sábado, 19 de abril de 2014

O Amor Nos Tempos do Cólera (2) - Gabriel García Máquez

"A independência do domínio espanhol, e a seguir a abolição da escravatura, precipitaram o estado de decadência honrada em que nasceu e cresceu o doutor Juvenal Urbino. As grandes famílias de outrora afundavam em silêncio dentro de suas fortalezas desguarnecidas. Nos altos e baixos das ruas empedradas que tão eficazes tinham sido em guerras e desembarques de bucaneiros, as ervas se despenhavam dos balcões e abriam gretas mesmo nos muros de cal e cantaria das mansões mais bem conservadas, e o único sinal de vida às duas da tarde eram os lânguidos exercícios de piano na penumbra da sesta. Por dentro, nos frescos dos quartos de dormir saturados de incenso, as mulheres de guardavam do sol como de um contágio indigno, e mesmo nas missas de madrugada tapavam a cara com a mantilha. Seus amores eram lentos e difíceis, perturbados amiúde por presságios sinistros, e a vida lhes parecia interminável. Ao anoitecer, no instante opressivo da passagem para as sombras, subia dos pântanos um turbilhão de pernilongos carniceiros, e uma branda exalação de merda humana, cálida e triste, revolvia no fundo da alma a certeza da morte.

Pois a vida própria da cidade colonial, que o jovem Juvenal Urbino costumava idealizar em suas melancolias de Paris, era então uma ilusão da memória. Seu comércio tinha sido o mais próspero do Caribe no século XVIII, sobretudo graças ao privilégio ingrato de ser o maior mercado de escravos africanos nas Américas. Era além disso residência habitual dos vice-reis do Novo Reino de Granada, que preferiam  governar daqui, frente ao oceano do mundo, e não da capital distante e gelada cujo chuvisco de séculos lhes transtornava o sentido da realidade. Várias vezes por ano se concentravam na baía as frotas de galeões carregados com as riquezas de Potosí, de Quito, de Vera-cruz, e a cidade vivia então aqueles que foram seus anos de glória. Na sexta-feira 8 de junho de 1708 às quatro da tarde, o galeão San José, que acabava de zarpar para Cádiz com um carregamento de pedras e metais preciosos avaliados em quinhentos bilhões de pesos da época, foi afundado por uma esquadra inglesa diante da entrada do porto, e dois longos séculos depois ainda não tinha sido resgatado. Aquela fortuna jacente em fundos de corais, com o cadáver do comandante flutuando adernado no posto de mando, costumava ser evocada pelos historiadores com o emblema da cidade afogada nas recordações.

Do outro lado da baía, no bairro residencial de Mangueira, a casa do doutor Juvenal Urbino se situava em outro tempo. Era grande e fresca. de um andar só, e com um pórtico de colunas dóricas na varanda da frente, da qual se dominava a água parada de miasmas e escombros de naufrágios da baía. O chão estava forrado de pedras axadrezadas, brancas e pretas, da porta de entrada até a cozinha, e isto se atribuíra mais de uma vez à paixão dominante do doutor Urbino, sem lembrar que se tratava de um fraqueza comum aos mestres-de-obra catalães que tinham construído no princípio do século aquele bairro de ricos de fresca data (...)

