluíam à Bolsa, por volta do meio-dia, onde, como ele sabia, se jogava alto, e facilmente acontecia que alguém se visse obrigado a distribuir convites apressados para um grande banquete, destinado a salvar-lhe o crédito. Via - e era o campo em que mais tarde se concentraram os seus interesses - a multidão que fervilhava nos estaleiros; via os corpos de mamute, de vapores regressados da Ásia ou da África, do dique seco, altos como torres, com as quilhas e as hélices no ar, escorados em pontaletes grossos como árvores, monstruosos na sua paralisia, invadidos por exércitos de operários que pareciam pigmeus, ocupados em raspar, martelar e pintar; via nos picadeiros cobertos erguerem-se, envoltos numa cerração fumosa, os esqueletos de navios em construção, enquanto engenheiros, com os planos de construção e as tabelas de zonchadura na mão, davam ordens aos capatazes..."


Em "A Montanha Mágica", de Thomas Mann, Romance. Págs. 49 e 50. Tradução de Herbert Caro - 2a. Ed. - Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000.

Thomas Mann é considerado um dos maiores romancistas da Alemanha, filho de pai alemão e mãe brasileira. A Montanha Mágica, escrita logo após a Primeira Guerra Mundial, publicada em 1924, retrata uma Europa enferma, a procura de uma unidade, afetada pelo seu próprio progresso mercantilista, tão bem retratado na cena portuária descrita por Mann.
A Europa não consegue curar sua insanidade no pós-guerra. A doença se alastra, a febre aumenta e explode o termômetro. O sanatório geral de enfermos entra em ebulição e desencadeia a Segunda Guerra Mundial, inicialmente, européia. A doença contagia todo o continente e depois o mundo.
Em A Montanha Mágica, Mann faz uma análise dessa contaminação que se espalha pelo Velho Continente, do doente que só ao se deparar com a morte, irá procurar recuperar sua sanidade.
por F@bio 

sexta-feira, 30 de abril de 2010

Ode Marítima - Fernando Pessoa

Ode marítima

"Sozinho, no cais deserto, a esta manhã de Verão,
Olho pró lado da barra, olho pró Indefinido,
Olho e contenta-me ver,
Pequeno, negro e claro, um paquete entrando.
Vem muito longe, nítido, clássico à sua maneira.
Deixa no ar distante atrás de si a orla vã do seu fumo.
Vem entrando, e a manhã entra com ele, e no rio,
Aqui, acolá, acorda a vida marítima,
Erguem-se velas, avançam rebocadores,
Surgem barcos pequenos detrás dos navios que estão no porto.
Há uma vaga brisa.
Mas a minh'alma está com o que vejo menos.
Com o paquete que entra,
Porque ele está com a Distância, com a Manhã,
Com o sentido marítimo desta Hora,
Com a doçura dolorosa que sobe em mim como uma náusea,
Como um começar a enjoar, mas no espírito.

Olho de longe o paquete, com uma grande independência de alma,
E dentro de mim um volante começa a girar, lentamente.

Os paquetes que entram de manhã na barra
Trazem aos meus olhos consigo
O mistério alegre e triste de quem chega e parte.
Trazem memórias de cais afastados e doutros momentos
Doutro modo da mesma humanidade noutros pontos.
Todo o atracar, todo o largar de navio,
É - sinto-o em mim como o meu sangue –
Inconscientemente simbólico, terrivelmente
Ameaçador de significações metafísicas
Que perturbam em mim quem eu fui...

Ah, todo o cais é uma saudade de pedra!
E quando o navio larga do cais
E se repara de repente que se abriu um espaço
Entre o cais e o navio,
Vem-me, não sei porquê, uma angústia recente,
Uma névoa de sentimentos de tristeza
Que brilha ao sol das minhas angústias relvadas
Como a primeira janela onde a madrugada bate,
E me envolve com uma recordação duma outra pessoa
Que fosse misteriosamente minha.
(...)"

.........

Poesias de Álvaro de Campos. Fernando Pessoa. Lisboa: Ática, 1944 (imp. 1993). 1ª publ. in Orpheu, nº2. Lisboa: Abr.-Jun. 1915. Obtido em http://www.revista.agulha.nom.br/facam04.html



Fernando Pessoa o grande poeta da língua portuguesa constrói lindas imagens sobre o cais, o cais de Lisboa, braço de rio, onde chegam navios nostálgicos, marinheiros solitários que singram o mar com suas velas, que levam produtos nos porões de seus enormes barcos, deixando seu rastro em cada porto, sentimentos de tristeza, longas jornadas e despedidas demoradas, nostalgia, os que ficam e os que partem, saudades de pedra!
Por F@bio