domingo, 27 de fevereiro de 2011

Agonia da Noite - Jorge Amado

De: Jorge Amado

"Ia o negro Doroteu, com sua negra Inácia, pela beira do cais. Era o cais de Santos, os armazéns das docas a se perderem de vista, repletos de sacos de café, de cachos de bananas, de fardos de algodão. Trilhos, automóveis, geladeiras, rádios, máquinas estranhas, conservas e frutas desciam nos guindastes, trazidos do bojo profundo dos porões escuros dos negros cargueiros ancorados no porto. Um cheiro doce de maçãs maduras se misturava ao salgado odor do mar, na lânguida noite tropical, envolvente e morna, cortado por um vento fino chegado de distantes paragens. Também a melodia melancólica de uma canção marítima se mesclava ao barulho ensurdece dor dos guindastes, dos gritos de marinheiros e estivadores, dos apitos saudosos dos navios abandonando a orla do cais em busca do maroceano mais além do porto. De quando em vez, uma nota mais alta da canção se sobrepunha a todo o ruído e vibrava no ar, fazendo mais ligeira a carga nos ombros dos doqueiros. Era uma canção em língua estranha, impossível entender o que ela dizia, mesmo se pudessem distintamente ouvir todas as suas palavras, mas cada um sabia - os doqueiros, os marinheiros de diversas raças, os ensacadores, mesmo os empregados da Alfândega - tratar-se de uma canção de amor, feita de distância e de aflito anelo. Mais que todos o adivinhava o negro Doroteu, andando ao lado de sua negra Inácia. Para ele, as canções não tinham segredos, ele podia penetrar-lhes o sentido mais misterioso mesmo quando não entendia a língua do marinheiro improvisado em cantor, desabafando para as luzes da cidade de Santos a sua saudade da mulher um dia encontrada e logo perdida em Changai ou Constanza, em Nova Iorque ou Guaiaquil em Amsterdã ou Stambul. Dele era o sábio conhecimento das canções do mar, das bandeiras dos navios e da variada cor das águas no correr do dia. Desses mistérios falava o negro Doroteu à sua negra Inácia quando juntos, nas noites sem trabalho, atravessavam o cais imenso, trocando juras de amor, contando e ouvindo histórias, assoviando canções, rindo para todos, pois rir era o maior prazer tanto do negro Doroteu quanto da sua negra Inácia."
 
Extraído de "Agonia da Noite", que juntamente com "Os Ásperos Tempos” e “A Luz no Túnel”, formam a trilogia de Jorge Amado sob o título geral de “Os Subterrâneos da Liberdade”, na qual buscou traçar um panorama da vida política brasileira nos anos do Estado Novo. Editora Martins Fontes, sem data.
 
Jorge Amado é um romancista de mão cheia. Subterrâneos da Liberdade li quando estávamos sobre a ditadura militar no Brasil, nos anos 70 do século passado. Li num fôlego só, pois o romance parecia um retrato dos dias de então. Repressão, prisões políticas, greves proibidas, perseguição, partidos clandestinos, movimento estudantil. Eram tempos difíceis e eu estava lá, no movimento, lutando por remover aquele véu negro que nos amordaçava e retirava a liberdade. Parecido com o que os povos estão fazendo hoje no norte da África e Oriente Médio. Lutando pela democracia em passeatas, greves e manifestações. Lutando pela liberdade. Jorge Amado não esconde a sua militância de esquerda, nem eu.
Por
F@bio 

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Roteiro - Albano Martins

De: Albano Martins

"Desenho no mapa o teu perfil
de caravela cósmica. Viajo
por hemisférios tácteis ao encontro
do lastro puro, do contraste
que me revele
e justifique
e baste."

(in «Coração de Bússola», 1967)

Albano Martins, nascido em 1930, em Portugal, formado em filologia, foi professor.
O poeta foi um dos fundadores da revista Árvore e colaborador da Colóquio-Letras e Nova Renascença.
A caravela cósmica navega oceanos siderais, tateando estrelas, na busca do ponto de encontro, na dialética
do desencontro. O amor localizado pela bússola que há em cada coração, que dispara quando encontra, mas também soluça quando desencontra.
Será que isto basta?
Por
F@bio

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Poesia no Cais do Porto - Fernanda de Aquino

De: Fernanda de Aquino

"No meio do cais do porto, eu o descobri. Ele estava vestido de tanta gente, de sons indecifráveis, de letras incoerentes... No meio de tanta gente eu o vi descobrindo-me, encontrando meu olhar ávido por cima do ombro de um desconhecido. Seu olhar! Rendi-me na hora.