No entanto, nenhum outro lugar revelava a solenidade meticulosa da biblioteca, que foi o santuário do doutor Urbino antes que a velhice o derrubasse. Ali, em redor da escrivaninha de nogueira do pai,  das poltronas de couro almofadado, fez forrar as paredes e até as janelas com estantes envidraçadas, e colocou numa ordem quase demente três mil livros idênticos encadernados em pele de bezerro e com suas iniciais douradas na lombada. Ao contrário dos outros aposentos, que estavam à mercê das comoções e dos maus cheiros provenientes do porto, a biblioteca teve sempre o recolhimento e o odor de uma abadia. Nascidos e criados debaixo da superstição do caribe de abrir portas e janelas para convocar uma fresca que não existia na realidade, o doutor Urbino e sua esposa sentiram a princípio o coração oprimido da clausura. Mas acabaram convencidos das vantagens do método romano contra o calor, que consistia em manter as casas fechadas no torpor de agosto para que não entrasse o sopro ardente da rua, e abri-las de par em par aos ventos da noite. A sua foi desde então a mais fresca no sol bravo da Mangueira, e era uma ventura fazer a sesta na penumbra dos quartos, e sentar à tarde no pórtico para ver passar os cargueiros de Nova Orleans, pesados e cinzentos, e os navios fluviais de roda de madeira com as luzes acesas ao entardecer, que iam purificando com uma esteira de música o monturo estanque da baía..."

Transcrito de "O Amor nos Tempos do Cólera", de Gabriel García Márquez, tradução de Antônio Callado. Página 27 a 30. Rio de Janeiro: Editora Record, 1985.

Acho que podemos dizer que a literatura não seria a mesma sem García Márquez. Ele deu uma enorme contribuição à produção literária latinoamericana e permitiu que esta conquistasse seu espaço num ambiente completamente dominado pelos autores estadunidenses e europeus. O primeiro livro de Márquez que li foi Olhos de Cão Azul. Me encantei de cara com o realismo fantástico e o vigor poético. Depois li Os Funerais de Mamãe Grande e A Incrível e Triste História de Cândida Erêndira e sua Avó Desalmada. Ao ler Cem Anos de Solidão o encantamento se consolidou e pude descobrir que a história das gerações da família Buendía, situada por García Márquez na sua cidade natal, Aracataca, Colômbia, poderia estar situada em qualquer outro país da América Latina. Esse sentimento de latinidade no texto de García Márquez me contagiou. Essa semana o autor fez sua passagem, mas seu legado fica para que possamos ler e reler. Obrigado Gabo, fica em paz!
Por F@bio

terça-feira, 15 de abril de 2014

Tristes Navios que Passam - Emanuel Félix

Tristes Navios que Passam

            Para o Daniel Santos,
                  no outro lado do mar

Tristes navios que passam
na hora da nossa vida
na hora da nossa morte

escuros vasos de guerra
cargueiros tanques paquetes
brancos navios de vela

levam óleo levam ódio
luxo lixo das cidades
levam gente gente gente

deixam ficar nostalgia

tristes navios que passam
na hora da nossa morte
na hora da nossa vida

Félix, Emanuel (1977), A Palavra.O Açoite. Coimbra: Poesia Centelha, p. 31.

Obtido de: http://www.ces.uc.pt/projectos/poesiadaguerracolonial/pages/pt/antologia/poemas/partidas.php

O poeta Emanuel Félix Borges da Silva nasceu em 24 de outubro de 1936, em Angra do Heroísmo, nos Açores, Portugal, e faleceu em 14 de fevereiro de 2004. Seu livro de estreia, aos 15 anos, foi  O Vendedor de Bichos. Teve uma profícua produção literária que só terminou em 2003 com a coletânea 121 Poemas Escolhidos. É considerado o responsável pela introdução do concretismo poético em Portugal,  mas optou pelo surrealismo. Em 1958, com Rogério Silva, fundou e dirigiu a revista Gávea, onde fez crítica literária e de artes plásticas.

A vida que passa qual navios, cruzando nossos horizontes, levam um pouco de nós, a cada instante, a vida que se esvai, qual água a correr nos rios, nos mares, cargueiros a levar nossos anos, nossos pares, levam vida, levam coisas, até nossa alma carregam, fica a tristeza de saber, que um pouco de nós se foi, a cada instante, no vai e vem da ondas, no giro da hélice, na brisa marinha, fica esse amargo na boca, o gosto da tristeza, da nossa vida que vai, carregada pela correnteza, da passagem, nostalgia!
Por F@bio