domingo, 20 de junho de 2010

Protopoema - José Saramago


"Do novelo emaranhado da memória,
da escuridão dos nós cegos,
puxo um fio que me aparece solto.
Devagar o liberto,
de medo que se desfaça entre os dedos.
É um fio longo, verde e azul, com cheiro de limos,
e tem a macieza quente do lodo vivo.
É um rio.
Corre-me nas mãos, agora molhadas.
Toda a água me passa entre as palmas abertas,
e de repente não sei se as águas nascem de mim,
ou para mim fluem.
Continuo a puxar,
não já memória apenas,
mas o próprio corpo do rio.
Sobre a minha pele navegam barcos,
e sou também os barcos
e o céu que os cobre
e os altos choupos que vagarosamente deslizam sobre a película luminosa dos olhos.
Nadam-me peixes no sangue
e oscilam entre suas águas
como os apelos imprecisos da memória.
Sinto a força dos braços e a vara que os prolonga.
Ao fundo do rio e de mim,
desce como um lento e firme pulsar do coração.
Agora o céu está mais perto e mudou de cor.
É todo ele verde e sonoro porque de ramo em ramo
acorda o canto das aves.
E quando num largo espaço o barco se detém,
o meu corpo despido brilha debaixo do sol,
entre o esplendor maior que acende a superfície das águas.
Aí se fundem numa só verdade as lembranças confusas da memória
e o vulto subitamente anunciado do futuro.
Uma ave sem nome desce donde não sei
e vai pousar calada sobre a proa rigorosa do barco.
Imóvel, espero que toda a água se banhe de azul
e que as aves digam nos ramos por que são altos os choupos
e rumorosas as suas folhas.
Então, corpo de barco e de rio na dimensão do homem,
sigo adiante para o fulvo remanso que as espadas verticais circundam.
Aí, três palmos enterrarei a minha vara até à pedra viva.
Haverá o grande silêncio primordial quando as mãos se juntarem às mãos.
Depois saberei tudo"

Poesia de José Saramago obtida no Jornal da Poesia disponível em http://www.revista.agulha.nom.br/1saramago1.html


José Saramago, um dos grandes mestres da lingua portuguesa, com seu estilo inconfundível, nos deixou um rico legado, com obras magistrais. Um novelo que ele soube como ninguém densenrolar e tecer de forma primorosa. Novelo que foi sua linha de vida e criação, um rio no qual navegou o barco de sua pena. Juntas suas mãos, saberá mais ainda agora como tecer a flor do láscio ou já sabia o que bastava? 
Por F@bio

Um comentário:

  1. Olá Maninho!
    Grande perda para a literatura mundial.
    Resta o consolo de saber que ele teve uma vida plena de realizações pessoais. Talvez fosse por isso que não temia a morte.
    Agora, sem ele, o mundo ficará menos crítico, mais cego e com a falta de assistência de um grande pensador.
    Os grandes vivem na memória. Tornaram maior o nosso mundo.
    Eh isso!
    Beijos com amor!
    Elaine

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