Eu não sabia direito como fora parar ali. A palestra estava começando e as pessoas já se amontoavam, se acotovelando em busca de um bom lugar, algumas para verem os famosos de perto, outras para serem vistas por sei lá quem pudesse ser.

Atada por sete nós, no mínimo, eu permaneci sentada numa cadeira dura, sob uma garoa fina e fria, sem beber, sem comer, sem falar. Fenilalinina pura, meu ser virou bruma, misturou-se com a maresia e passeava livre, do navio ao palco, do mar ao cais, voltando sempre ao mesmo lugar: seu olhar! Eu não via suas pernas, no tamanho exato para me alcançar, nem seus dedos longos e ágeis tamborilando seu joelho esquerdo. Ou era o direito? Eu via somente o seu olhar me tomando forte em seus braços, me dizendo coisas que eu precisava ouvir. Coisas de amor, doces mentiras. E afagos, muitos, por todo o meu corpo, eriçando meus pelos, meus mamilos, me aquecendo e de repente me atirando num abismo profundo, escuro, sem fim e depois me buscando novamente para em seguida me atirar outra vez. E mais outra.

O guindaste fingia trabalhar duro enquanto a poesia se derramava no cais do porto. Foram quase três horas carregando contêineres de paixão. Um amigo me disse um dia que detestava quando seus hormônios estavam erupcionando porque ele se metia em cada roubada...

Tão logo terminasse aquela verborragia desenfreada eu iria até ele, de corpo e alma. Diria quem eu sou, de onde vim e o que quero além do seu olhar. Era o que faria. E se ele, sentindo meu corpo tão perto, meu cheiro, minha voz falseada de naturalidade, recuasse... e seu olhar me dissesse “eu não te conheço, nem nunca te vi”.

Talvez naquele momento em que ele esticara o pescoço e me fitara dizendo “eu estou aqui, não se perca de mim”, não fora para mim. Ele me acertara sem querer quando mirava a sua namorada sentada atrás de mim. Eu era a primeira da fila, todos estavam atrás de mim. Não havia um caminho para o seu olhar ir onde quer que fosse sem passar por mim. E sempre que passava, eu o prendia por alguns instantes. Talvez ele nem tenha se dado conta disso. Poderia ser ainda um namorado aquele moço, quase um menino, que segurava seus livros com visível dedicação. Pior do que isso, o menino poderia ser o seu amor que esperava pacientemente seu amor fazer poesia a alheios, pensando enquanto isso, no quanto ele era sensível e inteligente e no quanto eram felizes aqueles dois.

O sutiã me apertava uma cicatriz antiga no lado esquerdo do peito. Doía. Olhei para a noite e chorei. Lembrei-me que teria que higienizar muito bem minhas pálpebras antes de dormir. Meu oftalmologista dissera que minhas lágrimas eram tóxicas. Que merda!"

Obtido de: http://www.correiodolitoral.com/index.php?option=com_content&view=article&id=304:no-meio-do-cais-do-porto&catid=55:maresia&Itemid=112

Fernanda de Aquino nos traz uma poesia cheia de tesão e paixão. Foi publicada pelo Correio do Litoral, diário eletrônico do litoral do Paraná do dia 15 de fevereiro de 2009. Hoje são 14 de fevereiro, quase uma coincidência de data. No Correio pode-se encontrar muitas outras poesias de Fernanda.
Todos nós, um dia, nos deparamos com um olhar instigante, que nos desperta um sentimento que cresce por dentro. Um desejo que vai subindo e nos queimando. Descobrir e ser descoberto. Olhares que se cruzam, dedos que se tocam, pele que se eriça, guindaste que se levanta de tesão, conteinêres de paixão contida no peito. Ah, o amor...
Por F@bio

domingo, 13 de fevereiro de 2011

Cais do Corpo - Braulio Tavares

De Braulio Tavares


"eles
que têm
uma mulher
em cada porto


elas
que têm
um homem
em cada navio

(quente é o cais do corpo,
quando o mar é frio) "
 
Obtido em:http://www.jayrus.art.br/Apostilas/LiteraturaBrasileira/VanguardasPoeticas/Braulio_Tavares_poesia.htm
 
 
Braulio Tavares, um paraibano que adotou o Rio ou pelos cariocas foi adotado.  É poeta, escritor, músico, roterista...e por aí vai. No link acima tem uma entrevista com ele que nos permite conhecer um pouco mais do poeta. Cais do Corpo coloca em uma perspectiva dialética a questão sempre posta do marinheiro que tem uma mulher em cada porto, ou são elas que têm um homem em cada navio? O corpo é o cais dos amores possíveis. Interessante que essa é a segunda poesia com esse título que publico aqui no Cargueiro de Letras.
Por